Os dois anos de exílio de Primo Levi: entre Auschwitz e o retorno, entre os alemães e o Exército Vermelho

Um autor que estava há um tempo na minha cabeceira era Primo Levi. Como assim leio toda essas coisas sobre Segunda Guerra Mundial, Holocausto, União Soviética, Exército Vermelho, antissemitismo, identidade, diáspora, etc, e nunca tinha lido Primo Levi? Curioso também que o primeiro livro que eu li na vida - aquele que a gente pede "Mãe, eu quero ler um livro, compra para mim?" - foi "O Diário de Anne Frank" na quarta-série, porque tinha uma chamadinha no livro didático. 

O Allan ficou repetindo - "De novo, Gi, nesse assunto? Lê algo diferente... Você está muito presa nesse século XX." Mas como não ler? Como não conhecer/ ouvir/ tentar compreender algo que para nós é tão incompreensível e tão definitivo da nossa realidade atual? Como não escutar Levi cujo maior medo é não ser ouvido? Tanto em "A trégua" quanto em "É isto um homem?", sua maior vontade é contar para o outro e, seu pesadelo é não ser ouvido. Isso é tão significativo. Parece que o mínimo, o mínimo do mínimo que eu posso fazer diante de tanta mostruosidade é apenas ouvir - ficar sabendo.

Eu comecei do fim para o começo. Primeiro li "A Trégua" pelo simples motivo besta de estar disponível em e-book no kindle e, como me sensibilizou demais, comprei depois "É isto um homem?", da Rocco. No meio termo, li Philip Roth, "O Complexo de Portnoy". Autores judeus, personagens judeus contemporâneos, mas separados por um oceano: os paralelos e as divergências são gritantes e incomodam bastante.

É isto um homem?

O cotidiano, a economia, o trabalho, a sociabilidade e o que "resta" de humanidade no campo de concentração. A des-personalização, des-caracterização do indivíduo. Tira-o de sua casa, sua geografia, lhes usurpam seus bens materiais, nome, dignidade, esperança e lhes privam de alimento e abrigo. A questão é sobreviver. 

O que mais me tocou, porém, é algo que talvez não se fala muito, ou que me passou despercebido até então: a comunicação. Tantas pessoas de origens diferentes, da Europa inteira- como se comunicar? Como se entender? Está aí a questão: a máquina nazista, do holocausto, do extermínio, é feita para a incompreensão. A comunicação é perdida.

"Aqui a confusão das línguas é um elemento constante da nossa maneira de viver; a gente fica no meio de uma perpétua Babel, na qual todos berram ordens e ameaças em línguas nunca antes ouvidas, e ai de quem não entende logo o sentido. Aqui ninguém tem tempo, ninguém tem paciênca, ninguém te dá ouvidos; nós, os recém-chegados, instintivamente nos juntamos nos cantos contra as paredes, como um rebanho de ovelhas, para sentirmos as costas materialmente protegidas."

Os mecanismos de funcionamento dos campos de extermínio tem sido bastante denunciados ao longo do século XX e, por mais que talvez nunca conseguiremos compreender a totalidade do que foi a realidade para os que viveram a estas condições tão extremas e desumanas, a gente tem uma vaga ideia do terror. Há, porém, dois pontos importantíssimos que Levi traz que, até então, refleti muito pouco: o fim e o depois. 

Como se dá o fim? O fim é um processo, não é de um dia para o outro. Não se dorme prisioneiro e acorda homem livre. Não nas condições que estão Primo Levi e os outros. Existe uma super exposição, especialmente hollywoodiana, da participação dos EUA, da invasão da Normandia e até da Bomba Atômica para o fim da guerra, mas para a percepção daqueles presos sob o regime nazista, o fim veio aos poucos, sob a forma de rumores, quebra das miudezas da rotina super-sistematizada alemã... Veio com o barulho, ao fundo, do Exército Vermelho se aproximando, cujos sons da marcha eram, a cada dia um pouquinho mais, sentidos e ouvidos. 

