Apesar dos pesares, 2020 foi um ano de ótimas leituras - uma retrospectiva literária

Não achei que a retomada deste blog chegaria tão longe. O nome "um caderno esquecido" é justamente porque eu venho até ele, escrevo um pouco, abandono-o para, algum tempo depois, lembrar que ele existe e que é interessante escrever sem compromissos. (Obrigada, Google, por possibilitar isso.)

Lá em maio, auge do isolamento social, quando todos os dias pareciam exatamente iguais e o Nelson Teich vampiresco ainda era o Ministro da Saúde, eu tive a ideia de ocupar um pouco o tempo livre escrevendo no blog. Primeiro como exercício de escrita. Segundo, como uma tentativa de registrar os livros lidos e poder, de alguma forma, fazer uma reflexão sobre minhas leituras feitas fora do meio acadêmico. 

Na época, eu tinha já depositado minha dissertação e estava esperando a data da defesa. Eu estava com saudades do exercício de ler, refletir, grifar, escrever, marcar páginas com post-it, enfim... de estudar. O blog pareceu uma boa oportunidade para isso. 

Agora, a pandemia não acabou, mas o isolamento social sim (verdade infeliz). Eu mesma voltei a realizar parte das minhas atividades rotineiras - como ir para a academia -, mas o blog continuou resistente. Isso se deve a dois fatores. 

1. O ato de escrever - esta prática de fixação e estudo - me permitiu fazer conexões entre as leituras e diferentes livros que não seriam possíveis se eu não estivesse dedicando tempo e esforço mental para isso. Como antes, durante a leitura eu teria vivido intensamente a experiência narrativa, mas depois que o livro fosse fechado, a memória seria logo guardada junto na estante e lá esquecida. Escrever sobre o que li, mesmo que seja um breve comentário, ajuda a lembrar, categorizar e conectar com outras referências.

2. Outro motivo foi a comunidade de leitores e escritores de blogs que fui conhecendo na internet. Perfis e blogs literários que me ajudaram a descobrir novos autores ou me estimularam a ler autores clássicos que eu já conhecia, mas não teria tido a iniciativa de ler. Tudo isso tem enriquecido o leque de leituras que tenho feito e que, na minha opinião, já é bastante eclético. Além do fato de que é legal trocar impressões e opiniões sobre os livros lidos em comum. Já comentei em outros posts a importância dos clubes de Leitura Coletiva para a escolha das últimas obras escolhidas. Deixo novamente registrado os dois mais importantes que tenho acompanhado: o Querido Clássico e a Gabi Barbosa

Lembrando também que passei a conhecer outros blogueiros, interagir com outras pessoas que escrevem e publicam e até participei da campanha Estação Blogagem - o que foi muito legal!

Agora, nestes últimos dias de 2020, o blog possibilitou uma retrospectiva, pois eu nunca conseguiria lembrar de todos os títulos apenas de memória. Pode ser que eu tenha deixado escapar alguma leitura feita antes de maio, mas seria uma ou duas. 

No final, fiquei muito orgulhosa com a lista. Eu nunca fui atrás de número, metas, estilo ou autores específicos. Sempre fui fluindo com o que eu sentia vontade. E quantidade - em se tratando de livros - é tosco, pois as experiências são diferentes.  O Jogo da Amarelinha, por exemplo, tem número de páginas similar a O Pintassilgo, mas o primeiro foi uma viagem prazerosa no começo, difícil e vagarosa no meio e, no final, mindblowing. Levei mais de um mês para ler, enquanto O Pintassilgo li em muito menos tempo e a experiência foi bem "chuchu". Não foi ruim, mas também não foi espetacular.

Achei legal também a variedade de gênero e nacionalidade de autores, estilos e escolas literárias. Com predominância, é claro, do século XX - meu século favorito. Se eu tivesse paciência e boa vontade, faria uma tabela no excel com as informações de todos os livros, apenas por curiosidade estatística. Mas não preciso disso agora. Da lista abaixo, em negrito estão os meus favoritos do 2020.

