O papel da arqueologia nos debates sobre a etnogênese

Hoje eu tive prova de História Medieval. Tudo bem se não fosse pelo fato da pergunta ter sido cretina. Para respondê-la não foi preciso nenhuma bibliografia do curso inteiro, nem ter presenciado todas as aulas, ou ao menos ter estudado as provas do ano passado ou a que a turma da noite fez ontem. A pergunta foi baseada numa única aula e não era possível mobilizar nenhum texto do curso inteiro. Eu me decepcionei. Estudei para uma prova milhares de vezes mais difícil. Consultei e fichei umas 500 páginas ao longo do semestre. Saberia dominar qualquer pergunta sobre o papel da arqueologia nos estudos acerca da Idade Média, no caráter identitário e os problema causados por isso acerca da Alta Idade Média, na história econômica sobre o Grande Domínio, sobre a mutação feudal... Enfim, tudo isso. Mas caiu o problema das heresias do ano 1000. Uma questão discutida em apenas uma aula sem ajuda bibliográfica. Tudo bem, valeu meu esforço... Acho que aprendi algumas coisas sobre Alta Idade Média.

Para valer pelo menos alguma coisa todo o trabalho que tive, vou publicar hoje a resposta de uma das perguntas da prova do ano passado que desenvolvi como forma de estudo. A questão pedia para discursar sobre o papel da Arqueologia nos debates acerca da etnogênese. Mais uma vez, como na outra prova sobre a Mesopotâmia que coloquei aqui, o leitor poderá entender muito bem sobre o tema, só ficará um pouco "de fora" quando eu comentar os nomes dos autores da bibliografia utilizada.
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A Alta Idade Média é uma conotação ambígua, ela serve tanto para definir uma marcação cronológica que vai do século V ao século X, quanto uma construção historiográfica usada como base do discurso identitário da Europa. Assim, o estudo acerca da Alta Idade Média se constitui num importante fator para a formação ideológica das origens das nações européias e da constituição cultural e identitária de seus respectivos povos. O fim do Baixo Império Romano, as invasões bárbaras e as transformações políticas, econômicas e culturais oriundas deste processo são vistos, sob perspectivas diversas, como a gênese dos Estados-nações europeus.

Neste contexto, surgiu o problema das identidades. Patrick Geary, em “O mito das Nações”, aponta como o nacionalismo contribuiu para os historiadores enxergarem a diferença entre romanos e bárbaros como uma oposição entre “nós e eles”, entre “civilizados e bárbaros”, contribuindo para que estes últimos fossem vistos como um bloco homogêneo, ignorando toda uma diversidade destes povos. Em “Some remarks on ethinicity in Medieval arqueology”, Florin Curta também denuncia esse caráter simplista de definição quando diz que o antropólogo Barth e seus seguidores tinham uma perspectiva de comportamento social e individual baseado na visão “eu versus eles” e que a historiografia foi marcada pelo anacronismo, pois usavam o termo étnico como uma construção moderna e não como uma categoria medieval.

O trabalho de F. Curta contribui bastante para entender o papel da arqueologia neste debate acerca da etnogênese, pois ele faz um apanhado sobre o que já foi discutido sobre o tema e sobre os problemas metodológicos possíveis sobre isso. Como ele mesmo fala, pelo fato de as fontes arqueológicas serem artefatos, eles não foram feitos para carregarem uma certa representação do passado, mas para responder questões econômicas e sociais. Assim, nós encontramos uma série de problemas que a arqueologia não consegue satisfazer sozinha, sem o complemento historiográfico que faz uso da linguagem e da escrita. Como por exemplo, o caso dos Gépidas e Lombardos, dois grupos que mantinham relações de trocas e não se distinguiam uns dos outros através da cultura material – para eles nenhum objeto possuía valor étnico. As coisas mudaram quando as guerras contribuíram para consolidar estilos específicos de vestimenta entre eles. No entanto, distintivos característicos, como acessórios e vestimentas, não distinguem somente uma etnia da outra, elas podem indicar outras formas de identidade social, como gênero, idade ou classe.

Há outros exemplos na arqueologia funerária. Alguns objetos encontrados com os cadáveres que remetem a determinados grupos étnicos, como os francos ou os romanos, não significam que os indivíduos tenham realmente pertencido essa origem. Pode se tratar de um distintivo, por exemplo, em moda na época. É aquela história de que uma camisa vermelha com o desenho de uma foice e um martelo, não faz do homem que a veste um comunista.

Sob esse contexto, o arqueólogo Brather recomenda que os arqueólogos abandonem qualquer pesquisa sobre a etnogênese, porque não há fontes escritas que decifrem os significados dos símbolos que marcam o limite uma determinada etnia. Além disso, este estudo corre o risco de ser contaminado por preocupações étnicas atuais. O mito de que há congruência entre os povos da Alta Idade Média e os contemporâneos, levaram o estudo da cultura material aos padrões sugeridos pelas línguas, mas isso não deu certo, e agora é P. Geary quem diz que “artefatos não são um parâmetro seguro para a distinção das etnias”. Com ele, também concorda E. Pöhl, que diz que as culturas arqueológicas e os grupos étnicos coincidem muito pouco e que “não se pode confundir fronteiras políticas, territórios étnicos, grupos lingüísticos e áreas de uma certa cultura material, pois não necessariamente teriam a mesma extensão.”

Apesar de todos esses problemas metodológicos, F. Curta ilumina o papel da arqueologia no estudo sobre etnogênese: a cultura material assume um papel similar ao de um “texto que deve ser lido”, pois é necessário analisar e compreender contextos maiores em que é produzida para ser possível entender os significados destes objetos.

O que parece ser ponto comum entre os autores sugeridos pelo curso, é a ineficiência da arqueologia, sozinha, responder as questões sobre a etnogênese, e que este é um assunto bastante “contaminado” pelo nacionalismo contemporâneo. Parece ser possível estudar as etnias entre os séculos V e X, através da interdisciplinaridade entre história e arqueologia, sem cometer erros anacrônicos e sem a confiança de que os limites entre os territórios étnicos, as fronteiras políticas e os grupos lingüísticos coincidem geograficamente, como alerta Pöhl.