A retrospectiva de leituras de 2021 - o ano de mudanças

2021 foi um ano complicado para mim. Mais complicado que 2020. São Paulo - Chile - São Paulo - Nova York. Foi um ano com muitas mudanças e a mala quase sempre montada. Fiquei de lá para cá por muito tempo. Mesmo depois que cheguei no destino final e tinha condições de estabilizar, eu tive que fazer isso num país estranho e com meu companheiro de aventuras apresentando sintomas de Covid Longo por 3 intermináveis meses. 

Por isso, a lista encurtou de tamanho em relação ao ano passado. Li bem menos, mas isso não é importante. Eu sempre fui uma slow reader e o que vale é viver a leitura - o que é temporalmente impossível de medir. Levando em conta a experiência, 2021 foi ótimo: eu conheci duas novas autoras das quais nunca tinha ouvido falar e me apaixonei: Edith Wharton e Lucia Berlin. Duas autoras norte-americanas que estão recebendo novas edições e tradução no Brasil muito recentemente. Aliás, Lucia Berlin, mesmo nos Estados Unidos, ganhou mais reconhecimento a partir de 2015, 11 anos depois de sua morte, quando A Manual for Cleaning Women recebeu uma nova edição e foi selecionado como um dos melhores do ano pela The New York Times.

Também retomei autores que me encantam e que prometi para mim mesma que, pelo menos uma vez ao ano, eu deveria lê-los. Depois de tantos livros que me tiraram o fôlego de Philip Roth, Casei com um comunista não me impressionou muito. De Roth, prefiro os que li ano passado. O gigante enterrado, de Kazuo Ishiguro, é de uma beleza infinita e está entre um dos livros mais sensíveis que li na vida. A guerra não tem rosto de mulher também é de doer o coração e arrancar lágrimas, mas preferi O fim do homem soviético e Vozes de Tchernóbil.

Tentei ler duas obras de ficção científica, mas foram dois relacionamentos complicados. Com certeza não vou insistir novamente nesse gênero tão cedo. 

Uma coisa muito boa que aconteceu este ano foi ter entrado para a equipe de redatoras do Querido Clássico. Para mim, essa oportunidade não deixa de ser um fruto deste projeto pessoal que comecei lá no início da pandemia de ler mais, escrever resenhas, pesquisar novos autores e manter este diário de leituras ativo. Fazer parte deste time é ter meus textos lidos e valorizados enquanto compartilho com outras pessoas interesses parecidos e leio também outros textos maravilhosos (como eu já vinha fazendo desde o ano passado, quando entrei no Clube do Livro Querido Clássico). Por conta desta nova realidade remota, eu estava sentindo muita falta de fazer parte de uma comunidade que compartilha não apenas os mesmos interesses, mas também o drama de ler, escrever e ser lida. 

Outra conquista este ano foi fazer minha carteirinha da New York Public Library. Parece bobo, mas essa carteirinha tem um significado muito especial para mim. Não só porque eu amo bibliotecas e a NYPL tem toda uma aura especial por causa do filme Os Caça Fantasmas, ou porque a biblioteca em si é linda, e eu poderia ficar aqui listando mil motivos... Mas, também, porque significou, finalmente, que eu cheguei ao meu destino depois de tanto tempo e, com um comprovante de endereço no meu nome, pude criar um vínculo com o lugar que estou. (sim, eu sei, bem cultura brasileira de cartório isso!)

Dia 8 de outubro publiquei esse Stories no Instagram: "Agora tenho minha carteirinha da biblioteca pública de NY e cá estão os primeiros empréstimos". Os empréstimos eram Evening in Paradise e A Manual for Cleaning Women. Eu já sabia o quanto significava a carteirinha para mim, mas não esperava que fosse gostar tanto da Berlin

Mas, finalmente, a curiosidade é como o lugar e o momento que estamos vivendo influenciam as nossas leituras. Apesar dos quatro meses vivendo no Chile, eu estava lá de passagem. Enquanto não estávamos de lockdown, aproveitamos bastante Santiago, mas eu não me senti em nenhum momento "conectada". Não li absolutamente nenhum autor Chileno, nada. Apenas notícias relacionadas à pandemia, fronteiras, taxas de contágio, hospitalização e morte. Eu estava ali apenas contando o tempo para fazer o que eu tinha que fazer e ir embora. Não conseguia "me envolver". 

Só quando chegamos aqui em Nova York, depois de uma saga de um ano e meio que envolveu dois países, muito dinheiro e muitos - muitos mesmo - fios de cabelo, eu consegui me "conectar". Os livros de Edith Wharton e Henry James me cativaram enormemente: três romances que se passam em Nova York no fim do século XIX e início do XX. Eu não me sinto uma estranha nesta cidade e, apesar dos problemas, eu adoro estar aqui e quero continuar. Todas as referências familiares que fui lendo ao longo das narrativas são pequenas estrelinhas de satisfação. Ao chegar no final, é possível montar a constelação e, por isso, tanto prazer na leitura destes livros. 

Inclusive, há dois dias pegamos o metrô direção downtown e fiz questão de andar pela Washington Square. Fui pensando na Nova York de Henry James, onde seria ali a residência Sloper. Fui dizendo, com brilho nos olhos, como é incrível o tempo passar, o entorno mudar, mas a Praça continuar lá, praticamente intacta, mais de um século depois. Será que Henry James tinha a mínima ideia da resistência temporal deste marco urbano de uma cidade que tanto muda quando escreveu seu romance? 


Dia 29 de dezembro, eu de costas em direção ao Arco da Washington Square

Essa associação lugar - leitura é com certeza o que tem feito eu ficar praticamente obcecada pelos contos de Lucia Berlin.  Além de todos os méritos como contista e sua habilidade narrativa incrível, Berlin tem como referência sua própria vida - estou dizendo, mas pisando em ovos, que ela faz autoficção. Nasceu no Alaska, viveu no Texas, mudou-se para o Chile, de volta aos EUA, viveu em New Mexico, mudou-se para Nova York, California, Mexico de novo... Seus anos como adolescente no Chile lhe ensinaram o espanhol e, portanto, a autora dominava a diferença entre ser e estar. Em seus contos, ela mostra como ela estava em todos estes lugares. Por toda uma vida, Lucia Berlin estava em vários lugares... Mas ela nunca conseguia ser nestes lugares. 

Quando ela fala sobre o Chile, ela me toca de uma maneira que nenhum autor chileno conseguiria. Como alguém "de fora", que está lá de passagem, o Andes que ela via ao redor de Santiago é o mesmo Andes que eu via. A mesma coisa em Nova York: sua família materna era do Texas, sua vida anterior foi dividida entre o interior dos EUA e um país latino-americano. Aqui em Nova York, o metrô, as ruas, o cheiro, a praça que Lucia via e descreve em seus contos é exatamente a Nova York que eu vejo e vivo. Ao mesmo tempo, a construção narrativa dos contos é mágica... Parece que a narradora está bêbada, flutuando. Como aquelas cenas de filme em que a alma se desloca do corpo e fica assistindo o que acontece com sua materialidade de longe, sem poder interferir. 

Enfim, é uma retrospectiva. Então, segue a lista abaixo começando pelo último livro lido para o mais antigo. Como no ano passado, os livros em negrito são os que eu mais gostei. Aliás, gostei de todos desta lista, menos o 6 e 16 que, como disse antes, são os livros de ficção científica. 

Obs: Não tive tempo ainda de escrever sobre A Sucessora. Vou escrever na próxima semana e depois atualizo o link aqui. [Atualizado]


1. A Sucessora - Carolina Nabuco

2. Evening in Paradise - Lucia Berlin

3. Washington Square - Henry James

4. O dia em que Selma sonhou com um Ocapi - Mariana Leky

5. The House of Mirth - Edith Wharton

6. The left hand of darkness - Ursula K. Le Guin

7. A época da Inocência - Edith Wharton

8. A manual for cleaning women - Lucia Berlin

9. Dracula - Bram Stoker

10. Nu, de botas - Antonio Prata

11. Just Kids - Patti Smith

12. A insustentável leveza do ser - Milan Kundera

13. Casei com um comunista - Philip Roth

14. A guerra não tem rosto de mulher - Svetlana Aleksietich

15. O gigante enterrado - Kazuo Ishiguro

16. O problema dos três corpos Vol. 1, 2 e 3 - Cixin Liu

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Ano que vem, pretendo ler pelo menos uma obra de autores que já conheço: Kazuo Ishiguro, Henry James, Huraki Murakami, Philip Roth e Svetlana Aleksievitch. Já tenho dois autores que não conheço mas que já estão na fila de espera: Nathaniel Hawthorne e Katherine Mansfield. E, é claro, ao longo do ano ir conhecendo novos. Gostaria, em 2023, de ler mais contemporâneos. 

Evening in Paradise, a continuação de Manual da Faxineira, Lucia Berlin

Eu tenho essa mania de retornar a autores que eu gostei muito num espaço curto de tempo. Sou um pouco repetitiva? Talvez. Depois de A Época da Inocência, repeti Edith Wharton com A Casa da Alegria. Agora, dobradinha com Lucia Berlin. Gostei tanto de Manual da Faxineira, me senti tão envolvida e mergulhada em seus contos, que não pensei duas vezes em ler Evening in Paradise, outra coleção de contos da autora e ainda não publicada no Brasil. 

Nesta coletânea, os contos têm os mesmos cenários, as mesmas temáticas, a mesma força narrativa, mas parece uma continuação de Manual.  Em Manual, somos apresentados ao "universo Lucia Berlin". Demora um pouco para a gente conseguir mergulhar de cabeça e começar a se sentir familiarizada com a narrativa. Como as estórias são inspiradas em sua própria vida, personagens e lugares vão se repetindo nos contos, mas nada é explicadinho. É com a leitura de conto atrás de conto, página após página, que vamos montando esse "quebra cabeça" da vida da autora. 

