Em Imunidade, Eula Biss explora o poder da metáfora e eu reflito um pouco sobre a perda de espaços na pandemia

A última vez que busquei este blog nos cafundós da estante - como um caderno de anotação que existe e está lá ao nosso socorro, mas não é sempre usado – foi no auge do meu isolamento social durante a pandemia. Em São Paulo, a quarentena começou na segunda metade de março e o medo (e eu estava com muito medo!) me levou ao total isolamento até o dia 1 de Julho, quando não aguentei mais.

Em março, no mesmo período que se discutia o início do isolamento social, eu depositei minha dissertação de mestrado, que passei os últimos meses em uma intensa rotina de escrita, revisão, leituras e releituras. E também em março, no meio desse caos social, sanitário, político e econômico, a editora Todavia disponibilizou de graça a obra da Eula Biss publicado em 2017, Imunidade, para download no Kindle. Durante todo esse tempo de sete meses eu não toquei no livro. Ele estava lá, mas eu o ignorei. Deliberadamente. Mas nas últimas semanas tenho refletido sobre esse “fim” do isolamento, a existência de uma pandemia que está sendo – devagar e constante – tornando-se menos definitiva em nossas vidas. 

 

Antes, justamente porque COVID, pandemia, coronavírus e todo esse vocabulário e assunto ocupavam todas as horas do meu dia, todos os meus pensamentos, todas as notícias que eu lia, todos os feeds das minhas redes sociais, todas as minhas tomadas de decisões, etc, não havia mais espaço disponível para ler o livro da Eula Biss com a atenção merecida. Teria sido uma leitura contaminada pelo medo, pela paranóia, e não pelo valor da própria palavra escrita. Agora, que estou respirando outros ares, outros assuntos, outros problemas, deu para ler com carinho os ensaios da autora.

Sim, foi assim que o li. Como uma coletânea de curtos ensaios que refletem – a partir de experiências pessoais e outras leituras - sobre saúde, imunidade, epidemia, vacina, maternidade, gripe, contaminação, etc. Onde começa e onde termina nossos corpos como indivíduos dentro de um sistema social dividido por classe, preconceitos, crenças e fronteiras históricas e geográficas. Apesar do assunto pesado, Eula Biss traz de forma muito leve e didática, instigante, o histórico das epidemias e das vacinas: varíola, H1N1, aids e outras doenças infecciosas. E também destrincha em vários pedacinhos o pensamento anti-vacina: desde a desconfiança causada pela falta de assepsia nos primórdios da medicina e vacinação, até o discurso “naturalista” que condena como nocivos à saúde humana substâncias criadas pelo desenvolvimento industrial e que incluem tanto inseticidas como o DDT como polímeros tóxicos que revestem colchões e travesseiros infantis. 

Porém, para além dos dados científicos e históricos que a autora traz, o que mais me chamou atenção são as observações em relação a linguagem: o uso de metáforas para a compreensão do universo científico. Pensamos, por exemplo, em termos bélicos a questão da imunidade: nosso corpo é um cenário de guerra cujas células protetoras do sistema imunológico procuram, perseguem, sufocam e eliminam unidades exógenas e nocivas. Uma batalha sem fim para nos proteger de doenças infecciosas. 

Ou então, a infeliz metáfora (tão em voga nos últimos meses) da imunidade de rebanho. Trata-se de imunidade de grupo, um dos objetivos das campanhas de vacinação: quando muitos já estão protegidos, não há desenvolvimento da doença e, portanto, não há transmissão àqueles que não estão imunizados. O discurso anti-vacina - alimentado pelo extremo individualismo que vê os corpos como unidades autônomas e desconectados dos outros corpos - se favorece desta ideia que sugere que somos gado. Efeito rebanho, mentalidade de rebanho, corpos de animais sendo direcionados ao abate e também uma ideia de fronteira de fazendas: a saúde da propriedade vizinha não é meu problema. 

"Se trocássemos a metáfora do rebanho pela da colméia, talvez o conceito de imunidade compartilhada fosse mais atraente. As abelhas são matriarcais, fazem bem ao meio ambiente e são inteiramente interdependentes. A saúde de qualquer abelha individual, como sabemos a partir da recente epidemia de colapso das colônias, depende da saúde da colmeia." 

Mas talvez a metáfora mais interessante exposta pela autora seja a do Drácula, de Bram Stroker. (Graças também ao fato de que estou influenciadíssima por tudo que li em sites de literatura e clubes de leitura sobre o gótico nesse mês de Halloween) A comparação é sugerida logo nas primeiras páginas e nos acompanha por toda a leitura. A desconfiança em relação à vacinação vem desde o seu surgimento, mas se hoje as acusações antivax são relacionadas à ganância pelo lucro, capitalismo e poluição, antes a resistência e o medo se confundiam com o pensamento fantástico. 

