Minha mudança de país e a materialidade do lar

Há muito tempo eu não tenho tempo para sentar e me dedicar ao blog. Já mencionei aqui como tempo tem sido absolutamente nada óbvio para mim. Eu sempre penso naquele texto do Hobsbawn sobre a mudança social e cultural da percepção de tempo com a Revolução Industrial e fico imaginando que eu também estou vivendo um momento de mudança de percepção de tempo: tanto pela mudança do mundo analógico para o digital quanto pela pandemia. 

E cá estou eu novamente para me justificar porque não consegui engatar nenhuma leitura nas últimas semanas. Depois de ter lido e escrito sobre "Casei com um Comunista", eu mesma vim parar na terra onde Philip Roth nasceu e escreveu seus livros. Mudei-me para os Estados Unidos. Pelo menos pelos próximos dois anos. 

Uma mudança de país envolve muito trabalho. Físico e emocional. Passei por muitas fases: melancolia, tristeza, empolgação, felicidade e, agora, paz. Esta viagem foi adiada por um ano por causa da pandemia. Durante todo o tempo em que fiquei sentada na sala de espera pandêmica eu li. Li muito e escrevi. A prova disso é o arquivo deste blog, que foi muito bem preenchido no ano passado. Só  que na virada de 2020-21 acabou a espera. Eu tive que me mexer para concretizar essa mudança. 

Depois que voltei do Chile, foram mais ou menos 50 dias em São Paulo vendendo e me desfazendo de tudo o que eu tinha no meu apartamento. Depois de anos construindo uma casa, em pouco mais de um mês toda a materialidade dela se apagou. O que não sumiu no ar, coube em quatro malas. A fragilidade da vida concreta é assustadora. Nos apegamos fortemente ao apalpável, mas ao primeiro sinal de mudança, é a primeira coisa que se esvai. 

Por um momento, eu lamentei bastante isso. Chorei nos meus paninhos de pratos que fui ganhando como presentinhos nos últimos 7/8 anos. São as mulheres da família que ajudam a gente a construir o lar: conjunto de panelas, batedeira, toalhas de mesa, de banho, lençol... Tudo foram presentes de mãe, tia, vó ou amigas queridas. Lembro um Natal, abri um embrulho lindo de presente da minha tia. Na hora, vi dois panos de pratos todo decorados e pensei "puxa! um presente para casa e não para mim". Depois olhei de novo e vi um envelope com notas generosas. Percebi como isso foi lindo. Um presente para mim, Giovana, e para minha casa, que também sou eu. 

A partir de um momento, nosso lar torna-se nós mesmas. Mas essa conexão só acontece na figura feminina. Depois que casei e o ambiente doméstico tornou-se meu, foi acontecendo uma troca. Não era mais a casa dos meus pais, tampouco a pensão de estudantes onde vivi por muitos anos. Na minha casa, eu fui me tornando cada vez mais o lar e o lar foi se tornando cada vez mais eu. Isso não acontece na figura masculina. A casa de um homem solteiro é "a casa de um homem solteiro". No Natal, ele não vai ganhar panos de prato junto com o perfume ou o sapato, porque não tem essa troca de identidade. 

Esse apelo tem o risco de nos tornar muito materialistas e o lado virginiano da minha personalidade grita. Tenta fincar as raízes com muita força na terra e usa como adubo essa ligação material da nossa história e identidade.

Só que eu tenho um lado ariano e impulsivo que mora comigo. Também tenho um pouco de ar no mapa astral. Minhas raízes são fortes, mas não no lado material. Lar é onde nosso coração está, não é assim que se fala? É onde a gente faz um arroz com feijão, dá risada, chora, assiste um filme e resolve os problemas da vida. 

Por isso que, se no começo eu queria trazer absolutamente tudo - dos meus panos de prato até minha bicicleta -, no final acabei vindo apenas com uma mala grande e uma média. 

Durante esses 50 dias de transição, eu comecei a ler "A insustentável leveza do ser" e me tocou como Kundera fala do exílio de seus personagens. Não estou vivendo o exílio de Kundera, tampouco o de Primo Levi. Mas estou longe de casa e também vivo uma espécie de exílio. Primeiro no Chile e agora nos Estados Unidos. 

Mudei-me para Nova York. Isso tem um significado especial. Assim como existem vários Brasis, existem vários Estados Unidos. (Ficou até curiosa essa frase, né? Mostrou a obviedade e redundância - afinal são vários Estados que estão Unidos) 

Nova York sempre esteve nas minhas leituras:  J.D. Salinger, Philip Roth, Fitzgerald, Donna Tartt... Para citar alguns entre os autores mais recentes. Sem falar na cultura midiática de filmes e série. Talvez por isso eu esteja me sentindo tão a vontade aqui. Depois de mais de um ano vivendo na situação "estou para me mudar", finalmente cheguei e pude me instalar. Por isso estou me sentindo "em casa". Não existe mais a fase transitória. (pelo menos pelos próximos dois anos! rs) 

Estou há minutos andando da Universidade de Columbia e a quantidade de estrangeiros é enorme. Ouço nas ruas as mais diversas línguas e, pela cidade, espanhol se impõe quase como segunda língua oficial. Eu não me sinto de fora. Eu me sinto parte de toda essa diversidade. De toda essa "estrangeiridade". 

Foi um ano de planos sendo adiados e colocados em espera. Um ano onde a única certeza era a pandemia. Chegando aqui, fomos vacinados no segundo dia e a sensação é de que estamos muito mais próximos da normalidade do que nunca estivemos desde aquele fatídico março de 2020. Pela primeira vez desde muito tempo, estou com uma grande tranquilidade no coração e, por isso, a vontade de voltar à literatura. 

Vou começar pelo livro que não consegui acabar em São Paulo e, por isso, foi o único livro físico que trouxe no meio das roupas em uma das malas: "A insustentável leveza do ser". O que não deixa de ser irônico, pois, ao contrário de Sabina, o que estava insustentável para mim era viver o peso da transição que não acabava. O peso de estar "prestes a se mudar", o peso do medo de não se conseguir. Mas depois de toda tempestade, vem a calmaria e só me resta a aproveitar e curtir como eu puder. 

Abaixo umas fotos do verde do verão de Morningside Heights. 









Morningside Heights. Manhattan, NYC. Verão. Julho 2021.