1. Um Artista do Mundo Flutuante - Kazuo Ishiguro

2. Senhor das Moscas - William Golding

3. O Talentoso Ripley - Patricia Highsmith

4. Quinquilharias Nakano - Hiromi Kawakami

5. Miso Soup - Ryu Murakami

6. O Jardim Secreto - Frances Hodgson Burnett 

7. Imunidade - Eula Biss

8. A outra volta do parafuso -  Henry James

9. Dr. Jekyll and Mr. Hyde - Robert Louis Stevenson

10. Outras Mentes -  Peter Godfrey-Smith

11. Rita Lee - uma autobiografia

12. A Assombração da Casa da Colina - Shirley Jackson

13. Enterre seus Mortos - Ana Paula Maia

14. O Apanhador no Campo de Centeio -  J.D. Salinger

15. É isto um homem? - Primo Levi

16. A Trégua - Primo Levi

17. O Complexo de Portnoy - Philip Roth

18. Jorge Amado: uma biografia - Josélia Aguiar

19. O fim do homem soviético - Svetlana Aleksiévitch

20. Os irmãos Karamazov - Fiódor Dostoiévski

21. Moby Dick - Herman Melville

22. Caçando Carneiros - Haruki Murakami

23. Sobre os Ossos dos Mortos - Olga Tokarczuk

24. O Pintassilgo - Donna Tartt

25. Homem Comum - Philip Roth

26. Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar

27. 1Q84 Vols. 1, 2 e 3 - Haruki Murakami

28. Becoming - Michelle Obama 

Entrei 2020 lendo Becoming e logo comecei a trilogia de 1Q84, do japonês Haruki Murakami. Como classificá-lo? Fantasia, realismo mágico, ficção científica? De qualquer maneira, vou terminar o ano e iniciar 2021 lendo O Problema dos Três Corpos, este sim oficialmente classificado como ficção científico, do chinês Cixin Liu. Apenas uma curiosa coincidência: trilogias de autores contemporâneos orientais. 


Apesar de todos os pesares de 2020, fiz ótimas leituras e espero que 2021 seja também recheado de bons livros. 

(Outra curiosidade: por ironia do destino meu texto mais visualizado e comentado não foi relacionado à nenhuma leitura, mas ao jogo Last of Us II.)

Um Artista do Mundo Flutuante, Kazuo Ishiguro: as dores e a melancolia daqueles que perderam a guerra

Acabei sem querer tropeçando em Kazuo Ishiguro e Um artista do mundo flutuante foi meu livro de estreia do autor. Circulando pelos perfis literários no Instagram, vi uma referência à beleza da capa de Um Gigante Adormecido. Como eu estava ainda mexida pela recente leitura de Miso Soup, obra de outro autor japonês, fui atrás de Kazuo Ishiguro na Amazon e acabei me interessando.

Este post não chegará aos pés da atenção que merece Um artista do Mundo Flutuante. Sinto que eu deveria voltar às páginas do livro e fazer uma segunda leitura mais cuidadosa, mais reflexões, mais parágrafos grifados e páginas marcadas com post-it caso se eu quisesse cumprir com louvor a minha ousadia de escrever sobre este livro aqui. Não obstante, segue algumas ideias e um relato da minha experiência de leitura.  

Eu não sei porque, mas eu sou um ímã de leituras relacionadas à Segunda Guerra Mundial. Já mencionei sobre isso em outros posts. Talvez - só talvez, seja porque eu sou uma apaixonada pelo século XX e a Segunda Guerra foi o maior evento deste período. Nos últimos dois anos, li muita coisa sobre o Holocausto e o Exército Vermelho, mas nunca sobre o ponto de vista político. Sempre - absolutamente sempre - meu interesse está na relação do indivíduo e sua identidade com o momento histórico vivido (ou herdado). Hitler não me interessa. Me interessa a dona de casa que compra pão todo dia na União Soviética e, um dia, sai às ruas para protestar por mais liberdade. Me interessa o filho do judeu imigrante que nasceu nos EUA, viu o Holocausto do outro lado do Atlântico e um belo dia vai para Israel. Me interessam as pessoas comuns e como elas vêem o mundo - e a si mesmas! -  a partir das vicissitudes históricas.

Engraçado que, apesar de todo esse interesse, eu nunca havia me atentado para um dos antagonistas desta Guerra. Frequentemente falamos de Pearl Harbor, kamikazes, Bomba Atômica, Hiroshima e Nagasaki. Este vocabulário está aí, em todo o lugar, mas acho que se tornaram um pouco vazios. Tanto quanto as vezes "Holocausto" parece estar se desgrudando de todo o significado que a palavra carrega.  Parece que quando falamos da participação e derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a queda das bombas nucleares e a rendição estamos falando apenas de dados históricos. Precisamos relembrar os significados destes eventos - tanto para o momento em que ocorreram como para o tempo presente.