A leitura individual dos contos de Lucia diz bastante, mas é no conjunto, como se fossem capítulos de uma grande estória, que os contos ganham mais poder narrativo. Por isso senti que eu já cheguei preparada em Evening in Paradise: apesar de nomes trocados, eu já pude identificar quem eram os personagens e quais os momentos da vida de autora. Recomendo, justamente, fazer este caminho. Primeiro Manual da Faxineira e depois Evening in Paradise, porque me parece que os contos aqui são menos óbvios, menos "explicados". Me parece que eles já pressupõem uma certa familiariade. 

Não vou me estender nesta resenha porque pretendo escrever um texto sobre Lucia Berlin para o site Querido Clássico (depois atualizo este post com o link), mas gostaria de registrar brevemente o caminho que os contos percorrem em Evening in Paradise.

Os contos seguem uma ordem cronológica e começamos durante sua infância na casa de seus avós, enquanto seu pai está na guerra. Lucia nos conta sobre o Texas, os mexicanos e a família síria vizinha. Depois partimos para Santiago, Chile, onde a adolescente Lucia nos conta um pouco sobre suas amizades, sua mãe alcoolatra e sua sexualidade. Em Itinerary, uma descrição lindíssima de seu longo caminho entre Santiago, Chile, para o college em New Mexico. Um caminho com várias paradas: Santiago - Lima - Panama - Miami - Albuquerque, New Mexico: a mudança da estação, as pessoas que conheceu pelo caminho, o abandono de sua vida confortável e familiar para a solidão da vida adulta no destino final. 

A partir daí, o fim precoce de sua vida colegial e o início prematuro da vida de esposa, mãe e dona de casa. Relacionamentos amorosos, drogas, álcool, Nova York, Natal em família no Texas, resort de férias no México, touradas, a fragilidade da vida e a presença constante da morte. Como na primeira coletânea, muitos cenários, muitos temas, mas a solidão, o deslocamento e a busca constante de sentir-se parte de algo, de um lugar, continua presente. Uma espécie de autobiografia completamente ficcionalizada. 

Tomara que esta coletânea seja logo publicada no Brasil, pois é uma linda continuação do Manual da Faxineira, indispensável para quem leu Manual e se sentiu encantado. 

O dia em que Selma sonhou com um ocapi, de Mariana Leky

Eu gosto muito de literatura contemporânea, mas fazia um tempo que não lia nada publicado recentemente. Quebrei o jejum com What you can see from here, Mariana Leky, publicado originalmente na Alemanha em 2017 e, no Brasil em 2019 com o título O dia em que Selma sonhou com um ocapi

Cheguei até ele por indicação da Mia Sodré. Procurei a descrição e, de cara, amei a premissa: toda vez que Selma sonha com um ocapi, alguém na vila morre em 24 horas. Parênteses: ocapi é um mamífero originário da África. Não é bonitinho. É bem feio na verdade, o que explica sua falta de popularidade. Eu fiquei super intrigada como se fosse uma antropóloga: como se comportariam os familiares e amigos de Selma e os habitantes daquela vila sabendo que, possivelmente, aquelas seriam suas últimas 24 horas de vida? Seria "deixa eu comer tudo o que eu posso até passar mal porque não sei se estarei aqui amanhã", ou "hoje eu não vou para a academia, porque o que importa se eu vou morrer hoje mesmo", ou "hoje me vingo e mato aquele FDP", ou ainda "não sairei da igreja e vou implorar para Deus me poupar"? Qual seria o tom? Melancolia? Caos social? Apocalíptico? Divertido? Irônico? 

Absolutamente nada disso. Mariana Leky é muito original. 

A história é narrada por Luisa, neta de Selma. Elas vivem numa pequena vila na Alemanha Ociental. O livro me lembrou um pouco Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, que se passa na Polônia e sobre o qual escrevi aqui. Me lembrou no sentido de que a narrativa se parece uma fábula. Ambas as histórias têm como protagonista uma senhora idosa, se passam num pequeno povoado, a relação entre as senhoras e a vizinhança é de muita proximidade, a paisagem natural, inclusive os animais mencionados, são os mesmos - temos a floresta, a planície, o veado e o caçador. No livro de Olga Tokarczuk, há um misticismo presente em toda a narrativa e, no livro de Mariana Leky, encontramos também um universo fantasioso, cheio de superstição. 

Quem já teve a chance de conhecer essas vilas pequenas da Europa, lê a narrativa de Mariana Leky com muita familiaridade. Um lugar onde o tempo passa e, ao mesmo tempo, tudo continua igual. Onde as pessoas, apesar do nome, são conhecidas e chamadas pela sua função dentro da comunidade, como o oculista, o lojista, ou o sorveteiro. É uma leitura apaixonante, envolvente e, como numa fábula, passamos pelas 300 páginas bem rapidamente. Vamos acompanhando alguns anos da vida de Luisa que, no começo da história, quando sua vó sonha com o ocapi, tem apenas 10 anos. No final, terminamos o livro com uma Luisa de 30 anos. 

Na minha opinião, o grande mérito da narrativa de Leky é colocar beleza onde, a princípio, não há. A mesmice, o cotidiano, a vida simples daqueles que nascem, crescem, casam-se, envelhecem e morrem no mesmo lugar. Diálogos sobre coisas simples, pequenos pensamentos filosóficos feitos por pessoas normais. E, principalmente, a morte. Leky trata com sensibilidade todos esses aspectos humanos profundos de maneira simples e sofisticada. 

Teve apenas uma coisa da qual não gostei. O livro começa muito bem, mas acaba mal. Não gostei do epílogo. Senti ele desconexo e até um pouco decepcionante. 

E por que um ocapi? 

Isso não é respondido no livro, mas segue a minha interpretação. Ao longo da narrativa, temos muitas "portas". Grandes momentos na vida de Luisa acontecem com portas, literalmente. Me parece que ocapi é a representação de tudo o que está do outro lado de uma porta que separa aquele mundinho pequeno circundado pelos limites da vila (ou seja, o conhecido) do resto do mundo (ou seja, o desconhecido). Tudo que vem "de fora" desestabiliza a ordem monótona e metódica daquelas pessoas. Primeiro o ocapi, no sonho de Selma, e depois Frederik, o monge budista. 

Essa dualidade entre conhecido versus desconhecido, conforto de casa versus aventura, consentimento versus curiosidade é bem representada na figura do pai de Luisa. O médico, de certa forma incompreendido, está sempre viajando para os lugares mais remotos e menos óbvios. Ele é um aventureiro ou está procurando algo que não é possível encontrar? A cada retorno para ver sua família, ele traz um pedacinho do que é de fora para dentro daquela pequena vila através de livros de viagens. 

Uma narrativa que se passa em uma vila da Alemanha Ocidental entre os anos de 1980 e 2000 não poderia passar imune ao seu contexto histórico. O trauma da guerra para aquelas pessoas está na figura de Heinrich, avô de Luisa, que nunca o conheceu. Um dia ele foi para a guerra e nunca mais voltou. As fotografias e memórias que restaram deste personagem são poucas. Quase não há informação. É como se, o pouco que temos, tivesse escapado pelas frestas de uma porta que se fechou e nunca mais foi aberta quando ele saiu daquela pequena vila para o mundo desconhecido. Talvez este seja um pouco que eu não tenha gostado muito. Eu acho que o papel da Alemanha nas duas guerras mundiais tem que ser escancarado, debatido e definitivamente não colocado do outro lado da porta. Heinrich aparece toda vez como uma lembrança muito distante, cuja imagem é quase apagada, e eu acho que a violência vivida  - causada e sofrida - na Alemanha no século XX tem que ser clara claríssima. 

Mas, apesar disso, é um livro lindíssimo, recomendo bastante. É uma narrativa sobre morte e luto de forma sensível e profunda. Apesar dos pontos que eu não gostei, é uma leitura muito prazerosa e envolvente. Porém, tem que estar preparado para sentir conforto mas também muita dor. Prepare os lencinhos para o final da primeira parte do livro. 

Um ocapi  - Photo by tenaciously_tina on - Pixabay

Jogo, luxo, solidão e casamento em A Casa da Alegria, de Edith Wharton

O coração dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos na casa da alegria.

Eclesiastes 7:4


Quando a gente gosta muito da leitura de um livro, é perigoso emendar outro em seguida do mesmo autor. Pode gerar comparações injustas, ou uma leitura bastante enviesada. Definitivamente, não foi o que aconteceu com a minha segunda experiência literária com Edith Wharton. 


Muito recentemente terminei A Época da Inocência. Um livro para o qual eu me entreguei. Eu li com atenção e até carinho. Tanto que escrevi uma análise bastante cuidadosa para o site Querido Clássico. Quando comecei, portanto, A Casa da Alegria, eu já sabia o ambiente que devia esperar: a cidade de Nova York na virada do século XIX-XX, as carruagens, os casarões da Quinta Avenida, os vestidos, viagem e todo o luxo da sociedade aristocrática desta época e lugar. O que eu não esperava era uma protagonista tão intensa e complexa cujas idas e vindas são tudo, menos fáceis de encarar. Foi como se A Época da Inocência tivesse preparado o terreno para uma leitura que seria ainda mais envolvente e cheia de desolação para mim. 

Em A Casa da Alegria acompanhamos dois anos da jovem nova-iorquina Lily Barth. Aos 29 anos, possuidora de grande beleza, Lily está a procura de um casamento que continue financiando seu gosto pelo luxo, pelo belo, fins de semana e viagens com a aristocracia e suas jogatinas. Lily foi criada em meio ao luxo, mas ficou orfã ainda criança. Depois que perdeu todo o dinheiro, seu pai morreu e, pouco tempo depois, sua mãe. Criada por uma tia, Lily tem uma pensão e seus custos de costureira assumidos pela protetora, mas isso é insuficiente para seu estilo de vida. Depois de perder o pouco que tinha em jogo de cartas, Lily toma decisões desacertadas uma atrás da outra, até que fica sem saída. 

