Ellie e os espelhos: o duplo na narrativa de Last of Us II

"- Hoje a tarde, vamos jogar Last of Us 2?". 

Eu não toquei no controle nenhuma vez, mas não teve cinco minutos que o Allan jogou sozinho Last Of Us II nos últimos dias. Eu quis acompanhar tudo, os vídeos, os diálogos, todos os bilhetinhos coletados durante o jogo. "- Faz mais scavage, Allan.", "- Dá para entrar ali!", "- Você já entrou aqui?". Pelos últimos dias, mesmo já tendo fechado o jogo, não paramos de falar sobre a Ellie, a Abby, o Lev, os Scars, os Wolves, etc. Foram 25 horas de jogo. 

A princípio, tive a ideia de escrever as minhas impressões do jogo no blog, mas não seria esta uma plataforma dedicada às minhas leituras? Pensei bem e, para mim, um livro sempre é uma experiência: você ama, odeia, as vezes é chato e massante, ou passa rápido, a gente chora e ri. Tudo porque a narrativa está lá para te causar este enorme rebuliço. Pois bem, videogames no séculos XXI não são mais aquela coisa de passar de fase e enfrentar chefão. Não é acompanhar o Mário andando de ponto em ponto em mapa. Last of Us II é, além dos confrontos e jogabilidade, estória/ narrativa. Por isso que 25 horas ao lado do Allan, vendo ele jogar, se passaram num estalar de dedos e eu me senti tão envolvida quanto ele. 

O primeiro jogo da franquia foi lançado em 2013 e já havia sido um sucesso. Eu acompanhei também - mas de longe - o Allan jogar. O mundo de Last of Us se passa no futuro, em 2033, 20 anos após o surto de uma infecção fúngica não controlada que causa o colapso das instituições e da sociedade tal como a conhecemos. Num tempo e lugar onde a lei é salve-se quem puder, Joel tem a função de levar Ellie, de 14 anos e que é imune à infecção, para o grupo paramilitar Fireflies produzir uma vacina. 

Ao longo do jogo, você vai vendo Joel "adotar" Ellie como filha e uma relação de carinho e cumplicidade nascer entre eles. No final, Joel descobre que para a produção da vacina, Ellie precisaria ser morta. Inconsciente, na mesa de operação, Ellie é resgatada por Joel, que mata o médico e todos os fireflies que estão no hospital. Ele diz à menina que há outros imunes e por isso não precisam mais dela. Eles fogem e passam a viver numa comunidade no meio das montanhas de Wyoming.

Foram sete anos de Joel-Ellie-lovers esperando com expectativa pela continuação, até que o jogo chega no meio de uma pandemia (se eu fosse fã de teorias de conspiração, me arriscaria dizer que há uma jogadinha de marketing aí. Que plano chinês de dominar o mundo o que! Foi tudo premeditado pela Naughty Dog e a indústria de videogames, isso sim!). O cenário é o mesmo de 2013: o nosso cenário. Nossas casas, nossas TVs, nossos coffee shops, teatros, consultórios de dentistas, metrôs, escritórios, teatros, hospitais, prédios, escolas, piscinas... Só que abandonados, destruídos, dominados pela grama e infectados. Todo o jogo é você lutando ora contra os infectados, ora contra outros humanos e ora contra a própria natureza que dominou tudo o que foi um dia construído pelo homem.

Em Last of Us II, começamos em Wyoming (onde acabou a primeira parte), numa paisagem de inverno belíssima e Ellie, já mais velha, agora com 19 anos de idade. Ou seja, no ano de 2038, 25 anos após o surto da infecção fúngica (ou o outbreak, como eles falam). Durante uma patrulha comum, Joel e Tommy encontram-se com Abby e seus colegas, que os atacam furiosamente. Ao saber que Joel e Tommy ainda não voltaram e estão sem comunicação, Ellie vai atrás de Joel e se depara com Abby matando-o cruelmente com um taco de golf. Bem no estilo FATALITY! Abby, uma personagem nova, que ninguém nunca tinha visto ou ouvido falar.