E, mesmo assim, não foi num exato dia que se deu a chegada do soldado soviético e a dabandada dos alemães. Não. Levi faz um recorte perspicaz no capítulo "História de dez dias": como se deu essa "transição" entre o antes e o depois - entre o domínio alemão e a conquista soviética. Diante da notícia de que os russos chegariam no dia seguinte e a sensação de que os alemães estavam saindo, ficava a dúvida do que viria a seguir. Muitos, sem saber, saíram dos campos para a Marcha da Morte. Levi, como estava doente, ficou e isso o salvou. 

"Todos os sãos (a não ser os poucos que, atendendo a sábios conselhos, no último instante tiraram a roupa e sumiram em algum beliche da enfermaria) partiram na noite do dia 18 de janeiro de 1945. Eram uns 20 mil, procedentes de vários campos. Quase todos desapareceram durante a marcha de evacuação, Alberto entre eles. Talvez um dia alguém escreva a sua história."

O início da marcha significou, para aqueles que ficaram, os "10 dias fora do mundo e do tempo". De 18 a 27 de janeiro (dia da chegada enfim dos russos), Levi escreve dia a dia os limites físicos e psicológicos nos quais viveram aqueles que ficaram a própria sorte, sem alimento, aquecimento, água e doentes. Abandonados.  

A trégua

Quando chegam os russos, uma nova fase, um novo e aparentemente-sem-fim-processo até voltar para casa. Uma nova Odisséia... A do século XX. Marcada pela paisagem da destruição da guerra, da fome, dos isolamentos e do trem. Um artigo muito interessante, chamado Trajetórias e paisagens de exílio na narrativa de Primo Levi, de Anna Basevi, aponta para esta questão. O exílio que marca o povo judeu, o deserto de Moisés e as planícies da Europa Central... O exílio, aponta a autora, não é só geográfico, é também linguístico. A Babel do primeiro livro citado, continua agora nos campos de refugiados, sob os cuidados do Exército Vermelho. 

Os alemães tornam-se raros no relato e aparecem agora os russos soviéticos, de cultura e educação tão diferentes, e que muito me lembram os testemunhos coletados pela Svetlana Aleksiévitch, em "O fim do homem soviético".

"Mas os russos, diferentemente dos alemães, possuem apenas em pequena medida o talento para as distinções e as classificações. Poucos dias depois, estávamos todos de viagem para o Norte, para um destino impreciso, de todas as maneiras, para um novo exílio. Italianos-romenos e italianos-italianos, todos, nos mesmos vagões de carga, todos com o coração apertado, todos em poder da indecifrável burocracia soviética, obscura e gigantesca potência, que não era malévola contra nós, mas desconfiada, insipiante, contraditória, e cega nos efeitos tal uma força da natureza." (grifo meu)

Antes de terminar, eu queria registrar aqui um dos pequenos relatos contados por Levi que me marcou muito. Parados em uma estação em Proskurov, Ucrânia, Levi e seus companheiros ouviam duas moças de Minsk conversando em ídiche, língua que não compreendiam. Não obstante, estimulado pelo forte chá açucarado que havia tomado mais cedo, Levi ensaia uma conversa com elas. Em alemão, ele apresenta a si e seus amigos como judeus e perguntam se elas também são judias. Em seguida elas riem e dizem que se eles não falam ídiche, portanto, não são judeus. Ele tenta explicar que ele é um judeu italiano e que na Itália e em toda a Europa Ocidental os judeus não falam ídiche. 

"Mas então, se éramos judeus, todos os outros também o eram, disse-me, acenando com gesto circular para os oitocentos italianos que abarrotavam a sala. Que diferença havia entre nós e eles? A mesma língua, os mesmos rostos, as mesmas roupas. Não, expliquei-lhes: aqueles eram cristãos, vinham de Gênova, de Nápoles, da Sicília: talvez alguns daqueles tivessem sangue árabe nas veias. Sore [uma das meninas] olhava, perplexa: era uma grande confusão. Em seu país as coisas eram muito mais claras: um judeu é um judeu, e um russo um russo, não havia ambiguidades." (grifo meu)

Se as fronteiras políticas são tênues, também são as fronteiras identitárias. Levi e Sore nos jogam na cara como os critérios identitários são problemáticos, delicados, móveis... São imprecisos. Como é impreciso definir quem é quem, o que e porque é quem, com bases em critérios tão frágeis! Isso me lembra muito Alexander Portnoy, de Philip Roth, suplicando para que o vejam como humano, de forma pura e simplesmente humana - e não como judeu.