Neste sentido, Um Artista do Mundo Flutuante me lembrou Talvez Esther, de Katya Petrovskaya, que eu li ano passado. São leituras que falam sobre as feridas que não se fecham e os traumas que a Segunda Guerra Mundial trouxe nos níveis individuais e familiar. Como uma falha em um único ponto que deixa marcada toda a continuidade da trama de um tecido. Ou a colocação dos tijolos de um muro: quando uma peça não é bem assentada, todo o restante vai sendo construído torto. Passei tanto tempo na faculdade de História, há tantas e tantas horas de séries, documentários e filmes sobre eventos históricos, mas pouco se fala da dimensão de um trauma histórico naqueles que acordam no dia seguinte, vivem sua vida, almoçam, vão trabalhar, voltam para a casa e dormem para viver outro dia. Como diz Primo Levi em seus livros: é impossível voltar à vida de antes. 

Mas estou divagando - como diria Masuji Ono, o protagonista de Um artista do Mundo Flutuante. O livro é contado em primeira pessoa durante os primeiros anos da ocupação, entre Outubro de 1948 e Junho de 1950. A partir de quatro datas marcadas, que funcionariam como quatro grandes capítulos, Masuji Ono, um artista já aposentado, nos conta os problemas que envolvem as tratativas de casamento de sua filha mais nova, Noriko. A filha mais velha, Setsuko, já casada e com um filho pequeno, Ichiro,  mora longe com seu marido e visita o pai em ocasiões específicas. 

A partir destas questões que envolvem Noriko, Masuji Ono vai recuperando algumas situações passadas e, tomando de sua memória, nos conta eventos que viveu nos períodos pré e durante a guerra. Nos relata também, aos poucos, sua formação como artista, sua ocupação oficial no governo, a relação com seus alunos, o ambiente artístico e cultural boêmio do Japão dos anos 20 e, após, sua virada para uma arte mais patriótica e engajada às causas sociais. 

Contando sobre si, os lugares que frequentou e as relações cultivadas e rompidas ao longo de sua vida, Masuji Ono narra a própria história do Japão e faz um mea culpa, uma retrospectiva das responsabilidades e consequencias da Segunda Guerra Mundial para o que restou àqueles que sobreviveram e agora habitam um outro Japão - um lugar completamente diferente do que conheciam. Tudo isso sem mencionar, nem uma vez sequer, um evento específico ou todo aquele vocabulário já exaustivamente utilizado: bombas incendiárias, kamikazes, Hiroshima, Nagasaki, etc. Mesmo "guerra" é um vocábulo que quase não aparece.

Esta retrospectiva é feita sob as motivações que envolvem o futuro - os problemas das gerações mais jovens: a vergonha da perda, a humilhação da ocupação, a ofensa da rendição, as mortes dos entes queridos e a destruição das paisagens. Quem responsabilizar? Quem é o culpado de tudo isso? São traidores aqueles que levaram o Japão ao seu aniquilamento? 

Por mais que nosso conhecimento sobre o leste asiático seja muito tangencial, sabemos que a história tradicional do Japão é marcada pelos samurais, casas de chás, gueixas e uma forte cultura de expansão imperialista. Uma sociedade bélica, violenta, patriarcal, sanguinária. O que aconteceu com esta tradição após a derrota da Segunda Guerra e a ocupação do território pelos EUA?

Masuji Ono, um intelectual e artista patriota, que ocupou cargos oficiais importantes durante a guerra e participou ativamente da promoção artística das campanhas de recrutamento, apesar de não ser acusado diretamente, é visto como um dos responsáveis - culpados - pelos erros geopolíticos recentes do país. Que posição agora ele ocupa? Sem ser diretamente acusado, suas filhas acham que a proposta de casamento de Noriko do ano anterior foi frustrada por causa do passado de Masuji Ono. Sua família, apesar de tratá-lo com muito respeito, na verdade trata-o com excesso de formalismo e o exclui. Ele está lá. Ele faz parte, mas ao mesmo tempo não faz. 

