Retrato de Uma Senhora, de Henry James: tradição versus modernidade, casamento e liberdade

Retrato de uma Senhora está entre as obras mais importantes de Henry James e da literatura norte-americana. Depois de A Outra Volta do Parafuso e A Herdeira de Washington Square, Henry James me conquistou e outras obras entraram na lista. E assim comecei The Portrait of a Lady. Foi um dos livros mais difíceis que li nos últimos tempos. Li em inglês e o começo, até me familiarizar com os personagens e ambientes, foi muito devagar e complicado. Mas insisti, funcionou, e segui pelas 800 páginas. 

O enredo

Publicado em forma seriada durante o ano de 1881, Retrato de Uma Senhora conta a história de Isabel Archer, uma jovem moça da cidade de Albany, capital do estado de Nova York. Depois que seus pais morreram e suas irmãs se casaram, Isabel estava pobre, sozinha e um casamento era a única coisa que lhe restava. É aí que chega sua tia Mrs. Touchett, irmã de sua mãe e também nascida nos Estados Unidos, e convida-a a seguir com ela para suas casas na Europa, onde já morava há muitos anos. E assim começamos a saga da heroína Isabel Archer: sua chegada nos jardins de uma mansão inglesa, onde ela conhece seu primo Ralph Touchett e seu tio Mr. Touchett. 

Na Inglaterra ela conhece Lord Warburton, um dos vários candidatos que vai pedi-la em casamento. O outro galã, ao contrário do lord inglês (como nos romances, Isabel diz), será Caspar Goodwood, um jovem businessman de Harvard, que enriqueceu com a indústria de algodão. (É curioso como James caracteriza este personagem fisicamente: de maxilar quadrado e um porte excessivamente masculino, me trouxe imediatamente a imagem do Gaston, personagem do filme da Disney, A Bela e a Fera.) 

Isabel chega na mansão dos Touchett, chamada de Gardencourt, trazendo um frescor inocente, curioso e cheio de otimismo e desejos pela vida. Ela conquista a afeição de seu tio que, no leito de sua morte, decide deixar para a pobre moça uma pequena herança. Ralph, no entanto, de saúde frágil e baixa expectativa de vida, pede ao pai que diminua a sua própria herança e deixe a maior parte para Isabel. Provida de muita dinheiro, diz Ralph, Isabel poderia conquistar a liberdade que tanto desejava. "Mas ela não será vítima de caçadores de fortuna?", pergunta o pai. Ralph confirma que este risco ela irá correr, mas que ele está curioso e gostaria de ver e acompanhar como a prima vai lidar com essas questões. 

Mr. Touchett morre, Isabel torna-se uma moça solteira muitíssimo rica e, sedenta por liberdade, recusa os pedidos de casamento do Lord Warburton e de Caspar Goodwood, partindo em direção à Itália com sua tia. A partir daí, a história se desenrola em casarões e ruínas nas cidades de Florença e Roma.

Ainda na Inglaterra, Isabel conhece uma amiga de sua tia que, assim como elas, havia nascido nos EUA, mas morava na Europa já há muitos anos. Mrs. Merle, para Isabel, é a perfeição: elegante, inteligente, culta e sabe agradar. Mrs. Merle também mora na Itália e, depois das pequenas férias em Gardencourt, partirá com Mrs. Touchett e Isabel para Roma e Florença, sendo um personagem importante na segunda parte da história. 

Através de Mrs. Merle, Isabel conhece o viúvo Gilbert Osmond, outro expatriado que tem uma filha adolescente, chamada Pansy. Osmond é um personagem interessantíssimo: ele quer ser um aristocrata e vive, fala e se comporta como um. Seu gosto é o puro refinamento da aristocracia e sua visão de mundo é conservadora, mesmo ele sendo pobre e nascido nos EUA. Ele condena tudo o que é do novo mundo, dos novos costumes, e tem um gosto excessivo pelo convencional. (Praticamente um Caco Antibes.) 

Mrs. Merle e Osmond têm uma relação bastante suspeita e, após a morte de Mr. Touchett e o recebimento da herança por Isabel, tramam um casamento entre a moça e Osmond. Bom, a partir daí, não vou continuar a história, mas adianto que Isabel - contra tudo e contra todos - decide-se casar com Osmond. 

O Novo no Velho Mundo

Apesar da dificuldade que encontrei no começo do livro, por que continuei? Logo de entrada, me interessei demais pela relação de Isabel, uma moça do Novo Mundo, descobrindo as coisas no Velho Mundo. Eu me vi muito nela, quando fui pela primeira vez para a Europa, em 2017. Existe um impacto enorme quando nós, que nascemos e crescemos em países de histórias tão recentes - ex-colônias que conquistaram suas independência há menos de 200 anos -, pisamos em lugares que reinvindicam o início de suas histórias em tempos antes de Cristo. 

Não é sem intenção que o autor coloca sua heroína caminhando pelas ruínas do Coliseu. É o velho versus o novo, a modernidade versus a tradição. No campo da geopolítica, era o recente país Estados Unidos da América se legitimar como uma nação potente e não mais como ex-colônia; no campo da literatura, era Henry James colocando sua obra no panteão da literatura ocidental. 