A partir daí, o jogo divide-se em duas partes. Primeiro, partimos com Ellie em busca de vingança. Ela e sua namorada, Dina, vão atrás dos Wolves, grupo ao qual integra Abby e seus companheiros. Há alguns momentos de retrospectivas, que mostram Ellie e Joel neste intervalo de anos entre os jogos e que implica, principalmente, na descoberta de Ellie de que Joel havia mentido: não havia outros imunes. Os Fireflies precisavam sim dela para fazer a vacina, mas isso implicava em sua morte e, por isso, Joel a resgatou da mesa de operações.  Em Seattle, cidade-base dos Wolves, vamos descobrindo aos poucos uma guerra entre facções. Wolves e Seraphites (chamados de Scars pelos Wolves) disputam território e integrantes. Os primeiros, de cultura muito mais militarizada e secular, enquanto os segundos se assemelham a uma seita, com rituais e costumes orientados por uma mártir. 

São três dias de Ellie em Seattle caçando Abby e matando todos os outros Wolves que participaram do assassinato de Joel, até que as duas se encontram.

Corta. 

Somos agora Abby, no mesmo dia 1 de Ellie em Seattle. Mesmo tempo, mesmo lugar, mas agora não jogamos mais com o caçador e sim com a caça. Descobrimos quem é Abby, quais as motivações que a levaram a matar Joel, seu passado dentro dos Fireflies e que papel ela teve no encerramento do primeiro jogo, quando Joel resgata Ellie do hospital e da mesa cirúrgica. Nesse ínterim de três dias, duas crianças Scars salvam sua vida, os irmãos Yara e Lev, que também estavam sendo perseguidos pela sua própria comunidade. 

Você passa a ajudá-las, conhecer mais sobre os Seraphites, entra em seu território, passa no meio da guerra entre eles e seus própios, os Wolves, e descobrimos que Lev é uma criança trans. Ele deveria casar-se com uns dos Elders, mas raspa sua cabeça, muda de nome e quer ser um guerreiro, como sua irmã, mas é condenado a morte pelo seu grupo. E aí, como no primeiro jogo, passamos a acompanhar uma aproximação entre a soldada-wolf Abby e o menino-scar Lev. Abby passa a protegê-lo como amigo (filho talvez?) e seu próprio grupo passa a condená-la por ter "mudado de lado"

Passam-se os três dias e Abby e Ellie se encontram. Agora já conhecemos os dois lados e a compaixão pelas duas é gigantesca. Mas é um jogo, começa o embate físico entre as duas e para quem torcer? Quem tem (mais) razão? #teamAbby ou #teamEllie? Nasce aí um flaXflu bobo no mundo dos gamers.

E aí... Algumas reflexões sobre a narrativa do jogo. 

Durante todo o jogo, o Allan comentava "- todos os espelhos desse jogo são quebrados". 

Bingo. 

Os momentos nos quais Ellie consegue se ver no espelho são muito bem marcados e você consegue interagir com sua imagem: na casa de Joel após sua morte, num flashback dela mais nova, enquanto passeia com Joel em um museu e depois, no final, na casa onde vive com Dina e seu bebê JJ. Você se vê, faz caretas, comentários. Ou evita se olhar.

Dentre as análises que li sobre o jogo, esta foi a que melhor apontou para a questão de Ellie e os espelhos. No rancho em que vivem Ellie, Dina e JJ, você pode fazer Ellie se olhar e interagir com os os espelhos da casa. Depois de Santa Barbara, no mesmo espaço - agora vazio - a personagem te desobedece e não encara mais seu próprio reflexo. Mas o espelho não está quebrado, sua imagem agora está lá, é a decisão de Ellie não encará-la. 


 

Porém, o maior espelho está, na verdade, ao longo da própria narrativa do jogo. É uma narrativa espelhada. Abby é o duplo de Ellie, a doppelganger, seu nemesis. Os primeiros três dias de Ellie em Seattle versus os três dias de Abby, até os nomes Ellie/Abby são parecidos, ambas perdem os pais e essa morte é o que as motiva a buscar vingança, tudo é uma projeção de espelho. Não vou explorar o tema LGBT do jogo, mas existe até uma sutileza com os esteriótipos: Ellie é homossexual e feminina, Abby é heterossexual e musculosa, quase masculinizada. Abby toma para si Lev como seu protegido, como Ellie foi para Joel. É como se na primeira metade do jogo você jogasse um lado do espelho e, na segunda metade, o outro lado. 