Abre parênteses.

O neto Ichiro, uma criança pequena, está brincando - do que parece ser - de super-herói. Quem ele está imitando? Um grande samurai da história do Japão, como Musashi? Não. Um cowboy. Seu pai, genro de Masuji Ono, acha melhor seu filho não conhecer os heróis/ samurais da história japonesa, pois não são boa influência. É melhor ele aprender com a cultura norte-americana. 

Depois, mais para frente, a criança enche a boca com espinafre - muito mais do que é capaz - e bate em seu próprio peito para imitar o Popeye. Aos olhos de Masuji Ono, a criança faz isso de modo besta. Tosco. Vergonhoso. 

O tempo passa e Masuji Ono, depois de conversar com seu neto sobre saquê, diz que o Ichiro está grande, tornando-se um homem e poderia experimentar um pouco da bebiba alcoolica. A filha Setsuko se nega a diluir um pouco de saquê na água para dar a seu filho, apesar da expectativa da criança. Mesmo aos protestos de Masuji Ono, dizendo que o momento que um menino experimenta o saquê é um ritual de passagem - uma ocasião importante para a formação do menino-homem e que ele se lembrará para sempre com carinho desse momento, Setsuko nega. O pai de Ichiro discordaria também. 

Fecha parênteses.

Masuji Ono ouve dos jovens adultos que o Japão tem muito a aprender com os EUA e com a "democracia". Ele vê a chegada dos costumes ocidentais ocupando todos os espaços do Japão: desde a "comodidade" dos novos conjuntos habitacionais sendo construídos (apartamentos que, segundo ele, são minúsculos), até os cartazes de cinema e pequenas intervenções de mau-gosto nas decorações para agradar os norte-americanos. 

Os outros de sua geração se suicidam - a fim de "ajudar" as novas gerações a superar a vergonha passada e poderem se voltar ao futuro. Masuji Ono vê a doença e a velhice atingir a geração daqueles que um dia lutaram pela grandiosidade de seu país e que paassaram a serem vistos como "traidores", responsáveis pela decadência, destruição e sujeição do país às forças externas. 

Certo momento, Masuji Ono nos conta que teve uma conversa com sua filha Setsuko e começa dizendo que "se irritou" porque ela estava errada em sua suposição. Para nós, Masuji Ono vai aos poucos recuperando lembranças, nos contando a partir de sua memória, vários momentos e detalhes de sua vida que justificam os motivos pelos quais sua filha estava errada. Em nenhum momento eles se confrontam, mas, no mesmo almoço do evento do saquê, o artista aposentado sugere uma afirmação que indicaria que a filha estava errada - e ele acredita que ela entendeu o recado. De qualquer maneira, ele nos mostra com convicção: ela estava errada. 

Já ouvi falar outras vezes sobre o "choque" de gerações entre os japoneses. O choque entre tradição versus modernidade. Kazuo Ishiguro coloca essas questões de modo sensível e profundo. A partir da personagem de Masuji Ono, o autor nos mostra a importância de uma revisão histórica, que os responsáveis assumam seus papeis na tragédia que assolou o Japão para que o futuro venha a ser, que os jovens e as futuras gerações tenham possibilidades e possam superar os desafios impostos pela guerra e continuar suas vidas e a vida do seu país.

Porém, existe também uma crítica severa contra estas novas gerações que - seja por vergonha, ou outros sentimentos de remorso - transformam esta reflexão em uma completa substituição de seu passado. Parece que não se trata mais de uma autocrítica, mas uma completa substituição de suas história e tradição. Uma hiper-valorização da cultura ocidental, as tentativas sutis de agradar os americanos e a ideia de que o Japão tanto tem a aprender com a democracia norte-americana vem a borrar todo a cultura, tradição e identidade japonesas. Borrar - não apagar - porque, como Masuji Ono mesmo diz ao reconhecer traços de seu filho no seu neto Ichiro, as novas gerações nunca deixam de carregar e levar adiante características herdadas de suas famílias e até mestres. 

