A leitura de Drácula, Bram Stoker, e meu primeiro Halloween em Nova York

Havia um tempo que não lia nenhuma obra do século XIX. Por mais que meu preferido seja o século XX, eu gosto muito de me voltar aos clássicos mais antigos vez ou outra. Drácula foi a oportunidade de corrigir esse erro, ler algo temático com o Halloween e voltar a ler com os grupos de leitura. Por causa do ano cheio de mudanças, não consegui acompanhar as leituras coletivas do Querido Clássico em 2021. Mas agora que estou já bem instalada e minha vida voltou ao normal, pude corrigir também este outro erro. 

Drácula não foi o primeiro livro que peguei na New York Public Library, mas foi o primeiro livro que terminei e será devolvido. Isso traz um carinho especial para a leitura, porque tirar a carteirinha da biblioteca teve um significado especial para mim: o sentimento de pertencimento, de casa. Depois de tanto tempo "em transição", vivendo no Brasil, Chile, Brasil de novo e esperando as fronteiras abrirem, tirar a carteirinha da NYPL significou "agora aqui é meu endereço por um bom tempo e essa é a prova!". É também mais um jeito legal de interagir com a cidade. Afinal, a NYPL é muito "Os caçadores de fantasmas". 



Apesar da referência do filme, eu não preciso ir até o prédio com a fachada e a sala de leitura famosas. Existem várias unidades menores pela cidade e uma muito perto da minha casa. É lá onde tenho indo retirar os livros que peço para reservar pelo site. É menos glamuroso, mas facilita muito a vida! 

Agora voltando ao Drácula

É uma ótima experiência ler do começo ao fim uma obra onde estão todas as referências que vemos em tantos outros lugares. O "arsenal vampiresco" que eu tinha era picotado: pedacinhos que a gente vê lá ou aqui. Então quando eu li a origem de tudo isso, junto e de uma vez só, algumas coisas se iluminaram e também tive surpresas. 

Por exemplo, o fato de que o Drácula não tem voz no livro. Em nenhum momento. Tudo o que sabemos dele é pelo relato de outras pessoas. Poderíamos dizer, talvez, que o Drácula nem existiu e tudo foi um delírio coletivo daquelas pessoas ali envolvidas. 

Outra surpresa foi a estrutura narrativa. Eu não esperava que ela fosse formada por cartas, trechos de diários e notícias recortadas de jornal. A primeira vez que li algo assim foi "O médico e o monstro" e eu adorei. É preciso ter paciência com esse tipo de leitura, mas é legal porque vamos montando o quebra-cabeça da história. Especialmente em Drácula, a gente vai se deixando seduzir pelos múltiplos narradores. Ainda mais por se tratar de cartas e diários, nós, leitores ingênuos, gostamos de acreditar no que dizem sem desconfiança. 

E assim Bram Stoker nos guia pela leitura de uma história na qual um grupo de quatro homens vão tentar salvar duas moças e a própria Inglaterra das garras do Conde Drácula. Este grupo de cinco homens  é formado por um médico inglês John Seward, o Lord Arthur Holmwood, o procurador inglês John Harker, o americano rico do Texas Quincey Morris e o médico holandês Abraham Van Helsing. As "donzelas" são Lucy Westenra e Mina Murray, que depois se casa com Jonathan Harker e vira Mina Harker. São alguns destes personagens que registram seus dias em diários e trocam cartas que nos contam quem é Conde Drácula e sua história. Sob uma perspectiva do final do século XIX, é praticamente uma história de cavaleiros lutando contra o mal e salvando donzelas inocentes. 

Ano passado eu li "Imunidade", de Eula Biss, publicado pela Editora Todavia, e a autora fala sobre Drácula como uma metáfora para o surgimento de doenças infecciosas, principalmente a sífilis, que é transmitda por sexo/sangue e cuja principal porta de entrada é pelos portos e navios. Exatamente como o Conde Drácula chega na Inglaterra, "contamina" Lucy que, depois, contamina crianças. É a metáfora do Outro, nesse caso o estrangeiro, trazendo doenças e contaminando "a pureza" daqueles que são donos do lugar. Afinal, Lucy, a "luz", é uma moça sensível, jovem e angelical. Uma vez "contaminada" e transformada, ela ataca outros seres mais inocentes: as crianças. 