O tema “jogo” permeia toda a narrativa, como se tudo o que Lily tem e deseja estivesse em aposta. As relações sociais é um grande jogo nos quais os personagens estão, a todo momento, querendo “ganhar” e Lily, assim como com as cartas, tenta manter o controle das situações, mas sempre acaba vítima das melhores cartas que estão na manga dos outros. Tudo porque Lily, apesar de seu gosto pelo belo e pelo luxo, ainda sonha com o matrimônio por amor, o que é quase incompatível no meio social que frequenta.

Apesar de gostar de Lawrence Selden e por ele sentir afinidade, Selden é um advogado, não é rico, nem aristocrático. Pior, ele é aquele ombro amigo que diz ajudar, mas quem mais julga o gosto e as amizades aristocráticas de Lily apesar de ele mesmo não escapar deste entorno. 

Gus Trenor, marido de Judy Trenor e amiga de Lily, diz ter especulado com o dinheiro de Lily na Bolsa de Valores e lhe entrega um lucro de 9 mil dólares. Na hora de cobrar sua comissão, descobre-se que ele tirou de seu próprio bolso esse dinheiro e cobra de Lily um pagamento que não é material. Como narrar uma cena de estupro em 1902, ano da publicação do livro? Como colocar tamanha violência em páginas num contexto de tempo e lugar que nunca admitiria uma narrativa assim publicada? Edith Wharton, com toda sua genialidade, consegue essa proeza. Ela coloca toda a dor, o sofrimento, o sentimento de solidão e culpa da vítima e os olhares julgadores da sociedade de modo a não deixar dúvidas que, apesar de não dito, uma violência foi consolidada. 

Ainda temos o judeu Simon Rosedale, um capitalista em ascensão que está enriquecendo e aumentando sua reserva e fluxo de dinheiro. Ele almeja fazer parte destes círculos aristocráticos e, por isso, vê no casamento com Lily uma porta de entrada. Lily o acha desprezível, mas quando percebe que sua vida está em maus lençóis, aceita o pedido de Rosedale, que retira a oferta. Em nenhum outro diálogo literário vi a mulher e o casamento tão bem descritos como uma mercadoria. Uma moeda de troca. Um papel na bolsa de valores que, conforme o contexto, pode ter seu valor em alta ou em queda. 

Finalmente, George Dorset, que propõe um casamento com Lily como forma de vingança contra sua esposa, Bertha Dorset. Ambos foram vítimas de uma situação criada por Bertha que faz todos acreditarem que Lily e George tinham um caso. Um casamento entre eles, nas condições que são colocadas, seria uma volta por cima e um “cala boca” contra Bertha. 

Lily tem ainda um segredo em suas mãos que envolve alguns destes personagens, mas ela decide manter-se firme, justa, não faz uso desta “carta” e decide procurar um emprego. Tenta sobreviver com a ajuda da única amiga que não lhe deu as costas, mas tudo torna-se cada vez mais difícil. Pequenas situações vão sendo criadas e cada vez mais ela vai sendo isolada de sua sociedade. Mas é como se, sem um casamento, ela não conseguisse. Não importa o quanto tentasse e o que fizesse, a impressão é que Lily seria mau vista, manipulada e desamparada enquanto estivesse solteira e só um casamento poderia salvá-la. Além disso, a dívida com Gus Trenor vai consumindo seu coração e suas noites... Até que uma hora ela não consegue mais dormir e não dá mais. 

Neste romance, Edith Wharton constrói personagens dúbios e situações constrangedoras que nos fazem nos sentir desconfortáveis. A autora também consegue nos passar o sentimento crescente de solidão. A cada página, junto com a situação cada vez mais difícil de Lily, a desolação vai crescendo em nós leitores. Um desespero que culmina em tristeza e desamparo. Muito recentemente a José Olympio do Grupo Editoral Record lançou uma nova edição com tradução de Julia Romeu. Recomendo fortemente. 

O título A Casa da Alegria vem do livro de Eclasiastes 7:4. É como se o coração de Lily, enquanto vivia de forma tola e descompromissada em seu círculo rico e aristocrático, fosse feliz – ou pelo menos se sentia feliz. Mas conforme seu mundo vai se tornando nu e cru, o lado mais perverso das pessoas vão sendo escancarados e sua preocupação com dinheiro lhe consome, seu coração cada vez mais caminha em direção à casa do luto e lamento. 

Quando o livro é bom, mas os santos não batem

Antes de virar o mês, um rápido registro sobre a última leitura finalizada. Vai ser rápido porque não vou ficar aqui reclamando. Se for para falar muito, que seja para falar bem. 

A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin, foi um dos livros mais arrastados que eu li na vida. Eu não sei como não desisti. É um gênero totalmente fora da minha zona de conforto. Não costumo ler fantasia e muito menos ficção científica. Na virada de 2020-21, li a trilogia "O Problema dos Três Corpos", de Cixin Liu e, por mais que eu tenha gostado dos dois primeiros volumes, o terceiro não consegui terminar. Quando a narrativa fica abstrata demais, eu não consigo acompanhar.

Cheguei em "A mão esquerda da escuridão" por causa do clube do livro do Querido Clássico. Eu gosto de ler autores novos, me desafiar em leituras desconhecidas e, por isso, acho que não desisti do livro. Infelizmente, não consegui participar do encontro. Tivemos feriado de Dia de Ação de Graças aqui nos Estados Unidos, fomos viajar, tivemos corrida de rua no dia, mais fuso horário, um cansaço enorme e eu dormi a tarde inteira perdendo o encontro. 

De qualquer maneira, eu dei uma chance ao livro até a última página e não gostei.

Eu li algumas resenhas e achei que o livro merece a importância que ele tem. É bastante original o universo criado pela autora. Também reconheço o valor de uma mulher escrevendo ficção científica, um gênero tão dominado pelos autores homens. 

Mas, infelizmente, não deu. Eu demorei muito para compreender e engatar naquele universo. Ela já chega contando as coisas e a pessoa sem imaginação aqui sentiu falta de uma introdução. Fiquei perdida demais até meados do livro. Quando um dos protagonistas é capturado e levado para uma espécie de campo de concentração daquele planeta onde se passa a história, ficou mais interessante, mas ele logo é resgatado pelo outro protagonista e, pelas 100 páginas seguintes, eles atravessam um deserto de gelo. Tão difícil para eles quanto para mim, que achei a leitura desta parte tão desolada quanto o próprio cenário. Me deu sono, cansaço, preguiça e uma dificuldade imensa de continuar. Neste aspecto, muito realista a narrativa.

Única coisa que lamento foi não ter consigo participar do encontro, mas ler um livro e não gostar faz parte. Quanto mais a gente lê e se expõe, maiores as chances de encontrarmos algo com o qual não temos afinidade. 


Manual da Faxineira, de Lucia Berlin: seus contos são como um mergulho em alto mar

Tem uns livros que mexem com a gente e se tornam marcos de passagem. A gente é um antes e se torna outro depois que acabaram as páginas. Claro que são pouquíssimas as obras que conseguem ganhar essa estrelinha de reconhecimento. No meu caso, A Manual for Cleaning Woman de Lucia Berlin (1936-2004) ganhou. Não é só por causa do livro em si. Para ganhar esse status, a obra precisa ser também lida no momento certo. Há um ano, Lucia Berlin não teria me tocado tanto como agora. 


A Manual for Cleaning Woman foi traduzido e publicado no Brasil com o título "Manual da faxineira" pela Companhia das Letras, mas eu peguei o livro na NYPL e foi em inglês mesmo. Cheguei até ele porque no curso de crônica que fiz pela Escrevedeira, o professor discutiu as diferenças e semelhanças entre os gêneros conto e crônica e, entre outros exemplos, nos enviou o conto Melina

Quando comecei a ler Melina, foi como um mergulho em alto mar sem tanque de oxigênio. Conforme foram avançando os parágrafos, eu ia cada vez mais fundo. Eu estava tão envolvida que praticamente não conseguia piscar. Quando acabei, foi como se em apenas um segundo eu estivesse na superfície recuperando o fôlego. Não são todos, mas são quase todos os contos escolhidos para esta coletânea trazem essa experiência. No texto de introdução da coletânea, Lydia Davis se pergunta "por que não conseguimos parar de ler um conto de Lucia depois que começamos?". Ela traz algumas respostas técnicas, mas para mim, no meu caso, é porque eles estavam falando diretamente comigo. 

Lucia Berlin nasceu no Alasca numa família americana, morou em algumas cidades dos EUA e viveu com seus avós maternos no Texas enquanto seu pai combatia na Segunda Guerra Mundial. Quando retornou, a família mudou-se para o Chile, onde ela passou boa parte da infância e adolescência. Ela voltou para os EUA somente quando começou o college em Albuquerque, New Mexico. Berlin nasceu com um problema grave na coluna, ela não viveria muito nem poderia ter filhos, disseram os médicos. Mas acabou se casando três vezes, teve vários amantes e quatro filhos. Trabalhou como recepcionista em hospital, diarista, professora, e foi mãe e dona de casa. Enfrentou anos de alcoolismo e por muito tempo lutou contra sua dependência. 

É desse cenário, a sua própria vida, que Berlin tira as referências para escrever seus contos. Li por aí que ela escreve autoficção. Não vou entrar na questão técnica, mas adianto que para mim autobiografias e biografias já são um tipo de ficção. Por que dizer que a água é molhada? Acho que suas histórias são tão bem narradas e envolventes que o leitor fica procurando "verdades", mas como é impossível negar a ficcionalização diz que é "autoficção". Berlin não escreve seus contos dizendo que são autobiográficos tampouco se os fatos narrados aconteceram de verdade, ela diz que o que importa "é a estória"*.  