"Na verdade, nesse dia, ao ver Ichiro com o rosto colado ao vidro para olhar a rua lá embaixo, percebi o quanto estava ficando parecido com o pai. Havia traços de Setsuko também, mas isso se via principalmente em seu jeito e nas pequenas expressões faciais. E claro, me surpreendeu também a semelhança de Ichiro com meu próprio filho, Kenji, quando tinha essa idade. Confesso que sinto uma estranha consolação ao observar as crianças herdarem essas semelhanças de outros membros da família, e minha esperança é que meu neto as mantenha em seus anos adultos. 

Claro, não é apenas na infância que estamos sujeitos a essas pequenas heranças; um professor ou mentor que admiramos muito no começo da vida adulta deixará sua marca e, de fato, mesmo muito depois que se reavalia, talvez até se rejeita, o grosso dos ensinamentos desse homem, certos traços tenderão a sobreviver, como alguma sombra dessa influência, para ficar com a pessoa pelo resto da vida."

Apesar do sentimento consolador de ver as heranças sendo transmitidas de geração em geração, também é presente o sofrimento. Uma dor tanto entre aqueles que viveram a guerra, foram responsáveis por ela e, se antes eram heróis, tornam-se excluídos e acusados, quanto entre os mais jovens, que tentam apagar o passado herdado. As tentativas de apagamento são frustrantes, pois, como aponta Masuji Ono, inevitalmente os traços e semelhanças são herdados: as tentativas de importação da cultura ocidental e apagamento da tradição são, portanto, dolorosas para todos - independente da geração e da idade. É a melancolia que os afasta e, contraditoriamente, também os une.

Esta foi minha última leitura de 2020 e, com certeza, uma das mais belas.

Senhor das Moscas: de uma primeira impressão morna para um dos livros mais legais que já li

O Senhor das Moscas mexeu comigo. Assim como assombrou Simon, me deixou também muito chocada.

Eu li a resenha já fazia um bom tempo. Talvez ano passado, não sei com certeza, mas foi nesta Black Friday que eu comprei. Na versão e-book estava menos de 10 reais e nem considerei não comprar. Um grupo de crianças sobreviventes de uma queda de avião em uma ilha deserta? Eu achei "UAU", não tinha como ser ruim para uma fã de Lost. Escrito pelo escrito inglês William Golding e publicado em 1954, o livro traz múltiplas possibilidades de leituras e metáforas... Abaixo, segue um pouco sobre as minhas reflexões. (Trata-se de uma reflexão sobre todo o livro, inclusive o final. Não é uma resenha. Se você tem a intenção de ler este livro um dia e não quer spoiler, não continue.)

Antes de "O Jardim Secreto", o último livro que li com personagens infantis foi o de contos de Silvina Ocampo, chamado "A Fúria". Foi um livro incrível, nada infantil. Apesar dos personagens crianças, os contos são bastante obscuros, desconfortáveis. Há uma "maldade", uma "falta de inocência", talvez até um sadismo infantil que perpassa a vida cotidiana e nos deixa muito chocados. Quando comecei a ler Senhor das Moscas, pensei em encontrar algo do tipo. 

Por isso uma decepção enorme até a metade do livro. É muito parado, mas depois compreendi que é tudo a preparação de um terreno para o que vem a seguir.  E o que vem, vem com tudo. 

Na verdade, a falta de preocupação das crianças-sobreviventes numa ilha paradisíaca, sem adultos por perto, me lembrou muito eu mesma no começo da quarentena lá em março/abril: parecia férias! O livro começa com esse sentimento: apesar do desastre (afinal, um avião caiu e não temos comunicação com o mundo civilizado, estamos por nossa própria conta e risco), não está tão ruim assim. 

Mas é claro que as coisas começam a piorar e a ausência de organização social, autoridades e instituições começa a pesar nos mais simples atos da vida do grupo. Apesar do líder eleito na maior alegria e unanimidade entre as crianças nas primeiras páginas, decisões difíceis criam divergências, rivalidades e, em última instância, tragédia. O que se torna mais importante: manter uma fogueira acessa como sinal para um possível resgate, ou caçar carne para alimentar o grupo? 

E até mais ou menos 50% do livro, as dificuldades óbvias que vão pressionando as crianças pela sobrevivência os divide entre dois grupos. Uns são os mais "civilizados", aos quais a sujeira incomoda e cuja preocupação maior é manter a fogueira acessa com a esperança de um resgaste e retorno ao mundo que conhecem. Os outros são os caçadores, que têm uma relação diferente com a ilha: aprendem a ser predadores, caçar e matar javalis e tornam-se mais "primitivos", desenvolvem rituais e crenças e estão preocupados com o aqui e agora. Enquanto os primeiros aguardam o retorno e se vêem na ilha em situação momentânea, os demais adotam uma postura mais integrada e assimilativa ao ambiente.