A narrativa de Bran Stoker é cheia de tensão. Principalmente os diários de Jonathan no Castelo do Conde e, depois, a chegada do Drácula na Inglaterra. Estas foram minhas partes favoritas. Confesso que, do meio para o final, fiquei um pouco cansada. Achei a leitura um pouquinha arrastada, mas minha edição tinha mais de 600 páginas e, realmente, não dá para ter o mesmo ritmo 100% do tempo. 

Outra leitura possível é a da sexualidade (que também é um meio de "contaminação" de doenças e se liga com o que a Eula Biss diz no seu livro, Imunidade). Apesar de "monstruoso" os momentos nos quais o Conde ataca Lucy e Mina e as noivas do Drácula se aproximam de Jonathan, existe sim uma tensão sexual nas entrelinhas. Este ponto, sutil no livro, é exacerbado no filme Dracula de Bram Stoker, de 1992 e dirigido por Francis Ford Coppola. Esta adaptação também conta com algo que não existe no livro: a voz do próprio Drácula. É como se o filme desse a chance para o Conde contar sua versão da história. 

Eu acabei a leitura ontem, dia 30 de outubro, pela tarde. Assisti o filme que mencionei acima a noite e hoje, dia 31, dia de Halloween, foi a videochamada do clube de leitura do Querido Clássico. Foi muito bom! Eu estava com saudades de ouvir as impressões e pontos de vistas de outras pessoas que leram a mesma coisa, mas que tem opiniões diferentes. E isso é muito enriquecedor. A noite, eu e o Allan fomos até a rua 69th, aqui em Manhattan, para ver as decorações de Halloween e as crianças fantasiadas. 

Em geral, foi uma experiência ótima. Muitas coisas se somaram nessa leitura: o primeiro livro que acabei de ler da NYPL, a temática do Halloween e a volta ao Clube de Leitura Querido Clássicos. 







Sobre o médico e o monstro, escrevi sobre ele aqui: Dr. Jekyll e Mr. Hyde - a ambiguidade do público e do privado no homem moderno
O Clube de Leitura do Querido Clássico: Clube do Livro Querido Clássico

Mês 3 (três, ainda) em Nova York – Vivendo a temporada assustadora

Nos EUA, o mês de outubro é spooky season, a temporada assustadora. Passei 31 anos da minha vida menosprezando o Halloween. Achando bobo. Cheguei aqui, comecei a ver a decoração, os doces, as fantasias, as abóboras, a programação de filmes na TV... E, pronto! Me animei. O problema é que esse clima assustador chegou longe de mais e mesmo sem fantasmas, monstros e bruxas, meu mês está sendo horripilante. 

Descobri que meu computador é um conservador. Há 15 dias, programei a atualização do sistema e ele se revoltou. Até então eu não sabia das suas preferências antiquadas. Confesso que, de todos meus eletrodomésticos e eletrônicos, não esperava que o notebook fosse o mais reacionário. Infelizmente, por ter se rebelado, não ligou mais e já está há alguns dias na assistência técnica. 

Como consequencia, tenho vivido na pele o próprio horror do Halloween. Sou um Frankenstein com uma parte faltando. Sem meu computador, meu funcionamento mecânico e intelectual está debilitado. Como escrever, estudar, trabalhar, pesquisar? O celular ajuda, mas é limitado. Não é nada prático deixar dezenas de abas abertas na micro tela ou escrever longos e-mails e textos no teclado touch.   

Nessa história de terror, o marido tornou-se o herói que empunha a espada e desafia as trevas. Me ofereceu seu computador, criou um login para mim e, na medida do possível, ajeitou algumas configurações ao meu gosto. (Quase) tudo perfeito. 

- Amor, posso usar o computador?

- Desculpa, estou trabalhando. 

- E hoje?

- Preciso levá-lo comigo ao trabalho. 

- Talvez agora?

- É horário do almoço. Vamos comer juntos!

- Acho que agora dá. 

- Querida, são 2 da manhã. Vem dormir. 

- Hoje vou ter ele todinho pra mim!

- Mas é fim de semana, vamos passear! Estamos em Nova York!

Apesar das boas intenções tudo piorou, pois um casal viver com horários incompatíveis é tão sombrio quanto mansões mal-assombradas, seres sobrenaturais e cemitérios iluminados pela lua cheia.  O tempo de escrita é egoísta. Demanda exclusividade. O pensamento fica lá matutando, pensando mil formas e pontos de vistas, fazendo listas de assuntos e vocabulários. E aí, quando as palavras querem se materializar, não há o que fazer. É preciso sentar e escrever, porque se perder o momento, já era. Não dá para dividir computador.