Manual da Faxineira tem 43 contos que têm como cenário os lugares onde Berlin viveu e as pessoas com quem conviveu. Eu não li tudo de uma vez. Os contos são tão envolventes que no meio fiz uma pausa. Li outros dois livros neste interim e só depois retomei. 

Alguns contos são sobre coisas aparentemente banais, como os que se passam nas lavanderias coletivas: é como se nós ficássemos um dia como turista (ou antropólogo) em lavanderias norte-americanas com Berlin vendo como funciona essa lavação de roupa que máquinas, secadoras e espaços são divididos com pessoas tão diferentes. Justamente neste momento em que me mudei para os EUA e estou tendo que aprender a usar estas máquinas e dividir a lavanderia com desconhecidos. Um "lugar" que fica exatamente na divisão entre o  público e privado. Pessoas que você nunca viu e nunca verá novamente vê as roupas que você usa em momentos de intimidade e você vê as delas. Pessoas que dividem com você uma atividade doméstica fora de casa. 

Os contos de sua adolescência no Chile me tocaram de forma profunda. Principalmente porque muito recentemente eu vi os Andes, os chilenos e a Santiago sobre a qual ela fala. Em um conto, quando é mencionada a Embaixada dos EUA, eu pude com muita clareza visualizar o prédio e lembrar do dia que eu estive lá. Seu conto era tão real. Tão palpável. Era como se as palavras pudessem se materializar na minha frente.

Em Good and Bad, Berlin narra em primeira pessoa (acho que todos são em primeira pessoa, se não me engano) a relação de uma aluna e sua professora freira comunista. Foi uma das coisas mais incríveis que eu li em toda a minha vida e eu não estou exagerando aqui. Good and Bad  é sobre a adolescente Lucia, americana, estudando e vivendo no Chile, seu pai é funcionário do governo dos EUA, e uma de suas professoras tenta convencê-la de que aquele seu mundo rico e privilegiado é opressivo. Por isso, passa a levá-la, todo fim de semana, em orfanatos, instituições de caridade, recitais de poemas e reuniões de agricultores e classe operária chilena para ela ouvir e conhecer "os oprimidos". 

Em nenhum momento Lucia fala de bem ou mal explicitamente, ela não discute moralidade em tons abertos, ela apenas vai narrando os acontecimentos e escancarando como tentar definir o que é bom e o que é mal na sociedade e na política é impossível e sufocante. Não há dualidade. Na verdade, só há lamento. Ela viveu no Chile nos anos pré-golpe e neste conto ela está descrevendo, do ponto de vista da menina estrangeira, justamente este momento histórico.

Mas Good and Bad é uma exceção, pois é o único que traz essa abordagem política de forma tão aberta. Os outros contos trazem as dores da existência e do constante sentimento de estar fora de lugar no cenário mais cotidiano e banal.  A narradora dos contos está sempre deslocada, não importa onde e com quem ela esteja. 

Os contos que se passam no hospital são tristes. Trazem temas como infanticídio, alcoolismo, abuso infantil, aborto e a finitude da vida. São tratados com frases curtas, rápidas, e por isso parece que o mergulho é de uma vez só. Sua forma de narrar coloca lado a lado a normalidade e o choque que envolvem esses temas. 

Em Bluebonnets, a narradora é uma professora universitária de meia idade, que escreve poemas e faz traduções espanhol-inglês. Ela vai se encontrar com outro professor com quem tem se comunicado por cartas e cujo livro de crítica literária ela traduziu para o espanhol. Ele é misterioso, solitário, cuida com zelo de sua fazenda e, em sua mesa de trabalho, centenas de fichas de estudo. Ela é poetisa, solta, leve. Eles se envolvem de maneira fluída, natural a princípio, mas quando ela diz não entender o que ele diz, a relação fica tensa e impossível de ser quebrada. Ela diz que escreve, mas não entende a teoria sobre o escrever e que aquilo não importa para ela. Ele não compreende, afinal, ela traduziu os livros dele! Ele fica nervoso, se afastam e depois retomam a relação. É uma metáfora linda e intensa sobre a relação literatura e teoria. São conectadas, mas imposssíveis de viverem juntos.

Mijito é sobre uma moça jovem mexicana que, seguindo o amor da sua vida, entra nos EUA. Ele logo é preso por envolvimento com tráfico de drogas e ela fica sozinha. Ela mal fala inglês, não tem família e descobre estar grávida. É acolhida de forma temporária por conhecidos do marido, que a tratam mal, abusam de seu trabalho para serviços doméstico e fisicamente de seu corpo. 

Seu bebê nasce e chora. Chora muito. Ela não tem ninguém. Tudo acontece de forma que o labirinto que ela esteja vivendo fique cada vez mais complicado e impossível de achar a saída. Ninguém ajuda, explica, acolhe. O parágrafo no qual ela começa a enumerar o vocabulário em inglês que ela conseguiu apreender até ali é de cortar o coração. Ela está tão perdida e desamparada que o conto culmina com um dos finais mais tristes de toda a coletânea. 

Em  So Long, como um simples "Hello" pelo telefone pode fazer ela mergulhar na lembrança e na saudade de quem ela é ao falar inglês, depois de tanto tempo morando no México falando apenas espanhol. "Of course I have a self here, and a new family, new cats, new jokes. But I keep trying to remember who I was in English." 

Unmanageable é desesperador. Conto curto, poucas páginas. É sobre a agonia de uma mulher alcoolatra que acorda sufocada na madrugada e precisa de uma bebida, a todo custo, e ainda estar em casa a tempo de preparar o café da manhã para os filhos. 

Apesar de tantos cenários diferentes, o sentimento de deslocamento e solidão estão presentes em todos os contos. Eu sempre falo aqui que leitura, para mim, é experiência e que as resenhas deste blog não são uma análise "inteligente" dos livros que leio, mas sim um registro da experiência que tive com cada leitura. Pois bem, A Manual for Cleaning Woman foi uma das mais intensas dos últimos tempos. Me deixou feliz, triste, agoniada e pensativa. Recomendo para todos que estejam procurando uma narrativa envolvente que nos faz esquecer de comer e dormir para não abandonar a leitura. 


Obs: sobre o título desta postagem, em um dos contos a narradora passa um tempo com mergulhadores, num povoado isolado do México.  E é um conto tão mágico e envolvente que parece que podemos sentir a pele molhada e o cheiro do mar enquanto mergulhamos com ela. 

*Na introdução da coletânea Evening in Paradise, o filho de Lucia Berlin, Mark Berlin, diz: "Our family stories and memories have been slowly reshaped, embellished, and edited to the extent that I'm not sure what really happened all the time. Lucia Said this didn't matter: they story is the thing." 

A leitura de Drácula, Bram Stoker, e meu primeiro Halloween em Nova York

Havia um tempo que não lia nenhuma obra do século XIX. Por mais que meu preferido seja o século XX, eu gosto muito de me voltar aos clássicos mais antigos vez ou outra. Drácula foi a oportunidade de corrigir esse erro, ler algo temático com o Halloween e voltar a ler com os grupos de leitura. Por causa do ano cheio de mudanças, não consegui acompanhar as leituras coletivas do Querido Clássico em 2021. Mas agora que estou já bem instalada e minha vida voltou ao normal, pude corrigir também este outro erro. 

Drácula não foi o primeiro livro que peguei na New York Public Library, mas foi o primeiro livro que terminei e será devolvido. Isso traz um carinho especial para a leitura, porque tirar a carteirinha da biblioteca teve um significado especial para mim: o sentimento de pertencimento, de casa. Depois de tanto tempo "em transição", vivendo no Brasil, Chile, Brasil de novo e esperando as fronteiras abrirem, tirar a carteirinha da NYPL significou "agora aqui é meu endereço por um bom tempo e essa é a prova!". É também mais um jeito legal de interagir com a cidade. Afinal, a NYPL é muito "Os caçadores de fantasmas". 



Apesar da referência do filme, eu não preciso ir até o prédio com a fachada e a sala de leitura famosas. Existem várias unidades menores pela cidade e uma muito perto da minha casa. É lá onde tenho indo retirar os livros que peço para reservar pelo site. É menos glamuroso, mas facilita muito a vida! 

Agora voltando ao Drácula

É uma ótima experiência ler do começo ao fim uma obra onde estão todas as referências que vemos em tantos outros lugares. O "arsenal vampiresco" que eu tinha era picotado: pedacinhos que a gente vê lá ou aqui. Então quando eu li a origem de tudo isso, junto e de uma vez só, algumas coisas se iluminaram e também tive surpresas. 

Por exemplo, o fato de que o Drácula não tem voz no livro. Em nenhum momento. Tudo o que sabemos dele é pelo relato de outras pessoas. Poderíamos dizer, talvez, que o Drácula nem existiu e tudo foi um delírio coletivo daquelas pessoas ali envolvidas. 

Outra surpresa foi a estrutura narrativa. Eu não esperava que ela fosse formada por cartas, trechos de diários e notícias recortadas de jornal. A primeira vez que li algo assim foi "O médico e o monstro" e eu adorei. É preciso ter paciência com esse tipo de leitura, mas é legal porque vamos montando o quebra-cabeça da história. Especialmente em Drácula, a gente vai se deixando seduzir pelos múltiplos narradores. Ainda mais por se tratar de cartas e diários, nós, leitores ingênuos, gostamos de acreditar no que dizem sem desconfiança. 

E assim Bram Stoker nos guia pela leitura de uma história na qual um grupo de quatro homens vão tentar salvar duas moças e a própria Inglaterra das garras do Conde Drácula. Este grupo de cinco homens  é formado por um médico inglês John Seward, o Lord Arthur Holmwood, o procurador inglês John Harker, o americano rico do Texas Quincey Morris e o médico holandês Abraham Van Helsing. As "donzelas" são Lucy Westenra e Mina Murray, que depois se casa com Jonathan Harker e vira Mina Harker. São alguns destes personagens que registram seus dias em diários e trocam cartas que nos contam quem é Conde Drácula e sua história. Sob uma perspectiva do final do século XIX, é praticamente uma história de cavaleiros lutando contra o mal e salvando donzelas inocentes. 

