Jogo, luxo, solidão e casamento em A Casa da Alegria, de Edith Wharton

O coração dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos na casa da alegria.

Eclesiastes 7:4


Quando a gente gosta muito da leitura de um livro, é perigoso emendar outro em seguida do mesmo autor. Pode gerar comparações injustas, ou uma leitura bastante enviesada. Definitivamente, não foi o que aconteceu com a minha segunda experiência literária com Edith Wharton. 


Muito recentemente terminei A Época da Inocência. Um livro para o qual eu me entreguei. Eu li com atenção e até carinho. Tanto que escrevi uma análise bastante cuidadosa para o site Querido Clássico. Quando comecei, portanto, A Casa da Alegria, eu já sabia o ambiente que devia esperar: a cidade de Nova York na virada do século XIX-XX, as carruagens, os casarões da Quinta Avenida, os vestidos, viagem e todo o luxo da sociedade aristocrática desta época e lugar. O que eu não esperava era uma protagonista tão intensa e complexa cujas idas e vindas são tudo, menos fáceis de encarar. Foi como se A Época da Inocência tivesse preparado o terreno para uma leitura que seria ainda mais envolvente e cheia de desolação para mim. 

Em A Casa da Alegria acompanhamos dois anos da jovem nova-iorquina Lily Barth. Aos 29 anos, possuidora de grande beleza, Lily está a procura de um casamento que continue financiando seu gosto pelo luxo, pelo belo, fins de semana e viagens com a aristocracia e suas jogatinas. Lily foi criada em meio ao luxo, mas ficou orfã ainda criança. Depois que perdeu todo o dinheiro, seu pai morreu e, pouco tempo depois, sua mãe. Criada por uma tia, Lily tem uma pensão e seus custos de costureira assumidos pela protetora, mas isso é insuficiente para seu estilo de vida. Depois de perder o pouco que tinha em jogo de cartas, Lily toma decisões desacertadas uma atrás da outra, até que fica sem saída. 

O tema “jogo” permeia toda a narrativa, como se tudo o que Lily tem e deseja estivesse em aposta. As relações sociais é um grande jogo nos quais os personagens estão, a todo momento, querendo “ganhar” e Lily, assim como com as cartas, tenta manter o controle das situações, mas sempre acaba vítima das melhores cartas que estão na manga dos outros. Tudo porque Lily, apesar de seu gosto pelo belo e pelo luxo, ainda sonha com o matrimônio por amor, o que é quase incompatível no meio social que frequenta.

Apesar de gostar de Lawrence Selden e por ele sentir afinidade, Selden é um advogado, não é rico, nem aristocrático. Pior, ele é aquele ombro amigo que diz ajudar, mas quem mais julga o gosto e as amizades aristocráticas de Lily apesar de ele mesmo não escapar deste entorno. 

Gus Trenor, marido de Judy Trenor e amiga de Lily, diz ter especulado com o dinheiro de Lily na Bolsa de Valores e lhe entrega um lucro de 9 mil dólares. Na hora de cobrar sua comissão, descobre-se que ele tirou de seu próprio bolso esse dinheiro e cobra de Lily um pagamento que não é material. Como narrar uma cena de estupro em 1902, ano da publicação do livro? Como colocar tamanha violência em páginas num contexto de tempo e lugar que nunca admitiria uma narrativa assim publicada? Edith Wharton, com toda sua genialidade, consegue essa proeza. Ela coloca toda a dor, o sofrimento, o sentimento de solidão e culpa da vítima e os olhares julgadores da sociedade de modo a não deixar dúvidas que, apesar de não dito, uma violência foi consolidada. 

Ainda temos o judeu Simon Rosedale, um capitalista em ascensão que está enriquecendo e aumentando sua reserva e fluxo de dinheiro. Ele almeja fazer parte destes círculos aristocráticos e, por isso, vê no casamento com Lily uma porta de entrada. Lily o acha desprezível, mas quando percebe que sua vida está em maus lençóis, aceita o pedido de Rosedale, que retira a oferta. Em nenhum outro diálogo literário vi a mulher e o casamento tão bem descritos como uma mercadoria. Uma moeda de troca. Um papel na bolsa de valores que, conforme o contexto, pode ter seu valor em alta ou em queda. 

Finalmente, George Dorset, que propõe um casamento com Lily como forma de vingança contra sua esposa, Bertha Dorset. Ambos foram vítimas de uma situação criada por Bertha que faz todos acreditarem que Lily e George tinham um caso. Um casamento entre eles, nas condições que são colocadas, seria uma volta por cima e um “cala boca” contra Bertha. 

Lily tem ainda um segredo em suas mãos que envolve alguns destes personagens, mas ela decide manter-se firme, justa, não faz uso desta “carta” e decide procurar um emprego. Tenta sobreviver com a ajuda da única amiga que não lhe deu as costas, mas tudo torna-se cada vez mais difícil. Pequenas situações vão sendo criadas e cada vez mais ela vai sendo isolada de sua sociedade. Mas é como se, sem um casamento, ela não conseguisse. Não importa o quanto tentasse e o que fizesse, a impressão é que Lily seria mau vista, manipulada e desamparada enquanto estivesse solteira e só um casamento poderia salvá-la. Além disso, a dívida com Gus Trenor vai consumindo seu coração e suas noites... Até que uma hora ela não consegue mais dormir e não dá mais. 

Neste romance, Edith Wharton constrói personagens dúbios e situações constrangedoras que nos fazem nos sentir desconfortáveis. A autora também consegue nos passar o sentimento crescente de solidão. A cada página, junto com a situação cada vez mais difícil de Lily, a desolação vai crescendo em nós leitores. Um desespero que culmina em tristeza e desamparo. Muito recentemente a José Olympio do Grupo Editoral Record lançou uma nova edição com tradução de Julia Romeu. Recomendo fortemente. 

O título A Casa da Alegria vem do livro de Eclasiastes 7:4. É como se o coração de Lily, enquanto vivia de forma tola e descompromissada em seu círculo rico e aristocrático, fosse feliz – ou pelo menos se sentia feliz. Mas conforme seu mundo vai se tornando nu e cru, o lado mais perverso das pessoas vão sendo escancarados e sua preocupação com dinheiro lhe consome, seu coração cada vez mais caminha em direção à casa do luto e lamento. 

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