Têm sido dias horripilantes estes que estou vivendo. Seria melhor lidar com poltergeists e bruxas do que a ausência de um eletrônico que já virou parte de mim. Há quem fale que isso é dependência, mas não é não. Isto é evolução: antes formado por partes humanas, hoje os Frankensteins são formados por partes biônicas. Deixamos de ser monstros para sermos ciborgues. 

A verdade é que meu cérebro só funciona bem com seus gadgets (mouse, teclado e tela), apps avaliados com 5 estrelas e configuração personalizada. O histórico do google, as senhas salvas automaticamente e a barra de favoritos são tão individualizados que já são partes orgânicas de mim tanto quanto a fome, a sede e o sono.  

Daqui a pouco é noite do dia 31, a mais assustadora do ano. Sob a luz da lua cheia e o som dos lobos uivando, temo o pior: a transição completa do eletrônico para o analógico. E aí, socorro!, voltarei para as canetas e caderninhos de anotação! 



- Sim, amor, já estou deslogando. Pode vir.  



                                                Photo by Beth Teutschmann on Unsplash

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Hoje uma crônica temática! E assim concluí as quatro crônicas do curso. Quem quiser ver as outras, segue os links: 

Mês 2 (dois) em Nova York

Mês 2,5 (dois e meio) em Nova York: brazilian com b minúsculo

Mês 3 (três) em Nova York – a vitória dos ratos


Mês 3 (três) em Nova York – a vitória dos ratos

Desta vez, não vou esperar a aula do curso para postar a crônica da semana. Então aí vai. Só preciso fazer uma ERRATA antes. Na crônica Mês 2 (dois) em Nova York onde eu escrevi "dióxido de carbono", leia-se "monóxido de carbono". O importante é que a ideia ficou clara! rs Perdoem esta historiadora que viu pela última vez um pouco de química anos atrás no vestibular. 

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Esses dias, num sopro de inspiração, peguei um livro e fui ao Central Park. Banco na sombra, outono, raios de sol, brisa agradável. Me senti numa cena de filme ou num desses seriados de comédia romântica com risadas gravadas ao fundo. O momento parecia tão mágico que ouvi um barulhinho de folhas secas se movimentando e logo pensei ser um esquilo. Estava com o celular na mão para tirar foto e  mandar para o grupo da família quando vi que era um rato. 

Além de falar inglês, o rato nova-iorquino é bem nutrido. Não se compara aos ratos que eventualmente vi em São Paulo. Na Big Apple, o rato está mais para uma capivara bebê do que para um roedor. Me pergunto como uma das maiores e mais cobiçadas cidades do mundo não conseguiu controlar ainda sua população de roedores. Cheguei na teoria de que, na verdade, já viraram moradores permanentes e são eles que permitem nós vivermos aqui. É só prestar atenção nas sutilezas. Por exemplo, todo mundo já viu, ou pelo menos já ouviu falar no filme Stuart Little, cujo roteiro é de um ratinho órfão adotado, amado e cuidado por uma família de humanos.  

No contexto mundial, a relevância do rato nova-iorquino só é meaçada pelos ratos parisienses que, tão famosos quanto, também têm um filme só para eles. Mas na versão francesa, o protagonista-roedor quer ser um chef. Numa inversão de valores, não só o rato passa a alimentar o humano, como também faz de tudo para agradar seu paladar. É o ápice da domesticação. Reflito qual dos filmes é pior: aquele no qual o rato é amado e cuidado como se fosse uma criança ou aquele no qual o rato, escondido sob o chapéu de cozinheiro, manipula seu amigo humano desprovido de habilidades motoras e dom culinário. 

Os egípcios cultuavam os gatos e os hindus vêem sacralidade na vaca. Com certeza, em Nova York, o animal sagrado é o rato. Sua onipresença foi normalizada e o nova-iorquino, submisso, docilmente vai cedendo mais e mais espaço. Eu mesma, no dia do parque, logo me levantei e o deixei sozinho contemplando o dia de outono. Não quis incomodá-lo e saí pedindo desculpas. Outro dia, na corrida matinal, um rato repousava sem vida na pista de exercício. Presenciei um quase acidente entre um ciclista e um corredor que, ao desviarem do corpinho sagrado, quase se chocaram. Antes um acidente entre dois esportistas do que alguém encostar e ferir a integridade do pobre animal sem vida.