Os livros são a narração de seu exílio - começa quando é levado da Itália e acaba no seu retorno. Em "É isto um homem?", Levi é feito prisioneiro em dezembro de 1943 e em 1944 é deportado para Auschwitz. Em Janeiro de 1945 é libertado pelo Exército Vermelho, e aí começa "A Trégua", com toda a trajetória até outubro, quando chega, finalmente, em Turim. São livros doídos de ler. Tristes. Por tantas e tantas vezes, Levi mostra como foi agraciado com momentos de sorte, que possibilitou sua sobrevivência e retorno. 

Eu demorei muito para ler Primo Levi. Todos precisamos ouvi-lo. Todos precisamos saber, não podemos esquecer, nunca. O tempo passa, outras guerras acontecem, outros problemas surgem, mas não pode ser colocado de lado, ou no esquecimento, ou ainda na categoria já-faz-muito-tempo-não-é-mais-tão-importante o genocídio, a violência, a perseguição e esse momento da história que moldou o mundo de hoje, tanto geopoliticamente quanto nas identidades do homem contemporâneo.

Estou presa na década de 60? Partindo de Mad Men, visitamos Alex Portnoy e, por último, um pulinho em Mrs Maisel

Continuando na linha de Mad Med do post anterior, eu queria registrar um pouquinho as minhas impressões de "O Complexo de Portnoy". Eu já tinha lido ano passado "A marca humana" e "Pastoral Americana", livros que eu gostei demais. Deixei Philip Roth um pouco de lado até ver Don Draper lendo "Portnoy's Complaint" durante seu próprio exílio dentro da Roger, Sterling and Associates. 

As questões de identidade, de deslocamento do protagonista frente aos grupos que ele (não)pertence, o que é esperado dele VERSUS o que ele é ou quer ser, são grandes temas já de "A marca humana", publicado em 2000. O fenótipo e o genótipo sob os choques dos costumes, da história e da cultura já haviam aparecido em 1969, data de publicação de "O Complexo de Portnoy". Uma leitura muito difícil porque, como o próprio título original sugere, trata-se de uma gigante reclamação - Portnoy's Complaint. Uma hora eu precisei dar um tempo porque, afinal, ouvir/ler tanta reclamação é um pouco complicado. 

(Aliás, genial esse jogo de palavras do título. Uma pena que se perde um pouco disso na tradução.)

Se tem uma coisa que aproxima talvez os judeus e os brasileiros é a tal autodepreciação. Eu não sabia, mas "se zoar" é um fenômeno comum entre a comunidade judaica. O desabafo de Alex está entre o desespero e a risada. Por exemplo, o pânico que ele sente de ter que contar aos seus pais que estava numa tentativa frustrada de perder a virgindade com uma menina não-judia e, sem querer, espirrou esperma no seu olho: desespero imenso de ficar cego e tornar-se uma decepção para seus pais, tudo porque quis ser chupado por uma shikse.

O sentimento de culpa que persegue Alex é o que torna as situações tragicômicas. Quem mandou ficar patinando no gelo atrás das shikses? Por isso caiu e quebrou a perna, ficará para o resto da vida deficiente e ouvirá para sempre seu pai reclamar e jogar na sua cara seu interesse pelas moças não judias. (Nós brasileiros também somos experts em rir da nossa própria desgraça, só não temos o sentimento de culpa nos intimidando. Pelo contrário, somos bons em culpar sempre os outros pelas nossas próprias mazelas.)

"Dr. Spielvogel, esta é a minha vida, minha única vida, e estou vivendo minha vida no meio de uma piada de judeu! Eu sou o filho de uma piada de judeu - só que não é piada não!" 