Na literatura, o duplo é um tema que muito me fascina. O Retrato de Dorian Gray, O Estranho caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, Alice no País dos Espelhos, Dois irmãos, O homem duplicado, e até mesmo o Clube da Luta, são apenas alguns poucos exemplos que me vêm imediatamente a mente. (O mundo das telenovelas também amam umas irmãs gêmeas) Não se trata de uma simples duplicação. O duplo funciona como um desdobramento do eu e, portanto, como formação de identidade na medida em que o eu se constrói a partir do outro. Trata-se da tensão do "um" e do "outro" na simultaneidade e no contexto social, para a definição do "um". 

Em alguns sites da internet, pesquisando mais sobre a questão do duplo, vi que a psicanálise se aprofunda bastante nesse tema e sugere que o embate entre estes dedobramentos do eu é bastante tensionado pela morte. Só a morte faz o Eu coincidir consigo mesmo e afirmar de novo a sua unicidade enquanto algo irredutível. Como por exemplo, Dorian Gray ao destruir seu retrato, acaba ele mesmo morrendo. Mesmo sem saber disso, no final da segunda parte do jogo, eu e o Allan especulávamos o desfecho e eu esperava que as duas morressem. A surpresa foi que aconteceu justamente o inverso: Ellie se salvou ao salvar seu duplo.

O jogo é sobre o processo de autoconhecimento da Ellie. Ao descobrir que Joel a resgata, mata a equipe médica, e foge, ela diz "- Era para eu ter morrido, e aí minha vida teria valido a pena". Ela não se vê naquele tempo e lugar: sua saga no primeiro jogo era salvar a humanidade e, agora, qual é? A relação entre ela e Joel está abalada e quando ela decide esforçar-se em perdoá-lo por ter impedido que ela se tornasse uma mártir, ele morre. Sua culpa são várias: sua vida não serviu para a cura, não conseguiu salvar o Joel e suas últimas interações foram frias e tensas. Não houve tempo, tampouco clima, para um adeus.

Os dois combates entre ela e a Abby são, na verdade, combates contra ela mesma. Somente na segunda vez, quando ela está prestes a matar seu duplo - a personificação da culpa que carrega e da obsessão por saber quem é e qual o seu lugar - que ela se encontra e, portanto, deixa Abby ir. Ela precisa primeiro salvar seu duplo e depois quase matá-la para poder se encontrar. Agora sim ela está inteira, ela se vê como inteira. Ela pode até não gostar, como fica claro ao evitar olhar seu reflexo na casa da fazenda onde vivia com Dina, mas é o que é.

O processo de transformação e auto-conhecimento, por mais doloroso e mortal, acabou. Em uma das cenas do embate final, como todas as outras em que Ellie se olha no espelho, agora a protagonista se encara em sua inimiga: Abby e Ellie esgotadas, quase morrendo, cansadas pela jornada que vêm enfrentando e olhando uma para a outra com a paisagem da praia ao fundo. 

 

O flaXflu surge porque, conforme vamos jogando com a antagonista Abby, vamos conhecendo sua história, se solidarizando com ela e passamos a sentir seu sofrimento e seus percalços. Quando Ellie decide ir atrás de Abby novamente, mesmo depois de sua vida ter sido poupada no combate anterior que tiveram e que perdeu, o sentimento é de cansaço. Ficamos "como assim, Ellie? Sério?? Sossega o facho aí, curte a Dina e o JJ". A ironia é que, se não fosse a Ellie, Abby teria morrido nas mãos dos rattlers californianos. E aí que está a chave da história: não se trata de flaXflu, Abby versus Ellie, porque é a Ellie contra ela mesma!

Tudo isso é contado dentro de uma míriade de outros temas, muitíssimos interessantes. A história de Lev e os Scars é muito emocionante também, e eu adorei acompanhar o Allan jogando com a dupla Abby e Lev, onde os opostos se ajudam e lutam um pelo outro. Também como o jogo coloca questões tão caras como homossexualismo e transexualismo de forma orgânica à estória. 

Chegamos num momento em que as narrativas já ultrapassaram os meios tradicionais de contação de história, livros, filmes, etc. Daqui para frente, não é possível mais ignorar a força narrativa das plataformas de videogames pois, elas sim, já têm explorado e muito os recursos tão bem sedimentados da literatura.

Fechando, o jogo é uma experiência narrativa incrível, é um privilégio meu poder acompanhar toda a história com alguém que, além de também ser apaixonado pela narrativa, adora jogar videogame!