Ano passado eu li "Imunidade", de Eula Biss, publicado pela Editora Todavia, e a autora fala sobre Drácula como uma metáfora para o surgimento de doenças infecciosas, principalmente a sífilis, que é transmitda por sexo/sangue e cuja principal porta de entrada é pelos portos e navios. Exatamente como o Conde Drácula chega na Inglaterra, "contamina" Lucy que, depois, contamina crianças. É a metáfora do Outro, nesse caso o estrangeiro, trazendo doenças e contaminando "a pureza" daqueles que são donos do lugar. Afinal, Lucy, a "luz", é uma moça sensível, jovem e angelical. Uma vez "contaminada" e transformada, ela ataca outros seres mais inocentes: as crianças. 

A narrativa de Bran Stoker é cheia de tensão. Principalmente os diários de Jonathan no Castelo do Conde e, depois, a chegada do Drácula na Inglaterra. Estas foram minhas partes favoritas. Confesso que, do meio para o final, fiquei um pouco cansada. Achei a leitura um pouquinha arrastada, mas minha edição tinha mais de 600 páginas e, realmente, não dá para ter o mesmo ritmo 100% do tempo. 

Outra leitura possível é a da sexualidade (que também é um meio de "contaminação" de doenças e se liga com o que a Eula Biss diz no seu livro, Imunidade). Apesar de "monstruoso" os momentos nos quais o Conde ataca Lucy e Mina e as noivas do Drácula se aproximam de Jonathan, existe sim uma tensão sexual nas entrelinhas. Este ponto, sutil no livro, é exacerbado no filme Dracula de Bram Stoker, de 1992 e dirigido por Francis Ford Coppola. Esta adaptação também conta com algo que não existe no livro: a voz do próprio Drácula. É como se o filme desse a chance para o Conde contar sua versão da história. 

Eu acabei a leitura ontem, dia 30 de outubro, pela tarde. Assisti o filme que mencionei acima a noite e hoje, dia 31, dia de Halloween, foi a videochamada do clube de leitura do Querido Clássico. Foi muito bom! Eu estava com saudades de ouvir as impressões e pontos de vistas de outras pessoas que leram a mesma coisa, mas que tem opiniões diferentes. E isso é muito enriquecedor. A noite, eu e o Allan fomos até a rua 69th, aqui em Manhattan, para ver as decorações de Halloween e as crianças fantasiadas. 

Em geral, foi uma experiência ótima. Muitas coisas se somaram nessa leitura: o primeiro livro que acabei de ler da NYPL, a temática do Halloween e a volta ao Clube de Leitura Querido Clássicos. 







Sobre o médico e o monstro, escrevi sobre ele aqui: Dr. Jekyll e Mr. Hyde - a ambiguidade do público e do privado no homem moderno
O Clube de Leitura do Querido Clássico: Clube do Livro Querido Clássico

Mês 3 (três, ainda) em Nova York – Vivendo a temporada assustadora

Nos EUA, o mês de outubro é spooky season, a temporada assustadora. Passei 31 anos da minha vida menosprezando o Halloween. Achando bobo. Cheguei aqui, comecei a ver a decoração, os doces, as fantasias, as abóboras, a programação de filmes na TV... E, pronto! Me animei. O problema é que esse clima assustador chegou longe de mais e mesmo sem fantasmas, monstros e bruxas, meu mês está sendo horripilante. 

Descobri que meu computador é um conservador. Há 15 dias, programei a atualização do sistema e ele se revoltou. Até então eu não sabia das suas preferências antiquadas. Confesso que, de todos meus eletrodomésticos e eletrônicos, não esperava que o notebook fosse o mais reacionário. Infelizmente, por ter se rebelado, não ligou mais e já está há alguns dias na assistência técnica. 

Como consequencia, tenho vivido na pele o próprio horror do Halloween. Sou um Frankenstein com uma parte faltando. Sem meu computador, meu funcionamento mecânico e intelectual está debilitado. Como escrever, estudar, trabalhar, pesquisar? O celular ajuda, mas é limitado. Não é nada prático deixar dezenas de abas abertas na micro tela ou escrever longos e-mails e textos no teclado touch.   

Nessa história de terror, o marido tornou-se o herói que empunha a espada e desafia as trevas. Me ofereceu seu computador, criou um login para mim e, na medida do possível, ajeitou algumas configurações ao meu gosto. (Quase) tudo perfeito. 

- Amor, posso usar o computador?

- Desculpa, estou trabalhando. 

- E hoje?

- Preciso levá-lo comigo ao trabalho. 

- Talvez agora?

- É horário do almoço. Vamos comer juntos!

- Acho que agora dá. 

- Querida, são 2 da manhã. Vem dormir. 

- Hoje vou ter ele todinho pra mim!

- Mas é fim de semana, vamos passear! Estamos em Nova York!

Apesar das boas intenções tudo piorou, pois um casal viver com horários incompatíveis é tão sombrio quanto mansões mal-assombradas, seres sobrenaturais e cemitérios iluminados pela lua cheia.  O tempo de escrita é egoísta. Demanda exclusividade. O pensamento fica lá matutando, pensando mil formas e pontos de vistas, fazendo listas de assuntos e vocabulários. E aí, quando as palavras querem se materializar, não há o que fazer. É preciso sentar e escrever, porque se perder o momento, já era. Não dá para dividir computador.

Têm sido dias horripilantes estes que estou vivendo. Seria melhor lidar com poltergeists e bruxas do que a ausência de um eletrônico que já virou parte de mim. Há quem fale que isso é dependência, mas não é não. Isto é evolução: antes formado por partes humanas, hoje os Frankensteins são formados por partes biônicas. Deixamos de ser monstros para sermos ciborgues. 

A verdade é que meu cérebro só funciona bem com seus gadgets (mouse, teclado e tela), apps avaliados com 5 estrelas e configuração personalizada. O histórico do google, as senhas salvas automaticamente e a barra de favoritos são tão individualizados que já são partes orgânicas de mim tanto quanto a fome, a sede e o sono.  

Daqui a pouco é noite do dia 31, a mais assustadora do ano. Sob a luz da lua cheia e o som dos lobos uivando, temo o pior: a transição completa do eletrônico para o analógico. E aí, socorro!, voltarei para as canetas e caderninhos de anotação! 



- Sim, amor, já estou deslogando. Pode vir.  



                                                Photo by Beth Teutschmann on Unsplash

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Hoje uma crônica temática! E assim concluí as quatro crônicas do curso. Quem quiser ver as outras, segue os links: 

Mês 2 (dois) em Nova York

Mês 2,5 (dois e meio) em Nova York: brazilian com b minúsculo

Mês 3 (três) em Nova York – a vitória dos ratos


Mês 3 (três) em Nova York – a vitória dos ratos

Desta vez, não vou esperar a aula do curso para postar a crônica da semana. Então aí vai. Só preciso fazer uma ERRATA antes. Na crônica Mês 2 (dois) em Nova York onde eu escrevi "dióxido de carbono", leia-se "monóxido de carbono". O importante é que a ideia ficou clara! rs Perdoem esta historiadora que viu pela última vez um pouco de química anos atrás no vestibular. 

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Esses dias, num sopro de inspiração, peguei um livro e fui ao Central Park. Banco na sombra, outono, raios de sol, brisa agradável. Me senti numa cena de filme ou num desses seriados de comédia romântica com risadas gravadas ao fundo. O momento parecia tão mágico que ouvi um barulhinho de folhas secas se movimentando e logo pensei ser um esquilo. Estava com o celular na mão para tirar foto e  mandar para o grupo da família quando vi que era um rato. 

Além de falar inglês, o rato nova-iorquino é bem nutrido. Não se compara aos ratos que eventualmente vi em São Paulo. Na Big Apple, o rato está mais para uma capivara bebê do que para um roedor. Me pergunto como uma das maiores e mais cobiçadas cidades do mundo não conseguiu controlar ainda sua população de roedores. Cheguei na teoria de que, na verdade, já viraram moradores permanentes e são eles que permitem nós vivermos aqui. É só prestar atenção nas sutilezas. Por exemplo, todo mundo já viu, ou pelo menos já ouviu falar no filme Stuart Little, cujo roteiro é de um ratinho órfão adotado, amado e cuidado por uma família de humanos.  

No contexto mundial, a relevância do rato nova-iorquino só é meaçada pelos ratos parisienses que, tão famosos quanto, também têm um filme só para eles. Mas na versão francesa, o protagonista-roedor quer ser um chef. Numa inversão de valores, não só o rato passa a alimentar o humano, como também faz de tudo para agradar seu paladar. É o ápice da domesticação. Reflito qual dos filmes é pior: aquele no qual o rato é amado e cuidado como se fosse uma criança ou aquele no qual o rato, escondido sob o chapéu de cozinheiro, manipula seu amigo humano desprovido de habilidades motoras e dom culinário. 

Os egípcios cultuavam os gatos e os hindus vêem sacralidade na vaca. Com certeza, em Nova York, o animal sagrado é o rato. Sua onipresença foi normalizada e o nova-iorquino, submisso, docilmente vai cedendo mais e mais espaço. Eu mesma, no dia do parque, logo me levantei e o deixei sozinho contemplando o dia de outono. Não quis incomodá-lo e saí pedindo desculpas. Outro dia, na corrida matinal, um rato repousava sem vida na pista de exercício. Presenciei um quase acidente entre um ciclista e um corredor que, ao desviarem do corpinho sagrado, quase se chocaram. Antes um acidente entre dois esportistas do que alguém encostar e ferir a integridade do pobre animal sem vida.

