A Lei de Terras e as várias formas de exploração no meio rural

O texto abaixo, salvo algumas consideráveis mudanças para ser um pouco mais compreensível no blog, foi tirado de um trabalho ao qual me dediquei muito semestre passado, em que eu analisei o surgimento do bóia-fria no campo brasileiro. Para entender a gênese desta categoria social comecei estudando, a partir da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, as diversas formas de exploração no meio rural. Segue abaixo esta pequena análise.
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No século XIX, com a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, foi criado em 1850 a Lei de Terras. Até então, a escravidão era predominante e o acesso à terra era restrito aos grandes latifundiários e à elite nacional. Com o fim do trabalho servil, que estava em vias de acontecer, era preciso criar um meio de garantir mão de obra disponível: se a ocupação de terras fosse livre, os ex-escravos e os imigrantes europeus trabalhariam para si próprios e não precisariam vender sua força de trabalho.

A partir de agora, as terras devolutas pertenciam ao Estado e deveriam ser compradas. Tratou-se de um “meio artificial de forçar quem não tem terra a servir quem tem” , se não fosse isso, quem se disponibilizaria a trabalhar nas fazendas de café? O que a Lei de Terras fez foi legitimar a concentração fundiária. Se as terras já eram propriedades de poucos, agora ela era também regularizada. A grilagem também teve seu papel nesse processo: como agora as terras deveriam ser cadastradas, as elites, já donas de terras, falsificavam documentos apropriando para si terras devolutas, aumentando ainda mais – e de graça o que agora tinha que ser comprado! – as suas propriedades.

O colonato foi a relação entre trabalhador e proprietário que surgiu com o fim da escravidão nas fazendas de café, mas como “a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo as relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo” , esse novo regime do trabalho não chegou a ser uma relação de trabalho capitalista, no entanto, se inseria num contexto racional de acumulação de capital. Apesar da “remuneração” no final de todo o serviço, o colono não era propriamente um assalariado.

Nesta primeira forma de exploração no meio rural lhes era cedido espaços na fazenda para a produção de artigos de subsistência. Assim, enquanto o colono pensava trabalhar para ele mesmo num espaço de terra alheio, ele na verdade trabalhava duas vezes para o fazendeiro: primeiro, trabalhando nos cafezais; segundo, garantindo a própria subsistência. Isso causava a redução do custo da cesta básica e, consequentemente, o aumento da mais-valia. Tanto é que na crise de 1929 os mais atingidos foram os fazendeiros e os colonos pouco sentiram, pois não dependiam integralmente do salário por produção para sobreviver.

Para Maria D’Incao e Mello trata-se de um sistema de exploração de regiões onde há escassez de mão de obra. Pagar um salário baixo ao trabalhador e lhe ceder um espaço para a agricultura de subsistência é um meio eficiente e lucrativo ao proprietário de garantir mão de obra não só durante a colheita, mas também todos os anos. Não é a toa que José de Souza Martins nomeia seu livro em que trata sobre o colonato de O Cativeiro da Terra – os colonos se tornam cativos do proprietário e da terra sem ser, propriamente, escravos.

O colonato, no final das contas, foi a fórmula que os fazendeiros encontraram de substituir o trabalho escravo, pois no campo das relações sociais, eram tratados como cativos. No entanto, estavam inseridos num contexto ideológico de que, se trabalhassem em terra alheia e conseguissem economizar, poderiam comprar a própria terra e serem trabalhadores independentes.

A partir de 1930, com a decadência do café e o início das pastagens e da produção do algodão e do amendoim, o colonato se tornou inconveniente, pois não era mais preciso trabalhadores durante o ano todo em serviços mais lentos. A nova modalidade de agricultura dispensava mão de obra o ano todo e quando esta era requisitada, era preciso que o trabalho fosse rápido. Assim, o sistema de colonato foi substituído pelos de parceria e arrendamento.

A parceria refere-se “à concessão, por parte do proprietário, de uma faixa de sua terra para ser explorada por um período de tempo determinado, em troca de uma porcentagem de produção” . Essa porcentagem varia de acordo com os benefícios oferecidos pelo proprietário. Já os arrendatários são “indivíduos que usam temporariamente uma parcela de terra por um preço previamente estabelecido, em dinheiro ou mercadoria”.

Mas existem outros modelos de exploração, como os moradores. Estes são parecidos com os colonos, mas moram nos canaviais; são pagos em dinheiro e também possuem um pedaço de terra para a agricultura de subsistência, mas ao contrário dos colonos que se aglomeram em colônias, este é disperso pela propriedade. Ainda nas lavouras canavieiras encontramos os foreiros, que pagam aluguel (foro) ao proprietário e, na época da safra, ainda são obrigados a prestar serviços gratuitamente. Na lavoura algodoeira é mais comum o meeiro. Aqui os trabalhadores obtêm parte do rendimento – a meação - e, quando cultivam gêneros de subsistência, pagam a meação ao proprietário. Na pecuária, por sua vez, é comum o “vaqueiro”, no qual o indivíduo responsável pelo gado recebe para si um bezerro a cada quatro nascidos. O bóia-fria é só mais uma forma de exploração. Aqui ele é um trabalhador temporário, e sua relação com o proprietário é puramente salarial.

Caio Prado Jr. chama a atenção para o fato de que em qualquer que seja o tipo de relação entre trabalhador e proprietário, em nenhum momento este “transfere ao trabalhador nada que se assemelhe com a posse de terra” . Essa forma híbrida de remuneração, que acontece de acordo com a conveniência do empregador, só é possível graças a enorme disponibilidade de mão de obra, e a principal razão disto é a concentração fundiária.

Essa realidade diversa exige um cuidado maior da parte jurídica quando vai tratar dos direitos dos trabalhadores rurais. Por se tratar de uma realidade instável que varia de região para região e às vezes num mesmo lugar de acordo com o que convém ao proprietário, são muitas as brechas que permitem a descaracterização da lei e o não cumprimento desta.