Isso torna a leitura um pouco chata, como se fosse uma aula de sociologia de ensino médio na qual a gente discute "o que é democracia?" e Rousseau e o homem primitivo. Esta é minha leitura de 2020, claro. No contexto da década de 1950, as atrocidades da Segunda Guerra Mundial haviam colocado em nova perspectiva a civilização ocidental e questionava-se estes valores iluministas até então considerados irrefutáveis.

Porém, da metade em diante, eu fiquei muito mais agarrada ao livro. Assustada. Tensa. Chegou um pouco naquela "falta de inocência" que eu estava esperando. As crianças perdem toda a aura infantil e tornam-se autoritários, caçadores, briguentos, egoístas, egocêntricos e assassinos. Ao mesmo tempo que os mistérios e segredos da ilha também começam a ter mais espaço na narrativa, o que torna tudo mais interessante. 

Gostei muito. Mesmo! Achei o final incrível. Ficava me perguntando se todos morreriam, se seriam resgatados, se virariam selvagens ou cresceriam na ilha e formariam uma nova civilização, ou se seria uma espécie de "A Lagoa Azul" e eles viveriam lá de boas aproveitando o sol da praia, ou se seriam vítimas do monstro da ilha... Mas quando eles são resgatados e caem em prantos, sabendo que apesar de voltarem para casa nada será como antes, me lembrou Primo Levi e a libertação dos campos de concentração. As experiências na ilha não lhes tiraram apenas a inocência infantil, mas também consumiram a "humanidade" de seus corações. Essa desumanização é didaticamente apresentada na cenal final: um ato de caça animalizado entre presa e predadores, o mais fraco e o grupo mais forte, a disputa pelo espaço e dominância pelo macho alpha, o líder do bando. 

Finalmente, ano passado eu maratonei Lost, que se tornou uma das minhas séries favoritas de todos os tempos. Até então, eu não sabia de Senhor das Moscas e é impossível não fazer a relação entre eles. Depois, procurando na internet, vi que - além da referência óbvia - existem em alguns episódios da série menções claras ao livro. Agora, parece que será lançada na Netflix outra série com um enredo inspirado na obra de Golding, mas agora será um grupo de garotas adolescentes. 

Ler um clássico assim, que inspira tantas outras produções contemporâneas e tornou-se referência, é muito bacana.

Expectativa versus realidade: breves comentários sobre O Talentoso Ripley

Novembro foi o mês dos clubes de leitura. Além de "Quinquilharias Nakano", sobre o qual falei no post anterior, li "O Talentoso Ripley" para a leitura coletiva do Querido Clássico. Foi um livro cheio de primeiras vezes. Eu não conhecia a autora, não conhecia o livro, tampouco o filme baseado na obra, muito menos o noir como um gênero literário. 

Gostei muito de tudo: do ritmo, dos personagens, da narrativa, etc. Li em apenas dois dias durante a mini viagens que fizemos para a Serra da Mantiqueira. Há um tempo não lia um thriller psicológico, um suspense ou uma investigação criminal. Tudo isso, ao lado do ritmo insano com a qual as coisas vão acontecendo, me lembrou um pouco de Sidney Sheldon. Eu tinha vergonha de dizer que adorava Sidney Sheldon, mas por muitos anos eu adorava e li vários. 

Enfim, o que mais gostei de O Talentoso Ripley, de Patricia Highsmith e publicado em 1955, é tudo o que é dito-não-dito. Ficam várias especulações no ar, mas todas podem ser óbvias - ou não. Li o livro no escuro, sem ler resenhas nem nada e a sugestão do homossexualismo já tinha me ocorrido, mas para mim foi um - ok, tranquilo, aham. Foi só ouvindo o podcast e aí sim me lembrando de situar o livro na data de sua publicação que percebi melhor a sutileza de como a questão é colocada e qual o seu papel na narrativa. 

Gostei tanto que depois assisti o filme de 1999 com o Allan e achei que foi uma boa adaptação. No livro, no entanto, a sutileza do dito-não-dito é melhor. Normal. 