Em toda sua existência, o homem procurou entender e controlar a natureza para sua própria sobrevivência e desenvolvimento social. Somente com o avanço da ciência pudemos compreender fenômenos naturais que antes eram explicados pela imaginação humana. Leviatãs, monstros e seres mitológicos eram representados como inimigos que deveriam ser combatidos e enfrentados. Século XXI e, apesar de tanto progresso, os homens continuam sem entender a natureza. Destróem florestas, poluem mares e ecossistemas inteiros enquanto na cidade-capital do mundo quem reina são os ratos. Animais estes que, longe de inimigos, são representados como inocentes roedores órfãos e aspirantes a chef de cozinha. 

Com tanta personalização, temo pelo dia que verei ratos sobre as duas patas traseiras, tal como os porcos de George Orwell, pedindo para verificar a validade do meu visto. 

A obsessão do nova-iorquino com ratos é tamanha que no último domingo fomos de bicicleta até uma feira de antiguidades e artesanato e encontramos estes aventais a venda. 20 dólares cada. 

Mês 2,5 (dois e meio) em Nova York: brazilian com b minúsculo

Segue minha segunda tentativa de escrever crônica. Espero que vocês gostem. Para me dar uma moral, se vocês gostarem, me dêem um joinha nos comentários. 

Meu marido uma vez me disse uma coisa muito verdadeira: Bolsonaro consegue fazer as pessoas ficarem vidradas por ele. Seja amando-o ou odiando-o. As pessoas conseguem só pensar, falar, seguir cegamente ou vociferar contra o Bolsonaro. O tempo todo, em toda mídia, plataforma ou conversa de bar. Aconteceu isso com meu texto durante a aula. Apesar da ironia de tratar Bolsonaro com a descrição de "ilustríssimo", a crítica que recebi é que passei pano para o nosso agradável presidente. O resto da crônica estava até ficando esquecido, quando foi salvo de afogamento no último segundo e, brevemente, elogiado pelo jogo de palavras.

Bom... Nesses momentos de radicalização que estamos vivendo, a ironia está em perigo. Então, afins de esclarecimento: não, não sou bolsonarista. Não estou passando pano para ele. 


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Nada para afirmar nossa identidade nacional do que estar fora do país. É só colocar o pezinho na gringa que toda a brasilidade floresce nas veias. Já começa no aeroporto enquanto esperamos o embarque. Aquele pãozinho de queijo superfaturado de qualidade duvidosa, que é maravilhoso porque “lá não vai ter pão de queijo”.  Esses dias o presidente do Brasil pisou em terras nova-iorquinas e foi noticiado que, por não ter se vacinado, teve que almoçar do lado de fora de um famoso restaurante de rodízio de carne. Vi gente incrédula nas redes sociais: além de não estar vacinado, mal tinha chegado nos EUA e o ilustríssimo foi comer em um restaurante brasileiro.

Mas só quem está longe sabe a carência que as referências de casa dão na gente. Há uns 15 dias, fui com meu marido numa exposição da grife Christian Dior. Lindo, maravilhoso, mas tudo o que procurávamos nas capas de revistas penduradas e nos vídeos de desfiles passados era a nossa querida Gisele.

Em São Paulo, por motivos de dieta, a farofa era alimento proibido em casa. Preferia seguir o cardápio da nutricionista e comer avocado toast e overnight oats com whey. Agora, estou até sonhando com uma farinha de mandioca torradinha com bastante manteiga de garrafa e um cuscuz de tapioca molhadinho no leite de coco.

Quando me mudei, bastava ouvir uma pessoa falando português na rua, ver uma bandeirinha verde e amarela em qualquer lugar, ou até um Brasil escrito com Z, que já vinha o  sentimento de “estou em casa” no coração. Até notar na frente de todo salão de beleza, a palavra brazilian. Nada me incomoda mais nessa terra e idioma do que brazilian com letra minúscula significar depilação íntima completa.