"Um folheto de 1881 intitulado 'O vampiro da vacinação' adverte sobre a 'poluição universal' transferida pelo vacinador ao 'bebê puro'. Conhecidos por se alimentarem do sangue de bebês, os vampiros daquela época se tornaram uma metáfora pronta para os vacinadores que infligiram ferimentos às crianças. [...] De todas as metáforas sugeridas nas abundantes páginas de Drácula, a doença é uma das mais óbvias. O conde chega à Inglaterra exatamente como uma doença nova podia chegar: de navio. Ele invoca hordas de ratos e seu mal infeccioso se espalha da primeira mulher que ele morde às crianças que ela alimenta à noite, sem saber o mal que está causando. O que torna Drácula particularmente aterrorizante e o que faz sua trama levar tanto tempo para se resolver é que ele é um monstro cuja monstruosidade é contagiosa."

Ao publicar Imunidade, Eula Biss menciona a previsão feita, em 2004, pelo então diretor da OMS de que uma pandemia num futuro próximo era inevitável. Ainda que ela não fale de coronavírus, COVID, síndrome respiratória, isolamento social e quarentena, todo o resto dialoga o tempo todo e diretamente com o que estamos vivendo com nossos corpos no individual e no coletivo. 

Quando finalizei a leitura, fiquei pensando na questão do espaço. Como antes, apesar da disponibilidade de tempo e interesse em ler o livro, o assunto pandemia estava ocupando todos os espaços: minha cabeça, minha casa, meus pulmões.. Eu estava me afogando e, às vezes, no desespero, me agarrava ao meu marido tentando me salvar, o que deixava ele também mais sufocado.

Falo de espaços físicos e metafísicos. Não são apenas os sonhos, as tomadas de decisão, os pensamentos e o medo do futuro, foi também a minha casa que se transformou. Eu perdi meu escritório, minha escrivaninha. Todo o espaço físico onde eu passei os últimos meses estudando e escrevendo minha dissertação de mestrado tornou-se home office do marido. Perdi meu sofá e minha TV para uma sala de jogos. Perdi a sala de jantar, pois a mesa virou uma escrivaninha adaptada para o meu computador e livros, enquanto o chão tinha um step, pesinhos e uma bicicleta ergométrica alugada, que me lembravam todos os dias que eu não podia deixar de me exercitar (nem que fosse um pouquinho).

E nesse sufoco, onde todos os espaços foram metamorfoseados, eu não consegui mais estudar e trabalhar. Não consegui mais escrever. Meu objetivo de escrever artigos para publicação e o projeto de doutorado também se afogou. Além do meu escritório, eu não tinha mais o arquivo e a biblioteca da universidade. Quanto mais eu me cobrava de produzir, pior eu me sentia. Eu acho que esse foi um dos motivos pelo qual eu retornei ao espaço deste blog - ele estava lá disponível. Sem pressão. Sem objetivos. Ele continuava igualzinho ao que era antes da pandemia. Me pareceu mais convidativo e menos sufocante. Menos contaminado.

Procurando depois outros blogs para seguir e ler, percebi que está havendo este movimento para retomada da blogosfera. Tantos espaços nos foram retirados, doméstica e socialmente, que os blogs têm sido esse espaço em branco - como cadernos novos - que podem ser preenchidos do zero. 

A pandemia não acabou - e não me arrisco a dizer o contrário. Sei dos perigos. A vida não voltou ao que era antes e não há previsão de quando isso irá acontecer. Eula Biss diz que, quando se tornou mãe, o medo de que algo acontecesse ao seu filho lhe dominou. O sentimento de impotência, ela afirma, vem desde o mito de Aquiles: apesar da tentativa de sua mãe de torná-lo imortal, seu calcanhar, onde sua mãe o segurou, não fora banhado pelas águas mágicas. Por mais que ela fizesse tudo o que lhe fosse possível, ainda sim não seria suficiente para proteger seu filho de todos os riscos existentes. Aos poucos, vamos compreendendo nossos alcances e nossos limites. 

Minha sala de estar e de jantar voltaram às suas funções originais. Outros espaços reapareceram, como academia, parque, restaurantes. Mais recentemente os museus e cinemas. Na minha mente e no meu coração, também pela demanda da continuidade da vida, alegrias e outros problemas dividem espaço com a pandemia. Meu escritório e minha escrivaninha ainda não voltaram, mas sei que voltarão. E já prevendo meus retornos e abandonos a este espaço/caderno, possivelmente quando voltar as práticas de escrita e leitura da vida acadêmica, este blog volte para a estante. Será? Talvez. Não sei. Apesar de não estar mais me afogando e ter recuperado certo controle, não sei como sairei deste mar pandêmico onde ainda estamos todos mergulhados.

Um comentário:

  1. Engraçado que esse foi um dos pouquíssimos livros que eu consegui ler naquela época do auge do medo da pandemia, peguei de graça também e adorei. Acho que porque falava de outras epidemias, eu também devorei a série Epidemia do podcast 37 graus, que era sobre zica. Minha casa também foi toda transformada, a sala de TV q era meu escritório virou do marido, o quarto onde ele guardava instrumentos musicais virou meu lugar de pintar aquarela (por causa da luz). Eu também tô com uma bicicleta ergométrica alugada, e isso me ajudou demais
    E enfim, vamos sobrevivendo, um dia de cada vez 😊

    ResponderExcluir