Dois pequenos comentários que dialogam com o que foi dito no podcast e o que eu li na internet sobre a obra:

1. O deslocamento de Ripley, o incômodo, o não-lugar que ele ocupa socialmente, a marginalização, transparece de maneira muito interessante nos ambientes onde se passa a história. Eu que sou uma apaixonada por Nova York e Roma - já tive a oportunidade de visitar estes lugares - percebi como as cidades são pouquíssimo importantes e quase dispensáveis. Definitivamente, não são outros personagens no livro - como acontece com outras obras, onde o espaço é tão importante quanto todo o resto. Em Nova York, Ripley está a margem, sobrevivendo através de negócios ilegais. Ele não pensa duas vezes quando surge a oportunidade de sair de lá. Sua tentativa frustrada de se tornar ator na cidade da Broadway é como se a cidade, cheia de oportunidades, não cumprisse com suas promessas. 

Depois, na Itália. Primeiro em Mongibello, depois em Roma. Ele não se integra ao lugar, como Marge e Dickie. Ele apenas vive lá. Ele está lá como estava em Nova York. Suas interações com os habitantes são muito pontuais e suas relações com os outros americanos são, minimamente, problemáticas. 

Quando li a resenha e vi que o protagonista saia de Nova York e ia para Roma, achei incrível. Várias memórias sobre os dois lugares me vieram a mente. Mas a verdade é que O Talentoso Ripley poderia se passar em qualquer lugar do mundo. Desde São Paulo até Cochinchina, porque o protagonista não encontra seu lugar - ou, ao menos, não o deixam encontrar o seu lugar por conta de sua homessexualidade. Apesar de ele tentar - e bastante. 

2. Eu só fui situar a orientação sexual de Ripley na década de 50 quando ouvi o podcast. Até então, como uma péssima historiadora, li a obra sempre pensando no tempo e vida presentes. A grande sacada do livro é Ripley se passar por outra pessoa. É viver todo o privilégio e coisas boas que só é acessível ao outro, não a ele. Não lembro direito da história d'A Usurpadora, mas acho que a ideia era esta. Ou então O Príncipe e o Mendigo. Simplesmente a sugestão de trocar de papel e deixar sua vida e agouros para trás, para aproveitar a grama mais verde do vizinho. 

E Thomas Ripley faz isso com toda a habilidade e manipulação dos recursos que ele tem em mãos, falsificando assinatura, mudando seu comportamento, indo buscar as coisas no nome de Dickie na American Express, etc, mas tudo isso num mundo pré-internet e redes sociais.

As vezes ouvimos críticas e pensamos que as redes sociais são veículos de mentiras, que neles as pessoas mostram o que elas não são. Mas a verdade é que a culpa disso não é do Instagram, Facebook ou Twitter, etc. Na dimensão pública, todos sempre passamos pelo que não somos, sempre desejamos o que não podemos ou o que não nos é acessível. Isso desde que o homem tornou-se um ser sociável. Falei um pouco da dicotomia público e privado e a natureza humana quando escrevi sobre O Médico e o Monstro. Neste, Dr. Jekyll consegue fazer uma fórmula que transforma sua fisionomia, o torna irreconhecível, tranforma-o em Hyde e, por isso, o permite fazer tudo o que o reconhecido médico não poderia. Esta é uma versão fantástica. 

Em O Talentoso Ripley, Thomas Ripley falsifica assinatura, imita os gestos, a voz, aprende os gostos, estilo de escrita e absorve aos poucos vida de Dickie, até assumir seu nome. Uma versão muito mais realista, já que Ripley se transforma em Dickie de forma burocrática - oficial. Protocolar. 

Hoje, uma narrativa desse tipo não poderia ignorar o papel das redes sociais. A todo momento nós estamos divulgando uma vida que desejamos, enquadramos um momento numa única foto ou frase, e ela se torna maior ou mais importante do que é. O real e a ficção estão a todo momento brincando com a gente e acho que Patricia Highsmith faz isso também no livro: quem é Thomas, o que ele faz, o que ele é e o que ele acredita, finge e deseja ser. Um constante meme do embate "expectativa versus realidade". 

 

Leitura de férias. Manhã super fria, vista linda da Serra da Mantiqueira, por volta das 7:30 da manhã.