No português brasileiro somos muito mais amigáveis. Americano pode ser tanto o jogo de mesa que substitui a toalha, quanto o copo, no qual tomamos café na bancada da padaria. Outras nacionalidades também gozam de prestígio. Na culinária temos a torta holandesa, pão australiano, pão francês, palha italiana, iogurte e salada grega. Na academia, os puxadores de pesos classificam o agachamento búlgaro e a puxada romana exercícios importantíssimos. Nos salões de beleza, depilação egípcia é aquela feita com linha e francesinha é a delicada pintura de base com um detalhe branco na ponta da unha. Canivete suiço, corredor polonês e soco inglês impõem medo e respeito. Talvez só espanhola tenha um significado tire-as-crianças-da-sala.

No inglês, sortudo mesmo é o francês, que na culinária podem ser as amadas french fries ou o reconfortante french toast e, na sedução, french kiss é aquele beijo dado com língua. Ou seja, o beijo que importa. Em polissemia bilíngue, talvez o ganhador seja o Peru, tanto o animal quanto o país, cuja tradução é Turkey, o mesmo animal, mas outro país.

Mesmo diante de um universo de possibilidades de letras e palavras, brazilian é a extração com cera quente de pêlos pubianos na frente, lados, atrás e no ânus. Na descrição oferecida pelo profissional é “toda a linha do biquíni, mais interior das coxas e a faixa do bumbum. Obs: não inclui as nádegas”.

Queria que brazilian fosse qualquer coisa que trouxesse uma alegria inocente, um sabor doce, uma técnica ou objeto de respeito. Mas, infelizmente, é o púbis depilado do carnaval e o presidente que não toma vacina. O jeito é continuar fazendo brigadeiro e pão de queijo para os gringos experimentarem na esperança, de que um dia, a gente possa revolucionar essa língua pelo estômago, porque por outros meios já é causa perdida.

A leveza e alegria de "Nu, de Botas", Antonio Prata

Vou fazer apenas um comentário breve sobre esta minha última leitura. Nu, de botas foi um presente. Todos nós devemos nos autopresentear de vez em quando, nos dar aquele mimo. Pode ser um horário no salão de beleza, uma massagem, um sapato novo, uma ida ao cinema... Mas, recomendo fortemente a leitura de Nu, de Botas como um agrado à alma. 

Antonio Prata nos oferece uma leitura leve, engraçadíssima e cheia de afeto. As crônicas são memórias do autor quando criança, narrada com a inocência infantil de quem está descobrindo o mundo e acha algumas coisas do mundo adulto um tanto quanto "bizarras". 

Para quem nasceu nos anos 70 e 80, o livro é um grande álbum de recordação. Eu nasci em 1990 e, por mais que algumas coisas já não eram do meu mundo, como o programa do Bozo, eu pude relembrar minha ânsia e desespero discando o telefone com o discador redondo e pesado para os outros programas de auditório infantis da minha época. 

As últimas gerações da infância sem tablet, computador, videogame, completamente sem internet, recheada apenas de brincadeiras na rua e televisão. As crônicas de Nu, de Botas são uma homenagem a esta infância analógica que chegou ao fim. 

Mas mesmo que isso não seja um assunto de interesse, a leitura vale a pena apenas pela risada. Há um texto em particular, sobre a vez que Antonio e suas irmãs estão na estrada e, de dentro do carro, flagram uma cena de sexo oral em outro carro parado no acostamento. A algazarra é imensa. Como ele aponta, aquilo que viram desafiava toda a ordem conhecida. Era como ver um disco voador, um fantasma ou um leão em plena avenida central. O desenrolar dessa história é uma tragédia cômica até o fim. Eu estava lendo essa crônica de manhã, enquanto o Allan ainda estava dormindo, e o esforço que fiz para não gargalhar alto e acordá-lo foi sobrehumano. 

Enfim... Neste blog são tantos os livros melancólicos. Falar um pouco aqui sobre a leveza e bom humor de Nu, de Botas me fez feliz. Como foi minha experiência de leitura com esta obra: divertida e alegre.


Há uma outra crônica na qual o autor fala das artimanhas para não sair da cama pela manhã e ir para a escola. Aquela cama gostosa, o "casulo de cobertas", a "perfeição quase uterina". Depois de muito calcular, ele diz para a mãe "Ai, to me sentindo mal...". A narraçao de toda essa manha teatral segue um caminho que absolutamente todos nós nos identificamos, mas eu pude ver ali o Allan, meu marido, e lembrei imediatamente desta foto que um dia sua mãe lhe enviou por WhatsApp. Era como se esta fosse a imagem da crônica, como se Antonio Prata estivesse falando exatamente desse dia da infância do Allan.
 