Ecologia, sociedade e literatura: os "mortos" de Ana Paula Maia e Olga Tokarczuk

Dentre as leituras que fiz este ano, Enterre seus mortos de Ana Paula Maia, talvez tenha sido a mais grata surpresa. É um livro curtíssimo de apenas 136 páginas e publicado em março de 2018 pela Companhia das Letras. Dificílimo, na minha opinião, de classificar: é um thriller? Suspense? Terror? Drama? Denúncia social? Gostei muito da apresentação da editora: uma habilidosa mescla de novela policial, faroeste de horror e romance filosófico, escrito por uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea.


Eu acrescentaria mais algumas coisas: é um cenário apocalítptico composto por rodovias que cruzam lugares pouco habitados e que parecem ligar o nada a lugar nenhum, que só existem para atender as necessidades de uma pedreira que cumpre muito bem seu papel de explosões e destruição. Uma paisagem estilo Mad Max, marcada pela pouca vegetação, tom amarronzado e alguns poucos animais mortos, ou abutres sobrevoando as carcaças. O trabalho do protagonista, Edgard Wilson, parece um eterno sofrimento típico de um dos círculos do Inferno de Dante: interminavelmente coletar corpos de animais mortos pelas estradas e terrenos que, além de causar problemas sanitários, complicam a circulação de veículos. Quando não são mortos pelos carros e caminhões, seus corpos jogados e imóveis são a causa de novos acidentes. 

O sol, mesmo entre nuvens, deixa enfadados as aves e répteis, que evitam cruzar a estrada quente. O capim amarelento e esmorecido contorna o caminho que segue. Tudo parece morto ou quase morto debaixo do sol. Edgard Wilson apanha no meio da estada um gambá que morreu de olhos arregalados. Suspende-o pelo rabo usando luvas de borracha para se proteger. Joga-o na caçamba da caminhonete e deixa as luvas no chão do veículo.

E o que parece mais do mesmo é quebrado quando Edgar Wilson acha um corpo de uma mulher enforcada, pendurada numa árvore e sendo devorada pelos abutres. A partir disso, um enorme problema burocrático atormenta os próximos passos: a quem compete a responsabilidade por este corpo? É um lugar abandonado pelo poder público e as instituição são ausentes. Os animais, por mais cruel e indigno que possa parecer o fim de seus corpos num triturador que lhes transforma em adubo, ainda tem um fim que não é serem desconfigurados e devorados pelos animais necrófagos. 

Depois desta mulher, Edgard Wilson ainda encontra outro corpo. Como os animais, eles não têm nomes, não são reconhecidos, mas ao contrário dos corpos que são recolhidos e enviados ao triturador, estes corpos-humanos são ignorados. Não há polícia, não há necrotério. E o ato de humanidade que resta é tirá-los de lá, colocá-los num freezer para, AO MENOS, não serem devorados pelos abutres. 

Uma das riquezas da narrativa de Ana Paula Maia é a dificuldade de definir: o quanto disso tudo é realidade e o quanto é ficção? Por mais desconfortável e surreal que pareça ser o trabalho de Edgard Wilson e o cenário "faroeste de horror", tudo é muito palpável, fácil de reconhecer. É tanto um lugar imaginário quanto todos os lugares.

Em 2009 a autora polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de literatura em 2018) publicou Sobre os Ossos dos Mortos e somente em novembro do ano passado foi traduzido e publicado no Brasil pela Todavia. No começo do ano, cheguei a esta obra de forma depretensiosa. Muito mais interessada no aspecto social e geopolítico de uma obra polonesa, um lugar tão marcado pelas invasões alemãs e soviéticas do século XX, campos de concentração - um lugar "tão século XX", de extermínio e sofrimento. Para além destas questões, Olga Tokarczuk e Ana Paula Maia tocam em outra que, me parece, ser importantíssimo para nosso futuro como humanidade e que, nem sempre, recebe a seriedade que merecem. Muitas vezes, fica no panfletismo e por isso, assim como eu mesma já fiz muitas vezes, é considerada como um campo "menor": a crise ambiental. (Afinal, diante de guerra, fome, violência, acesso à educação, corrupção, etc, quem liga para poluição e queimadas, não é verdade?)