Em toda sua existência, o homem procurou entender e controlar a natureza para sua própria sobrevivência e desenvolvimento social. Somente com o avanço da ciência pudemos compreender fenômenos naturais que antes eram explicados pela imaginação humana. Leviatãs, monstros e seres mitológicos eram representados como inimigos que deveriam ser combatidos e enfrentados. Século XXI e, apesar de tanto progresso, os homens continuam sem entender a natureza. Destróem florestas, poluem mares e ecossistemas inteiros enquanto na cidade-capital do mundo quem reina são os ratos. Animais estes que, longe de inimigos, são representados como inocentes roedores órfãos e aspirantes a chef de cozinha. 

Com tanta personalização, temo pelo dia que verei ratos sobre as duas patas traseiras, tal como os porcos de George Orwell, pedindo para verificar a validade do meu visto. 

A obsessão do nova-iorquino com ratos é tamanha que no último domingo fomos de bicicleta até uma feira de antiguidades e artesanato e encontramos estes aventais a venda. 20 dólares cada. 

Mês 2,5 (dois e meio) em Nova York: brazilian com b minúsculo

Segue minha segunda tentativa de escrever crônica. Espero que vocês gostem. Para me dar uma moral, se vocês gostarem, me dêem um joinha nos comentários. 

Meu marido uma vez me disse uma coisa muito verdadeira: Bolsonaro consegue fazer as pessoas ficarem vidradas por ele. Seja amando-o ou odiando-o. As pessoas conseguem só pensar, falar, seguir cegamente ou vociferar contra o Bolsonaro. O tempo todo, em toda mídia, plataforma ou conversa de bar. Aconteceu isso com meu texto durante a aula. Apesar da ironia de tratar Bolsonaro com a descrição de "ilustríssimo", a crítica que recebi é que passei pano para o nosso agradável presidente. O resto da crônica estava até ficando esquecido, quando foi salvo de afogamento no último segundo e, brevemente, elogiado pelo jogo de palavras.

Bom... Nesses momentos de radicalização que estamos vivendo, a ironia está em perigo. Então, afins de esclarecimento: não, não sou bolsonarista. Não estou passando pano para ele. 


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Nada para afirmar nossa identidade nacional do que estar fora do país. É só colocar o pezinho na gringa que toda a brasilidade floresce nas veias. Já começa no aeroporto enquanto esperamos o embarque. Aquele pãozinho de queijo superfaturado de qualidade duvidosa, que é maravilhoso porque “lá não vai ter pão de queijo”.  Esses dias o presidente do Brasil pisou em terras nova-iorquinas e foi noticiado que, por não ter se vacinado, teve que almoçar do lado de fora de um famoso restaurante de rodízio de carne. Vi gente incrédula nas redes sociais: além de não estar vacinado, mal tinha chegado nos EUA e o ilustríssimo foi comer em um restaurante brasileiro.

Mas só quem está longe sabe a carência que as referências de casa dão na gente. Há uns 15 dias, fui com meu marido numa exposição da grife Christian Dior. Lindo, maravilhoso, mas tudo o que procurávamos nas capas de revistas penduradas e nos vídeos de desfiles passados era a nossa querida Gisele.

Em São Paulo, por motivos de dieta, a farofa era alimento proibido em casa. Preferia seguir o cardápio da nutricionista e comer avocado toast e overnight oats com whey. Agora, estou até sonhando com uma farinha de mandioca torradinha com bastante manteiga de garrafa e um cuscuz de tapioca molhadinho no leite de coco.

Quando me mudei, bastava ouvir uma pessoa falando português na rua, ver uma bandeirinha verde e amarela em qualquer lugar, ou até um Brasil escrito com Z, que já vinha o  sentimento de “estou em casa” no coração. Até notar na frente de todo salão de beleza, a palavra brazilian. Nada me incomoda mais nessa terra e idioma do que brazilian com letra minúscula significar depilação íntima completa.

No português brasileiro somos muito mais amigáveis. Americano pode ser tanto o jogo de mesa que substitui a toalha, quanto o copo, no qual tomamos café na bancada da padaria. Outras nacionalidades também gozam de prestígio. Na culinária temos a torta holandesa, pão australiano, pão francês, palha italiana, iogurte e salada grega. Na academia, os puxadores de pesos classificam o agachamento búlgaro e a puxada romana exercícios importantíssimos. Nos salões de beleza, depilação egípcia é aquela feita com linha e francesinha é a delicada pintura de base com um detalhe branco na ponta da unha. Canivete suiço, corredor polonês e soco inglês impõem medo e respeito. Talvez só espanhola tenha um significado tire-as-crianças-da-sala.

No inglês, sortudo mesmo é o francês, que na culinária podem ser as amadas french fries ou o reconfortante french toast e, na sedução, french kiss é aquele beijo dado com língua. Ou seja, o beijo que importa. Em polissemia bilíngue, talvez o ganhador seja o Peru, tanto o animal quanto o país, cuja tradução é Turkey, o mesmo animal, mas outro país.

Mesmo diante de um universo de possibilidades de letras e palavras, brazilian é a extração com cera quente de pêlos pubianos na frente, lados, atrás e no ânus. Na descrição oferecida pelo profissional é “toda a linha do biquíni, mais interior das coxas e a faixa do bumbum. Obs: não inclui as nádegas”.

Queria que brazilian fosse qualquer coisa que trouxesse uma alegria inocente, um sabor doce, uma técnica ou objeto de respeito. Mas, infelizmente, é o púbis depilado do carnaval e o presidente que não toma vacina. O jeito é continuar fazendo brigadeiro e pão de queijo para os gringos experimentarem na esperança, de que um dia, a gente possa revolucionar essa língua pelo estômago, porque por outros meios já é causa perdida.

A leveza e alegria de "Nu, de Botas", Antonio Prata

Vou fazer apenas um comentário breve sobre esta minha última leitura. Nu, de botas foi um presente. Todos nós devemos nos autopresentear de vez em quando, nos dar aquele mimo. Pode ser um horário no salão de beleza, uma massagem, um sapato novo, uma ida ao cinema... Mas, recomendo fortemente a leitura de Nu, de Botas como um agrado à alma. 

Antonio Prata nos oferece uma leitura leve, engraçadíssima e cheia de afeto. As crônicas são memórias do autor quando criança, narrada com a inocência infantil de quem está descobrindo o mundo e acha algumas coisas do mundo adulto um tanto quanto "bizarras". 

Para quem nasceu nos anos 70 e 80, o livro é um grande álbum de recordação. Eu nasci em 1990 e, por mais que algumas coisas já não eram do meu mundo, como o programa do Bozo, eu pude relembrar minha ânsia e desespero discando o telefone com o discador redondo e pesado para os outros programas de auditório infantis da minha época. 

As últimas gerações da infância sem tablet, computador, videogame, completamente sem internet, recheada apenas de brincadeiras na rua e televisão. As crônicas de Nu, de Botas são uma homenagem a esta infância analógica que chegou ao fim. 

Mas mesmo que isso não seja um assunto de interesse, a leitura vale a pena apenas pela risada. Há um texto em particular, sobre a vez que Antonio e suas irmãs estão na estrada e, de dentro do carro, flagram uma cena de sexo oral em outro carro parado no acostamento. A algazarra é imensa. Como ele aponta, aquilo que viram desafiava toda a ordem conhecida. Era como ver um disco voador, um fantasma ou um leão em plena avenida central. O desenrolar dessa história é uma tragédia cômica até o fim. Eu estava lendo essa crônica de manhã, enquanto o Allan ainda estava dormindo, e o esforço que fiz para não gargalhar alto e acordá-lo foi sobrehumano. 

Enfim... Neste blog são tantos os livros melancólicos. Falar um pouco aqui sobre a leveza e bom humor de Nu, de Botas me fez feliz. Como foi minha experiência de leitura com esta obra: divertida e alegre.


Há uma outra crônica na qual o autor fala das artimanhas para não sair da cama pela manhã e ir para a escola. Aquela cama gostosa, o "casulo de cobertas", a "perfeição quase uterina". Depois de muito calcular, ele diz para a mãe "Ai, to me sentindo mal...". A narraçao de toda essa manha teatral segue um caminho que absolutamente todos nós nos identificamos, mas eu pude ver ali o Allan, meu marido, e lembrei imediatamente desta foto que um dia sua mãe lhe enviou por WhatsApp. Era como se esta fosse a imagem da crônica, como se Antonio Prata estivesse falando exatamente desse dia da infância do Allan.
 

Mês 2 (dois) em Nova York

Neste último ano venho escrevendo sobre meu processo de mudança do Brasil para os Estados Unidos. Diante de tanta coisa nova e desse choque de realidade, pensei em me aventurar um pouco na escrita. Por isso, entrei para um curso de crônicas e a ideia é escrever um pouco - num estilo cômico porque "rir é o melhor remédio", as coisas que tenho observado e vivido na Big Apple. Então vou expandir um pouco, pelo menos por enquanto, o uso deste caderno/ blog e, além de um diário de leitura, vou publicar também essas tentativas de crônicas.

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Desde que me mudei para Nova York, nunca fui tão esperançosa. Tenho vivido no limite o ditado “a esperança é a última que morre”. Só que toda vez, no fim, eu só insisti no erro. Quem nunca? A gente até pode adiantar o problema e aquela desconfiança escondidinha lá no fundo da mente diz que vai dar merda, mas, como a esperança é a última que morre, a gente vai lá e faz.

Primeiro foi a roupa na secadora. Quantas vezes a gente já não viu em filme e seriado norte-americano o coitado que colocou a roupa na secadora e ela saiu encolhida? No Brasil não tinha isso. Secadora, em terras tropicais, é luxo luxuosíssimo. Do varal, a roupa saía sempre perfeita. Às vezes, era o uniforme escolar que passava a noite atrás da geladeira quando fazia muito frio e a gente precisava dele para a manhã a seguinte, mas isso nunca foi problema. Agora aqui em Nova York, eu não tenho varal, tenho secadora. Fiquei mais chique (!), pensei. Lavei, saquei, dobrei elas ainda quentinhas, dei aquela olhada atenta, espremendo os olhos e... Perfeito! Até o marido vestir seu jeans escuro e ver suas canelinhas de fora no espelho.

