Drácula não foi o primeiro livro que peguei na New York Public Library, mas foi o primeiro livro que terminei e será devolvido. Isso traz um carinho especial para a leitura, porque tirar a carteirinha da biblioteca teve um significado especial para mim: o sentimento de pertencimento, de casa. Depois de tanto tempo "em transição", vivendo no Brasil, Chile, Brasil de novo e esperando as fronteiras abrirem, tirar a carteirinha da NYPL significou "agora aqui é meu endereço por um bom tempo e essa é a prova!". É também mais um jeito legal de interagir com a cidade. Afinal, a NYPL é muito "Os caçadores de fantasmas".
Apesar da referência do filme, eu não preciso ir até o prédio com a fachada e a sala de leitura famosas. Existem várias unidades menores pela cidade e uma muito perto da minha casa. É lá onde tenho indo retirar os livros que peço para reservar pelo site. É menos glamuroso, mas facilita muito a vida!
Agora voltando ao Drácula.
É uma ótima experiência ler do começo ao fim uma obra onde estão todas as referências que vemos em tantos outros lugares. O "arsenal vampiresco" que eu tinha era picotado: pedacinhos que a gente vê lá ou aqui. Então quando eu li a origem de tudo isso, junto e de uma vez só, algumas coisas se iluminaram e também tive surpresas.
Por exemplo, o fato de que o Drácula não tem voz no livro. Em nenhum momento. Tudo o que sabemos dele é pelo relato de outras pessoas. Poderíamos dizer, talvez, que o Drácula nem existiu e tudo foi um delírio coletivo daquelas pessoas ali envolvidas.
Outra surpresa foi a estrutura narrativa. Eu não esperava que ela fosse formada por cartas, trechos de diários e notícias recortadas de jornal. A primeira vez que li algo assim foi "O médico e o monstro" e eu adorei. É preciso ter paciência com esse tipo de leitura, mas é legal porque vamos montando o quebra-cabeça da história. Especialmente em Drácula, a gente vai se deixando seduzir pelos múltiplos narradores. Ainda mais por se tratar de cartas e diários, nós, leitores ingênuos, gostamos de acreditar no que dizem sem desconfiança.
E assim Bram Stoker nos guia pela leitura de uma história na qual um grupo de quatro homens vão tentar salvar duas moças e a própria Inglaterra das garras do Conde Drácula. Este grupo de cinco homens é formado por um médico inglês John Seward, o Lord Arthur Holmwood, o procurador inglês John Harker, o americano rico do Texas Quincey Morris e o médico holandês Abraham Van Helsing. As "donzelas" são Lucy Westenra e Mina Murray, que depois se casa com Jonathan Harker e vira Mina Harker. São alguns destes personagens que registram seus dias em diários e trocam cartas que nos contam quem é Conde Drácula e sua história. Sob uma perspectiva do final do século XIX, é praticamente uma história de cavaleiros lutando contra o mal e salvando donzelas inocentes.
Ano passado eu li "Imunidade", de Eula Biss, publicado pela Editora Todavia, e a autora fala sobre Drácula como uma metáfora para o surgimento de doenças infecciosas, principalmente a sífilis, que é transmitda por sexo/sangue e cuja principal porta de entrada é pelos portos e navios. Exatamente como o Conde Drácula chega na Inglaterra, "contamina" Lucy que, depois, contamina crianças. É a metáfora do Outro, nesse caso o estrangeiro, trazendo doenças e contaminando "a pureza" daqueles que são donos do lugar. Afinal, Lucy, a "luz", é uma moça sensível, jovem e angelical. Uma vez "contaminada" e transformada, ela ataca outros seres mais inocentes: as crianças.
A narrativa de Bran Stoker é cheia de tensão. Principalmente os diários de Jonathan no Castelo do Conde e, depois, a chegada do Drácula na Inglaterra. Estas foram minhas partes favoritas. Confesso que, do meio para o final, fiquei um pouco cansada. Achei a leitura um pouquinha arrastada, mas minha edição tinha mais de 600 páginas e, realmente, não dá para ter o mesmo ritmo 100% do tempo.
Outra leitura possível é a da sexualidade (que também é um meio de "contaminação" de doenças e se liga com o que a Eula Biss diz no seu livro, Imunidade). Apesar de "monstruoso" os momentos nos quais o Conde ataca Lucy e Mina e as noivas do Drácula se aproximam de Jonathan, existe sim uma tensão sexual nas entrelinhas. Este ponto, sutil no livro, é exacerbado no filme Dracula de Bram Stoker, de 1992 e dirigido por Francis Ford Coppola. Esta adaptação também conta com algo que não existe no livro: a voz do próprio Drácula. É como se o filme desse a chance para o Conde contar sua versão da história.
Eu acabei a leitura ontem, dia 30 de outubro, pela tarde. Assisti o filme que mencionei acima a noite e hoje, dia 31, dia de Halloween, foi a videochamada do clube de leitura do Querido Clássico. Foi muito bom! Eu estava com saudades de ouvir as impressões e pontos de vistas de outras pessoas que leram a mesma coisa, mas que tem opiniões diferentes. E isso é muito enriquecedor. A noite, eu e o Allan fomos até a rua 69th, aqui em Manhattan, para ver as decorações de Halloween e as crianças fantasiadas.
Em geral, foi uma experiência ótima. Muitas coisas se somaram nessa leitura: o primeiro livro que acabei de ler da NYPL, a temática do Halloween e a volta ao Clube de Leitura Querido Clássicos.
Sobre o médico e o monstro, escrevi sobre ele aqui: Dr. Jekyll e Mr. Hyde - a ambiguidade do público e do privado no homem moderno
Sobre Imunidade, de Eula Biss, escrevi aqui: Em Imunidade, Eula Biss explora o poder da metáfora e eu reflito um pouco sobre a perda de espaços na pandemia
O Clube de Leitura do Querido Clássico: Clube do Livro Querido Clássico
Eu já tentei ler Drácula mas acho que não era o momento certo, mas seu post me fez querer tentar novamente. Acho que vou reservar pra essa época no ano que vem!
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