Temos uma tendência de idealizar o passado, e mais ainda idealizar um lugar que tem um passado que nós não temos. Estar na Inglaterra e conhecer um verdadeiro Lord, diz Isabel, é "como viver um grande romance". Por isso os personagens deixam os Estados Unidos e, na Europa, vivem uma vida aristocrática parada no tempo, andando a cavalo e caminhando pelas ruas milenares europeias, enquanto do outro lado do Atlântico, linhas ferroviárias estavam sendo construídas para ligar o Atlântico e o Pacífico, metrópoles estavam sendo erguidas, e o avanço tecnológico e financeiro se desenvolvia rapidamente de um dia para o outro. 

O progresso tecnológico bate de frente com o conservadorismo social e é aí que entra o casamento frustrado de Isabel Archer. 

O casamento como liberdade e prisão

Eu li Isabel Archer e sua saga de duas maneiras. 

A primeira, como uma personagem feminina que, com os privilégios de uma boa e confortável educação burguesa, cresce com a inocência e vontade de conhecer o mundo. Ela quer ter novas experiências. Depois que seus pais morreram e suas irmãs se casaram, Isabel se vê sozinha, encantada pelo mundo dos livros e é apenas curiosa. Ela vê no casamento o risco de ficar presa e, com a companhia de sua tia e, depois, absolutamente rica, ela rejeita os pedidos de casamento de Lord Warburton e Caspar Goodwood sob o pretexto de preservar sua liberdade. 

Mas o que é liberdade para a mulher no século XIX? Caspar Goodwood diz a ela: solteira, ela não pode andar sozinha por onde bem entender. Uma dama deve estar sempre acompanhada e é constantemente vigiada. Existe uma série de regras sociais do que uma mulher solteira deve ou não fazer para não sujar sua reputação. Só um casamento traria à ela a liberdade que ela desejava. 

E é aí que ela vê em Gilbert Osmond, um compatriota, amante da beleza Antiga, que vive na Europa há muitos anos e cria sua filha com o rigor do conservadorismo Católico, a oportunidade de tornar-se uma dama e conquistar sua desejada liberdade nos círculos mais aristocrático europeus. 

A segunda leitura foi de Isabel como uma metáfora do próprio país Estados Unidos, que vinha discutindo o conceito de liberdade intensivamente no último século. Quando o livro foi publicado, os EUA eram um país de apenas 105 anos, tendo conquistado sua independência da Grã-Bretanha em 1776. Depois disso, entre 1861 a 1865, o país enfrentou a Guerra de Secessão e, só em 1863 os EUA assinaram a abolição da escravidão. Liberdade era o tema do dia há muito tempo. Além disso, um país extremamente novo, estava procurando se encontrar, construir sua própria identidade, e apesar da tão desejada liberdade, era para a Europa que o país se virava para construir suas referências identitárias e culturais. 

Isabel Archer, como uma metáfora dos Estados Unidos, olha encantada para os modos aristocráticos, as ruínas e a tradição do Velho Mundo. Por isso, ela decide casar-se com Gilbert Osmond, o compatriota americano mais conservador que ela poderia encontrar. Caspar Goodwood, o jovem industrialista de Boston, representava o progresso tecnológico, financeiro e o futuro; Lorde Warburton, apesar do título de nobreza, tinha ideias revolucionárias e um engajamento político relevante; Gilbert Osmond era o retrocesso do retrocesso. Sua admiração pelo passado, pelas coisas tradicionais e estáticas, seu gosto pelo Antigo, faz dele um retrógrado. Isabel, na sua inocência, viu no casamento com Gilbert Osmond a possibilidade de unir sua liberdade e juventude com o passado e a tradição.

Essa tentativa de união foi frustrada e deixo aos interessados descobrir porque. Mas acrescento brevemente que, recentemente li A Casa das Sete Torres, de 1850 e escrito Nathaniel Hawthorne. Neste livro, o autor também faz uma crítica à cultura aristocrática numa pequena cidade da Nova Inglaterra, colocando em personagens fantasmagóricos e uma casa mal-assombrada o passado vergonhoso da história de seu país que resistia ao progresso e às mudanças sociais. 

Retrato de Uma Senhora é um livro difícil, mas maravilhoso, que pode ser lido sob diversos pontos de vista, principalmente por quem se interessa pela história dos EUA. Minha formação sempre faz eu ir para o lado mais histórico, mas também achei muito interessante como James fala sobre a mulher e o casamento no século XIX. É um autor que constrói grandes mulheres protagonistas, assim como Catherine Hopper, de A Herdeira de Washington Square. Em Retrato de Uma Senhora, Isabel Archer se sente toda hora deslocada, procurando seu lugar e sua identidade. Em alguns momentos ela só quer ser curiosa e aprender, descobrir as coisas. Ao mesmo tempo que existe uma força social daqueles que a rodeiam que manipulam suas ações, mesmo que ela ache que não. 

Finalmente, só porque "Persuasão" é o tema do dia

Para finalizar, e ainda nesse assunto mulher e casamento, bem que o livro poderia ser chamar Persuasão, como a obra de Jane Austen. A palavra em si aparece inúmeras vezes durante a narrativa. Isabel é uma vítima da influência de Mrs. Merle e Osmond e, a todo momento, acontece um jogo de quem consegue persuadir quem, sem que a vítima da persuasão perceba que está sendo persuadida. 

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Retrato de Uma Senhora foi traduzido por Gilda Stuart e publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras. Há uma versão em e-book para Kindle por menos de 5 reais.