Depois aconteceu o alarme de monóxido de carbono. Nada mais nobre do que um sensor que dispara para evitar incêndio, mas ainda não sei como conciliar esse recurso que evita tragédias com a minha carninha grelhada. Na primeira vez, junto com o alarme, disparou meu coração. Como eu iria saber? Apartamento antigo, não tem exaustor e a janela aberta não foi suficiente. Na minha cozinha brasileira, também não tinha exaustor. Tinha fumaça? Sim, mas, de novo, isso nunca foi um problema. Na segunda vez, fritei o bife com um ventilador apontando para a panela. Como uma artista de malabares, a mão direita segurava o pegador que virava a carne e a mão esquerda segurava o ventilador. Na terceira vez, bateu uma preguiça e fui confiante. Dispensei o ventilador. Pois é, o alarme disparou. Agora estou considerando entrar para o movimento Segunda Sem Carne antes que os bombeiros batam aqui na minha porta.

Também teve a vez da pia da cozinha. Morei em algumas casas alugadas no Brasil e fosse a pia de inox ou de pedra, elas tinham uma borda que impedia que a água caísse no chão. Mas aqui em Nova York, isso não existe. A pia é reta. Nas primeiras vezes, me convenci que “ia dar nada”, mas lavar a louça se tornou uma inundação constante da cozinha. Descobri nas lojas um paninho de pia profissionalizado: ele tem o formato de um mini tapete e promete absorver toda a água da louça que escorre. Inteligente, se ele aguentasse o tranco e não vazasse depois da terceira panela.

Mas complicado mesmo tem sido o tempo de locomoção. Em São Paulo, eu já dominava as ruas e trajetos melhor que a moça do Waze. Sabia qual seria o melhor caminho – bairro ou avenida?, horário, dia da semana e meio de transporte para chegar a qualquer ponto. Ainda tinha a pachorra de olhar no Google Maps e pensar “ai ai... deixa eu te ensinar aqui que eu sei outro caminho melhor”. Agora aqui nas ruas nova iorquinas, não importa a hora que eu saia ou o quanto eu fique torcendo para que não haja problemas, alguma coisa vai acontecer. O metrô vai demorar, o taxi não vai passar, o prédio do elevador vai estar congestionado, ou simplesmente nada acontece e eu ainda estou atrasada sem entender por quê! É só olhando para o relógio e percebendo que “É. Não vai dar tempo mesmo. Vou chegar atrasada e paciência!” que a esperança, que é a última que morre, morre de vez. E chego lá com cara de paisagem, diva, me fingindo de completa desentendida. 



Dia 1 em Nova York. Times Square. Julho de 2021. 

Memórias, Patti Smith, Just Kids, Nova York e o 11 de Setembro - reflexões jogadas que dizem tudo e ao mesmo tempo nada

Na Broadway, altura 116, acontece às quintas e domingos uma feira de produtores. Tínhamos ido comprar uns leguminhos para o almoço e vimos uma barraca vendendo second-hand books. Na hora, os olhos do Allan vibraram. Eu sou um pouco resistente à ideia de comprar livros físicos. Nossa vida de mudanças e a situação intermediária de estar neste apartamento por no máximo dois anos me desanima a comprar algo que terá um peso daqui um tempo. Mas o Allan sempre me lembra que precisamos - também - viver o momento e ele se animou em marcar este início de nossa vida em Nova York com novos livros, comprados na Farmer's Market de Columbia. 

Havia uma boa seleção de titulos e quando vi Just Kids, Patti Smith, não pensei duas vezes. Que melhor leitura para marcar minha recente mudança para Nova York do que as memórias da poeta e cantora que começou sua carreira artística aqui - em Nova York? 



Memórias é um gênero interessante porque ele permite uma flexibilidade que outros gêneros englobados pelo guarda-chuva "escrita de si" não tem. Ao contrário de (auto)biografias, memórias tem um compromisso menor com a "verdade", ou com a "história". É um gênero mais flexível que permite ao narrador recortar o período e o tema que quiser de sua vida e contar, assumidamente, que aquele é seu ponto de vista e é dessa maneira que ele se lembra. 

É assim que Patti Smith nos conta sobre seus anos vivendo em Nova York e o início da sua carreira artística. Corajosamente, ela sai da casa dos pais com o mínimo de recursos possíveis e vai para a Big Apple. Passa fome, dorme nos parques, mas aos poucos vai conseguindo se instalar, arranja empregos que permite o mínimo de sustento e encontra Robert Maplethorpe. 

Just Kids é sobre Patti e Robert em Nova York. Não é sobre si que ela escreve, é sobre eles na cidade onde se conheceram e viveram. Depois de brevemente falar sobre sua infância, o livro começa com o encontro dos dois e termina quando Patti se casa, muda para Detroit e Robert, que permanece em Nova York, morre. Por isso, por mais flexível que o gênero memórias possa ser, é limitante pensar que Just Kids é só isso. É também uma homenagem a Robert. 




Uma homenagem póstuma belíssima. Patti fala sobre Robert com carinho e uma humanidade gigantesca, sem cair em pedantismo. Temas como sexualidade, drogas, BDSM e arte são tocados com naturalidade. Sem julgamentos e sem juízos de valores. Patti nos fala de fome e prostituição com muita leveza e, assim, viramos as páginas, uma atrás da outra, como se estivéssemos andando pelos blocks de Nova York... Um atrás do outro, vendo o tempo passar e as mudanças acontecerem com muita tranquilidade. 

A Nova York de 1970 de Patti é incrível. Eu adorei como ela coloca a cidade quase como um outro personagem. A gente até poderia lamentar as mudanças de lá para cá, mas ela não coloca estes lugares de forma nostálgica. Patti, em nenhum momento, narra de forma idealizada sua juventude com Robert. Ela simplesmente narra. De forma poética. Simples. E essa simplicidade não dá espaço para nostalgia, tampouco idealização. É apenas homenagem e poesia. 

Eu queria ter ido visitar alguns dos locais que ela menciona no livro. Muitos foram transformados em grandes lojas de rede ou em prédios espelhados, mas mesmo assim eu queria ir. Não foi possível, porque estamos aqui em casa nos recuperando de Covid e decidimos não fazer passeios muitos grandes. Mas, durante a atividade física pela manhã, fiquei refletindo um pouco sobre o que significa estar fisicamente em Nova York neste 11 de Setembro e ter lido este último livro. 

Como pode tanta coisa acontecer ao mesmo tempo numa cidade? Como pode tantas linhas temporais num mesmo lugar? Patti chega em Nova York em 1967, se instala no Brooklyn, depois muda-se para Manhattan, onde vive até 1979. As Torres Gêmeas foram inauguradas em 1973, o que significa que durante sua construção e seus primeiros anos de vida, Patti e Robert estavam andando ali pertinho, por Greenwich Village. Em 2001, as Torres Gêmeas são atacadas. Eu era criança e, lá da periferia do ABC Paulista, eu entendi nada do que estava acontecendo e passando nos jornais. Fui entender apenas em 2018, quando vim para Nova York pela primeira e visitei o 9/11 Memorial. 

Só andando ali nas ruas do Financial District e vendo a profundidade e extensão de onde estavam os prédios e a movimentação das pessoas, deu para sentir o impacto do que aconteceu. Foi aí que compreendi. 

Me desculpem, mas neste texto disse muita coisa dizendo nada. Confusamente, na minha cabeça, parece que tudo tem relação, mas não necessariamente. Compreendo o trauma do 11 de Setembro e estar aqui, nesta cidade neste momento, faz eu compartilhar a dor da ferida que ficou em Nova York. Talvez, minha homenagem tenha sido esta leitura. Meio que sem querer, ler Just Kids foi um pouco além de ler sobre Patti e Robert, foi também ler sobre suas vidas em Nova York e sentir um pouco as transformações históricas dessa cidade que, em tão pouco tempo, é capaz de mudar tanto. 


9/11 Memorial. Fevereiro de 2018. 


9/11 Memorial. Novembro de 2019


A insustentável leveza do ser: exilados em sua própria terra

A primeira vez que li "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera, foi, muito provavelmente, há 10 anos. Eu era estudante de graduação em História e morava ainda numa pensão de estudantes perto da USP. Um colega, que estava no mestrado em psicologia leu este livro, disse que era muito bom e me emprestou. 

Curioso que, na época, eu não tinha muitas referências sobre Praga, Tchecoslováquia, Boêmia, Primavera de Praga, 1968, Exército Vermelho, comunismo, literatura pós-moderna... Tudo era meio confuso e eu conhecia as palavras, mas não os conceitos ou a história. Não que agora eu seja uma especialista, mas pelo menos estes assuntos não são mais de outro mundo. Me lembro que, na época, eu li rapidíssimo. Achei provocante. Bonito e misterioso. Mas se alguém me perguntasse sobre o que o livro falava, eu talvez teria dito: 

- Ahn... Fala sobre amor. Uns casais que tentam se entender, mas não conseguem. Num país que foi comunista. 

E depois disso eu apaguei. Pouquíssimas coisas do romance ficaram registradas na minha memória. Quando fui para Praga em 2019, tudo o que eu lembrava era que eu havia lido um livro cujo autor era tcheco e cuja história se passava nesta cidade. Só. Eu não lembrava do nome dos personagens, tampouco de Karenin. Muito menos da resistência tcheca contra a ocupação soviética. 

Só retomei a leitura porque vi uma blogueira compartilhando este livro no Instagram (me julguem) e me toquei como tão pouco eu me lembrava do que tinha lido. E fiquei me perguntando como uma narrativa tão densa e nada óbvia tinha ganhado projeção nas camadas mais superficiais das redes sociais. Fui lá na Amazon e comprei.  Eu não fui atrás para ver o que esses influencers falaram sobre o livro, mas tenho uma teoria que vou dividir com vocês no final do texto. 