Mês 2 (dois) em Nova York

Neste último ano venho escrevendo sobre meu processo de mudança do Brasil para os Estados Unidos. Diante de tanta coisa nova e desse choque de realidade, pensei em me aventurar um pouco na escrita. Por isso, entrei para um curso de crônicas e a ideia é escrever um pouco - num estilo cômico porque "rir é o melhor remédio", as coisas que tenho observado e vivido na Big Apple. Então vou expandir um pouco, pelo menos por enquanto, o uso deste caderno/ blog e, além de um diário de leitura, vou publicar também essas tentativas de crônicas.

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Desde que me mudei para Nova York, nunca fui tão esperançosa. Tenho vivido no limite o ditado “a esperança é a última que morre”. Só que toda vez, no fim, eu só insisti no erro. Quem nunca? A gente até pode adiantar o problema e aquela desconfiança escondidinha lá no fundo da mente diz que vai dar merda, mas, como a esperança é a última que morre, a gente vai lá e faz.

Primeiro foi a roupa na secadora. Quantas vezes a gente já não viu em filme e seriado norte-americano o coitado que colocou a roupa na secadora e ela saiu encolhida? No Brasil não tinha isso. Secadora, em terras tropicais, é luxo luxuosíssimo. Do varal, a roupa saía sempre perfeita. Às vezes, era o uniforme escolar que passava a noite atrás da geladeira quando fazia muito frio e a gente precisava dele para a manhã a seguinte, mas isso nunca foi problema. Agora aqui em Nova York, eu não tenho varal, tenho secadora. Fiquei mais chique (!), pensei. Lavei, saquei, dobrei elas ainda quentinhas, dei aquela olhada atenta, espremendo os olhos e... Perfeito! Até o marido vestir seu jeans escuro e ver suas canelinhas de fora no espelho.

Depois aconteceu o alarme de monóxido de carbono. Nada mais nobre do que um sensor que dispara para evitar incêndio, mas ainda não sei como conciliar esse recurso que evita tragédias com a minha carninha grelhada. Na primeira vez, junto com o alarme, disparou meu coração. Como eu iria saber? Apartamento antigo, não tem exaustor e a janela aberta não foi suficiente. Na minha cozinha brasileira, também não tinha exaustor. Tinha fumaça? Sim, mas, de novo, isso nunca foi um problema. Na segunda vez, fritei o bife com um ventilador apontando para a panela. Como uma artista de malabares, a mão direita segurava o pegador que virava a carne e a mão esquerda segurava o ventilador. Na terceira vez, bateu uma preguiça e fui confiante. Dispensei o ventilador. Pois é, o alarme disparou. Agora estou considerando entrar para o movimento Segunda Sem Carne antes que os bombeiros batam aqui na minha porta.

Também teve a vez da pia da cozinha. Morei em algumas casas alugadas no Brasil e fosse a pia de inox ou de pedra, elas tinham uma borda que impedia que a água caísse no chão. Mas aqui em Nova York, isso não existe. A pia é reta. Nas primeiras vezes, me convenci que “ia dar nada”, mas lavar a louça se tornou uma inundação constante da cozinha. Descobri nas lojas um paninho de pia profissionalizado: ele tem o formato de um mini tapete e promete absorver toda a água da louça que escorre. Inteligente, se ele aguentasse o tranco e não vazasse depois da terceira panela.

Mas complicado mesmo tem sido o tempo de locomoção. Em São Paulo, eu já dominava as ruas e trajetos melhor que a moça do Waze. Sabia qual seria o melhor caminho – bairro ou avenida?, horário, dia da semana e meio de transporte para chegar a qualquer ponto. Ainda tinha a pachorra de olhar no Google Maps e pensar “ai ai... deixa eu te ensinar aqui que eu sei outro caminho melhor”. Agora aqui nas ruas nova iorquinas, não importa a hora que eu saia ou o quanto eu fique torcendo para que não haja problemas, alguma coisa vai acontecer. O metrô vai demorar, o taxi não vai passar, o prédio do elevador vai estar congestionado, ou simplesmente nada acontece e eu ainda estou atrasada sem entender por quê! É só olhando para o relógio e percebendo que “É. Não vai dar tempo mesmo. Vou chegar atrasada e paciência!” que a esperança, que é a última que morre, morre de vez. E chego lá com cara de paisagem, diva, me fingindo de completa desentendida. 



Dia 1 em Nova York. Times Square. Julho de 2021.