Em Sobre os Ossos dos Mortos, o tom é um tanto oposto ao de Enterre seus Mortos. Naquele, é presente uma nostalgia bucólica e li por aí sugestões de que se trata de uma reformulação contemporânea do gênero fábula. A floresta, o verde, e a vida - tanto quanto a morte - se mostram muito presentes. Há um choque constante ao longo dos capítulos entre viver e morrer, criar/ nascer e matar. Há melancolia e até certa beleza nos cenários de fim. Na obra de Ana Paula Maia, porém, é só morte retratada de forma cru, escatológica, gore

O que os livros trazem em comum, no entanto, é a relação da sociedade e do meio ambiente: como lidamos com nosso entorno, a vida e a morte (tanto dos animais quanto humanas), diante da burocracia estatal, poder público, capitalismo, cultura, ética e moral. Ambos têm a o substantivo "mortos" no título (o Allan até me perguntou: "são dois livros diferentes?" rsrs) e suas tramas começam exatamente quando a morte/assassinato dos "seres humanos" se confundem com as dos "animais". Exatamente quando essa diferença entre seres racionais versus irracionais começa a se desfazer.

O mérito destas autoras está em expor como as relações e experiências individuais com a natureza e animais - a ecologia - é um problema sistêmico, que vai muito além de optar ou não pelo estilo de vida vegano, por exemplo. A heroína de Olga Tokarczuk, Janine Dusheiko é vegetariana, mas Edgard Wilson e seu amigo Tomás, os seres humanos "mais humanos" da história toda, não dispensam a rabada com agrião. A nossa relação com o meio ambiente e, consequentemente, a vida animal está vinculada aos meios de produção, à identidade cultural e às imposições da organização e burocracia social. A quem cabem as responsabilidades sobre a vida animal e humana? A preservação da natureza? A dignidade de um enterro?

Em determinada passagem de Sobre os Ossos dos Mortos, Dusheiko procura ajuda policial para denunciar os caçadores da região, que têm tirado muitas vidas animais de modo irregular - fora da época de caça. Ela é tratada com descrédito e chamada de louca, mas ela diz o quanto o modo que uma sociedade lida com seus animais diz sobre como essa sociedade lida com os próprios seres humanos. Os livros de Olga e Ana Paula Maia trazem essa discussão sobre discurso político, filosófico e ecológico de maneira profunda e rica. Uma oportunidade de trazer esse debate para níveis mais inteligentes e profundos, que não se perdem na superficialidade do veganismo versus carnívoro, plantar uma árvore no Ibirapuera e fazer compostagem no quintal de casa. 

- A senhora sente mais pena dos animais do que das pessoas. 

- Não é verdade. Sinto pena de ambos, de modo igual. Contudo, ninguém atira contra pessoas indefesas - disse ao funcionário da Guarda Municipal naquela esma noite. - Ao menos nos dias de hoje - acrescentei. 

- Sim, é verdade. Somo um estado de direito - o guarda confirmou. Pareceu-me bondoso e pouco sagaz. 

- Os animais mostram a verdade sobre um país - eu disse. - A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.

Acho que são leituras importantíssimas: estamos vivendo uma pandemia causada, entre outros motivos, pelo modo errado e doentio que temos tratado a natureza, subjugando-a aos nossos caprichos de consumo exagerado. Além do mais, apesar de tantos problemas sociais que merecem nossa atençao e cuidado, o mundo encontra-se num momento privilegiado para que seja possível também olhar para as questões ecológicas de modo inteligente, sustentável e nada panfletário.

O Apanhador no Campo de Centeio - reflexões sobre crescer e ser phony

Eu nunca tinha ouvido alguém falar diretamente sobre O Apanhador no Campo de Centeio do tipo "Li, achei legal/uma bosta e recomendo/não recomendo". Mas eu já tinha visto várias vezes pequenas citações em variados lugares que agora não sei nomear. Ano passado, a Todavia publicou uma nova edição e aí sim vi bastante coisa publicada sobre a obra. A verdade é que a literatura norte-americana não nos é muito popular. O que chega até nós de forma marjoritária é através de filmes e, The Catcher in the Rye, não tem e nunca terá uma adaptação. 

O livro mexeu bastante comigo. A habilidade e os recursos usados para nos identificar de forma tão intensa com o protagonista/narrador, o adolescente de 16 anos Holden Caulfield, é impressionante. It depressed the helluva me. Considerando O Complexo de Portnoy, esta foi a segunda leitura do tipo monólogo que leio em pouquíssimo tempo. E, de novo, em Nova York. 