Acho que os motivos de todo esse "apagamento" da minha memória se encontra um pouco na conclusão que tirei nesta segunda leitura. Em "A Insustentável Leveza do Ser", Kundera fala sobre tudo e nada. É um pouco aquela crítica (que eu adoro) contra o pós-moderno: as correntes pós-modernas querem relativizar absolutamente tudo e acabam explicando nada. Do ponto de vista científico, isso pode ser um problema, mas para a literatura eu acho maravilhoso. 

Por isso a "A insustentável leveza do ser" tem tantas possibilidades de leituras diferentes. Ela pode ser superficial e se atentar ao erotismo e à relação entre Tereza - Tomas - Sabina - Franz, ou ir se aprofundando em centenas de questões filosóficas trazidas pelo autor e que mudam a cada página. 

Não, eu não fiz desta vez uma leitura de estudo profundo. Comecei a ler em São Paulo durante meus preparativos de mudança para os EUA. Precisei parar e retomei já na minha nova casa. Foi o único livro físico que trouxe nas malas. 

Esse apanhado de tudo e nada é também o motivo pelo qual é tão difícil escrever sobre essa leitura: sobre o que eu gostaria de falar? Que temas mais me chamaram atenção? Mas isso é complicado, porque a cada mudança de capítulo, um novo tema aparecia com força. As reflexões filosóficas do narrador que se misturam com o pensamento e intrigas dos próprios personagens foram criando uma sopa de letrinhas: cada colherada era ótima, mas em cada uma vinha uma letra diferente. 

É um livro amargo, triste. Como muitos que li ano passado, fala da desconexão entre lugar e indivíduo. Ao contrário de autores que narram sobre o Holocausto e a diáspora judaica (e sobre os quais escrevi neste blog no ano passado), desta vez não são os personagens que saem de sua terra natal e tornam-se desterrados no mundo, procurando e não encontrando seu lugar. Isso talvez se passe um pouco com Sabina, que sai da Tchecoslováquia em direção e Europa e depois muda-se para os Estados Unidos. Seu desapego é tão grande que, além de ir cada vez mais a oeste e distanciar-se de suas origens geográficas, ela chega a morar junto com um casal idoso mecenas - abrindo mão até de uma casa própria. 

Isso, contudo, não se passa com os protagonistas Terezas e Tomas. Eles estão em Praga, vão para a Suiça, mas Tereza logo volta porque ela não se vê e nem é mais vista como Tereza neste outro país - é vista pelos outros como uma extensão de Tomas. Volta para Praga e Tomas logo vai atrás, encontrando uma outra cidade. Não foram eles que saíram do lugar, foi o lugar que saiu dele mesmo. Com a invasão, o país deixa de ser o que era e, consequentemente, também suas pessoas. O presidente Alexander Dubcek, depois de ter sido capturado pelos russos, volta transformado. Não é mais o mesmo. Por isso Tereza e Tomas, apesar de voltarem, também não são mais os mesmo. A transformação da Tchecoslováquia e de Praga também os transformaram: perderam suas profissões e suas referências.

Sabina exila-se saindo. Tomas e Tereza são exilados sem sair do lugar.

"Tomas dirigia, Tereza ia ao seu lado e Karenin no banco de trás; de vez em quando, esticava a cabeça para lamber a orelha deles. Duas horas depois, chegaram a uma pequena estação de águas onde tinham passado alguns dias juntos cinco ou seis anos antes. Pretendiam pernoitar ali. [...]

Tomas mostrava o hotel. Afinal alguma coisa havia mudado. Em outros tempos, chamava-se Grande Hotel e agora, de acordo com o letreiro, chama-se Baikal. Olharam para a placa, na esquina do prédio: era a praça Moscou. Em seguida percorreram todas as ruas que conheciam (Karenin os seguia sozinha, sem guia), lendo os nomes: havia a rua Stalingrado, a rua Leningrado, a rua Rostov, a rua Novossibirsk, a rua Kiev, a rua Odessa, havia o Sanatório Tchaikovski, o Sanatório Rimski-Korsakov, o Hotel Suvorov, o Cinema Górki e o Café Púchkin. Todos os nomes eram tirados da Rússia e da história russa. 

Tereza se lembrou dos primeiros dias da invasão. As pessoas retiravam as placas das ruas de todas as cidades e arrancavam das estradas os painéis indicativos. O país se tornara anônimo numa noite. Durante sete dias, o Exército russo ficara errando pelo país sem saber onde estava. Os oficiais procuravam os prédios dos jornais, da televisão, da rádio para ocupá-los, mas não conseguiam encontrar nenhum deles. Perguntavam às pessoas, mas elas davam de ombros ou indicavam endereços falsos e um intinerário falso. 

Com o passar dos anos, esse anonimato se mostrou nocivo ao país. Nem as ruas nem as casas conseguiram encontrar de novo seu nome original. Uma estação termal da Boêmia se tornara assim, do dia para a noite, uma pequena Rússia imaginária, e Tereza constatou que o passado que procuravam lhes fora confiscado. Era impossível pernoitar ali." (KUNDERA, M. A Insustentável Leveza do Ser. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 162-3)

Enquanto em Levi, por exemplo, a urgência é voltar para seu lugar, em Kundera a ânsia é para que este lugar lhes seja devolvido. São duas formas distintas de exílio. 

A saída do governo soviético se deu em 1989. Em Junho de 2019 eu visitei Praga com meu marido numa espécie de segunda lua de mel. E mesmo já tendo se passado trinta anos da redemocratização, o que vimos foi um país que repetidamente afirma os anos obscuros que foram a invasão comunista. "O Museu do Comunismo" é inteiro dedicado a este período sob um ponto de vista do horror e há monumentos e marcas relembrando eventos de resistência do povo tcheco contra o governo soviético em múltiplos lugares da cidade. 

Depois de uma longa história de ocupações, é como se o país procurasse estabelecer e afirmar sua identidade em completa oposição a estes momentos históricos. Tereza é a metáfora da República Tcheca. Ela se olha no espelho e fica procurando insistentemente a conexão entre sua alma e corpo, desvencilhando-se da imagem da autoridade materna. Ela renega completamente este passado. Notei essa tentativa de busca na cidade de Praga: monumentos, museus, passeios turísticos, tudo procura afirmar quem é este país e porque ele é único e diferente de todos aqueles que o ocuparam. 

É um livro que, provavelmente, vou ler novamente. Quanto mais "bagagem cultural" (odeio esse termo, mas no momento ela convém), mais camadas vão aparecendo durante a leitura. Só deixo aqui como nota registrada (e não apenas mental) de que na próxima leitura, se o tema "exílio" me for ainda de interesse, pesquisar o caminho do exílio do autor. Kundera parece ter tido uma relação conflituosa com seu país de origem e, apesar de escrever de maneira tão empática, me parece que, como Sabina, ele preferiu sair para nunca mais voltar. 




Memorial às vítimas do comunismo. Monte Petrin. Praga, Junho de 2019. 

O mesmo monte onde Tereza sonha que está indo ser assassinada. Em seu sonho, Tereza obedece Tomas que a manda subir o Monte Petrin. No topo, ela encontra três algozes que a matarão - caso assim seja sua vontade. Eu e o Allan visitamos o Monte Petrin e visitamos este memorial. Flagramos, neste momento, uma senhorinha colocando flores. 

"Quando chegou ao monte Petrin, a colina verdejante situada no centro de Praga, notou com espanto que não havia ninguém. Era curioso, pois, em geral, multidões sempre passeavam por ali. Sentia-se angustiada, mas os caminhos estavam tão silenciosos e o silêncio era tão repousante que relaxopu e se entregou cofiante à colina. Subiu, parando de vez em quando para olhar para trás. A seus pés, via um aglomerado de torres e pontes. Os santos brandiam punhos ameaçadores, os olhos de pedra fizados nas nuvens. Era a cidade mais bonita do mundo." (Idem, p. 146)


 Eu descendo o Monte Petrin. Praga ao fundo. Junho, 2019.


Outros textos nos quais falei sobre o tema exílio e publiquei aqui no blog:



Finalmente, por que o livro "A insustentável leveza do ser" sendo divulgado por influencers nas redes sociais que falam sobre tudo, menos literatura? Imagino que transformaram o livro de Kundera no horror de Sabina. O que Sabina mais detesta no mundo é o kitsch e, no contexto político e social que vivemos, os logos e palavras de ordem que imperam é o próprio kitsch. O governo Bolsonaro, Lula elegível, a aproximação das eleições, crise, etc... Uma leitura superficial e descontextualizada transforma a obra de Kundera num slogan anti-comunista tosco. E é isso que o transforma em poderoso.

"A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha um caráter ético, mas estético. O que lhe repugnava não era tanto a feiúra do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se cobrira, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa do Primeiro de Maio. 

[...]
A festa do Primeiro de Maio se abastecia na fonte profunda do acordo categórico com o ser. A palavra de ordem tácita e não escrita do desfile não era "Viva o comunismo!", e sim "Viva a vida!". A força e a estúcia da política comunista foi ter se apossado dessa palavra de ordem. Era precisamente essa estúpida tautologia ("Viva a vida!") que levava ao desfile comunista até mesmo os que eram completamente indiferentes às ideias comunistas. 

[...]
Por volta de dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos a levou para passear num carro enorme. Quatro garotos se apertavam no banco de trás. O senador parou; as crianças desceram e desataram a correr num gramado imenso em direção a um estádio onde havia um rinque. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou para Sabina: "Olhe para eles!", disse, descrevendo com a mão um círculo que englobava o estádio, o gramado e as crianças: "É isso que eu chamo de felicidade".

[...], nesse momento, Sabina imaginou o senador num palanque de uma praça de Praga. Em seu rosto, havia examente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas dirigiam do alto de seu palanque aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés. [...]

O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos." (Idem, p. 244-6)