O dia em que Selma sonhou com um ocapi, de Mariana Leky

Eu gosto muito de literatura contemporânea, mas fazia um tempo que não lia nada publicado recentemente. Quebrei o jejum com What you can see from here, Mariana Leky, publicado originalmente na Alemanha em 2017 e, no Brasil em 2019 com o título O dia em que Selma sonhou com um ocapi

Cheguei até ele por indicação da Mia Sodré. Procurei a descrição e, de cara, amei a premissa: toda vez que Selma sonha com um ocapi, alguém na vila morre em 24 horas. Parênteses: ocapi é um mamífero originário da África. Não é bonitinho. É bem feio na verdade, o que explica sua falta de popularidade. Eu fiquei super intrigada como se fosse uma antropóloga: como se comportariam os familiares e amigos de Selma e os habitantes daquela vila sabendo que, possivelmente, aquelas seriam suas últimas 24 horas de vida? Seria "deixa eu comer tudo o que eu posso até passar mal porque não sei se estarei aqui amanhã", ou "hoje eu não vou para a academia, porque o que importa se eu vou morrer hoje mesmo", ou "hoje me vingo e mato aquele FDP", ou ainda "não sairei da igreja e vou implorar para Deus me poupar"? Qual seria o tom? Melancolia? Caos social? Apocalíptico? Divertido? Irônico? 

Absolutamente nada disso. Mariana Leky é muito original. 

A história é narrada por Luisa, neta de Selma. Elas vivem numa pequena vila na Alemanha Ociental. O livro me lembrou um pouco Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, que se passa na Polônia e sobre o qual escrevi aqui. Me lembrou no sentido de que a narrativa se parece uma fábula. Ambas as histórias têm como protagonista uma senhora idosa, se passam num pequeno povoado, a relação entre as senhoras e a vizinhança é de muita proximidade, a paisagem natural, inclusive os animais mencionados, são os mesmos - temos a floresta, a planície, o veado e o caçador. No livro de Olga Tokarczuk, há um misticismo presente em toda a narrativa e, no livro de Mariana Leky, encontramos também um universo fantasioso, cheio de superstição. 

Quem já teve a chance de conhecer essas vilas pequenas da Europa, lê a narrativa de Mariana Leky com muita familiaridade. Um lugar onde o tempo passa e, ao mesmo tempo, tudo continua igual. Onde as pessoas, apesar do nome, são conhecidas e chamadas pela sua função dentro da comunidade, como o oculista, o lojista, ou o sorveteiro. É uma leitura apaixonante, envolvente e, como numa fábula, passamos pelas 300 páginas bem rapidamente. Vamos acompanhando alguns anos da vida de Luisa que, no começo da história, quando sua vó sonha com o ocapi, tem apenas 10 anos. No final, terminamos o livro com uma Luisa de 30 anos. 

Na minha opinião, o grande mérito da narrativa de Leky é colocar beleza onde, a princípio, não há. A mesmice, o cotidiano, a vida simples daqueles que nascem, crescem, casam-se, envelhecem e morrem no mesmo lugar. Diálogos sobre coisas simples, pequenos pensamentos filosóficos feitos por pessoas normais. E, principalmente, a morte. Leky trata com sensibilidade todos esses aspectos humanos profundos de maneira simples e sofisticada. 

Teve apenas uma coisa da qual não gostei. O livro começa muito bem, mas acaba mal. Não gostei do epílogo. Senti ele desconexo e até um pouco decepcionante. 

E por que um ocapi? 

Isso não é respondido no livro, mas segue a minha interpretação. Ao longo da narrativa, temos muitas "portas". Grandes momentos na vida de Luisa acontecem com portas, literalmente. Me parece que ocapi é a representação de tudo o que está do outro lado de uma porta que separa aquele mundinho pequeno circundado pelos limites da vila (ou seja, o conhecido) do resto do mundo (ou seja, o desconhecido). Tudo que vem "de fora" desestabiliza a ordem monótona e metódica daquelas pessoas. Primeiro o ocapi, no sonho de Selma, e depois Frederik, o monge budista. 

Essa dualidade entre conhecido versus desconhecido, conforto de casa versus aventura, consentimento versus curiosidade é bem representada na figura do pai de Luisa. O médico, de certa forma incompreendido, está sempre viajando para os lugares mais remotos e menos óbvios. Ele é um aventureiro ou está procurando algo que não é possível encontrar? A cada retorno para ver sua família, ele traz um pedacinho do que é de fora para dentro daquela pequena vila através de livros de viagens. 

Uma narrativa que se passa em uma vila da Alemanha Ocidental entre os anos de 1980 e 2000 não poderia passar imune ao seu contexto histórico. O trauma da guerra para aquelas pessoas está na figura de Heinrich, avô de Luisa, que nunca o conheceu. Um dia ele foi para a guerra e nunca mais voltou. As fotografias e memórias que restaram deste personagem são poucas. Quase não há informação. É como se, o pouco que temos, tivesse escapado pelas frestas de uma porta que se fechou e nunca mais foi aberta quando ele saiu daquela pequena vila para o mundo desconhecido. Talvez este seja um pouco que eu não tenha gostado muito. Eu acho que o papel da Alemanha nas duas guerras mundiais tem que ser escancarado, debatido e definitivamente não colocado do outro lado da porta. Heinrich aparece toda vez como uma lembrança muito distante, cuja imagem é quase apagada, e eu acho que a violência vivida  - causada e sofrida - na Alemanha no século XX tem que ser clara claríssima. 

Mas, apesar disso, é um livro lindíssimo, recomendo bastante. É uma narrativa sobre morte e luto de forma sensível e profunda. Apesar dos pontos que eu não gostei, é uma leitura muito prazerosa e envolvente. Porém, tem que estar preparado para sentir conforto mas também muita dor. Prepare os lencinhos para o final da primeira parte do livro. 

Um ocapi  - Photo by tenaciously_tina on - Pixabay

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