O livro estava com uma boa promoção na Book Friday da Amazon e eu decidi ler em inglês. Foi uma experiência que me fez sentir tão sortuda e privilegiada por conseguir ler esta obra no original. O livro é muito "nformal" e por isso fácil. (Tentei já ler "This Side of Paradise", F. Scott Fitzgerald, no original, mas são tantas metáforas que eu não consegui. Talvez mais para frente) Toda hora Holden chama a atenção do leitor, seja com um "Listen", ou "I wish you were there". É um Holden nos contando sobre um fim de semana de sua vida... Nada de extraordinário, emocionante. Simplesmente é como uma entrada em um diário sobre uns dias passados, ou uma longa carta contando algo pessoal para alguém. 

Portanto, não é a ação que mais nos encanta no livro. E sim as reflexões, os incômodos de Holden ao sair da infância e entrar a vida adulta - que é extremamente "phony". Essa palavra apareceu uma vez e logo pensei em "fake". Ok. Continuamos. Mas aí ela aparece over and over and over. Holden faz críticas severas à uma série de personagens e certas atitudes acusando-as de "phony". 

Aos poucos, como brasileira - uma estrangeira lendo esse livro escrito por um americano, sobre a sociedade americana aos olhos de um adolescente americano - fui vendo esse "phony" não apenas como falso, mas como um falso cafona, brega. Quaaaaaaaase como uma "falsiane". E nós brasileiros, que já fomos aos EUA, já conversamos com os norte-americanos, temos a sensação do quanto eles são "falsos" não de uma maneira maldosa, mas sim superficial. O jeito que conversam, se mostram interessados e prestativos, não parece genuíno ou... Sincero. Não estou chamando-os de mentirosos, apenas de não sinceros aos nossos olhos de latinos. Poderíamos talvez dizer que são extremamente individualistas? Talvez. Várias vezes eu e meu marido falamos como quando a gente pede algo e eles respondem "Absolutely" com um sorrisinho parece uma reação forçada. Mas, de novo, não por maldade, mas porque "eles são assim".

Acho que esse "phony" que tanto incomoda Holden é justamente esse tratamento protocolar nas relações sociais da cultura norte-americana marcada por uma falta de genuidade e completamente supercial. Como por exemplo, quando ele vai ao teatro com uma amiga/namorada e ela encontra um conhecido. Ao conversarem, ela pergunta o que ele achou e esse amigo responde que "a peça em si não é uma obra de arte, mas os protagonistas são anjos." E Holden fica IN-DIG-NA-DO. Anjos? Como assim? É fácil entender como este é um comentário sem profundidade, apenas para parecer bonito. E, no final, o que incomoda Holden é justamente esse contínuo esforço do mundo adulto de "se parecer bonito". 

Nem preciso dizer como Holden ficaria imensamente deprimido se visse as redes sociais do mundo pós-digital. É na internet onde conseguimos exacerbar nossa cafonice falsa, brega, travestida de palavras bonitas. Não há lugar no qual conseguimos ser mais phony do que no Twitter, Instagram, Youtube, etc. 

Eu li análises muito legais, muito legais mesmo na internet sobre o livro. Parece que, nos EUA, The Catcher in the Rye é quase uma leitura obrigatória, de tão forte que está no imaginário popular e na cultura pop norte-americana. No entanto, foram dois vídeos que eu achei mais legais e elucidativos do quanto esta é uma obra tão rica e especial. É quase um mini curso em duas partes de mais ou menos 20 minutos. 

Language, Voice, and Holden Caulfield - The Catcher in the Rye Part 1

Holden, JD, and the Red Cap - The Catcher in the Rye Part 2

É um livro que eu adorei ter lido. Tudo é simbólico, tudo significa alguma coisa: o chapéu, o Museu, o carrossel, os patos... Em algums momentos, Holden compartilha uma tristeza tão grande, uma decepção e depressão com o mundo, que é impossível não se sentir como o próprio Holden: sozinho e triste. Quando ele fala sobre seu irmão pela primeira vez, eu chorei. Apesar de o livro ter sido escrito em outro tempo e lugar - EUA na década de 50 -, ele é bastante palpável, muito atual e sensível para a sociedade ocidental e, tantos anos depois, daqui do Brasil, continuamos a nos identificar e ter profunda compaixão com Holden Caulfield e seus problemas em crescer.