Apesar de Alex não conseguir controlar seus impulsos sexuais na intimidade, aos olhos de sua família e comunidade ele é o menino perfeito, o filhinho da mamãe, o melhor aluno da classe. e por isso se formou advogado e assumiu uma importantíssima posição na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York. E seu esforço em tornar-se esse "menino exemplo", tanto pelo sentimento de superioridade moral quanto pelo medo que sua família impunha a ele quando criança, deixa-o inconformado quando descobre, já adulto, que seus colegas de infância também se tornaram homens normais e bem sucedidos, apesar de seus comportamentos nada exemplar.

"Mas não pode ser! Sem sopa de tomate quente no almoço de dias frios? Com aqueles pijamas imundos? Com todos queles preservativos de borracha vermelha cheios de pontas espetadas, que segundo ele enlouqueciam o mulherio lá em Paris? Smolka, que nadava da piscina do Olympic Park, também está vivo? E é professor de Princeton ainda por cima? Em que departamento, letras clássicas ou astrofísica? Ba-ba-lu, você está falando que nem minha mãe. Você certamente quer dizer encanador, ou eletricista. Porque eu me recuso a acreditar! Quer dizer, no fundo do meu kishka, das minhas emoções mais profundas, minhas crenças mais antigas, por trás do eu que compreende perfeitamente que Smolka e Mandel continuam vivos, morando em boas casas e desfrutando das oportunidades profissionais abertas aos homens deste planela, não consigo acreditar que esses dois meninos maus sobreviveram, muito menos que se tornaram homens de classe média bem-sucedido. Ora, eles deviam estar na cadeia - ou na sarjeta. Eles nem faziam o dever de casa, porra!"

Achei ótima essa parte. Quantas vezes nesses últimos cinco meses de pandemia/quarentena a galera não pensou, de forma indignada, como é possível siclano e fulano não terem MORRIDO DE COVID porque não cumprem isolamento, não higienizam suas compras e não se preocupam em lavar as roupas quando chegam em casa? O medo nos prende em casa, nos faz sentir enorme culpa se furarmos a quarentena, e desejamos a morte/doença daqueles que saem - ou que não compartilham o mesmo medo e princípios morais que nós.

Porém, as críticas mais ácidas e degradantes são do Alex para ele mesmo: "Eu vivo numa piada de judeu" e, sob uma ótica freudiana e foucaultiana, seus impulsos sexuais são atos de resistência contra um mundo controlador e de culpa no qual ele não se encaixa. Na superfície, ele faz o que se espera de um menino judeu, mas sob os olhos dos outros não. O exemplo mais alegórico é a punheta que ele bate a caminho de seu bar mitzvah. 

"Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto! Chega!"

E tudo isso é condensado no último capítulo. Se o Alex não se encontra nos EUA, na sua comunidade em Nova York, se encontraria ele em Israel? O lugar onde todo mundo é judeu. O lugar onde os judeus são os WASPs. 

Absolutely not. Uma jovem israelene explica: 

"'Ah, não concordo', repliquei. 'A autodepreciação, afinal de contas, é uma forma clássica de humor judaico'.

'Humor judaico, não! Não! Humor de gueto.'

Um comentário não muito amoroso, não é? Quando o dia raiou, ela já havia me explicado que eu era o representante típico do que havia de mais vergonhoso na 'cultura da diáspora'. Aqueles séculos e mais séculos sem pátria haviam produzido homens desagradáveis como eu - assustados, defensivos, autodepreciativos, emasculados e corrompidos pela vida num mundo de gentios."  

E daí, fui pesquisar. Me intrigava como foi recebido o livro em 1969 pela comunidade judaica. Algumas aproximações com a série Mrs. Maisel eu já tinha reparado: a 'autozuação', a mãe controladora, a culpa na tradição judaica... E eis que descubro que Lenny Bruce, que pagou a fiança de Midge logo nos primeiros episódios, foi de fato um personagem real e, portanto, contemporâneo de Philip Roth. Neste turbilhão que foi os anos 60, a liberdade sexual, emancipação da mulher, civil rights, pós-guerra, os debates em torno da identidade e da linguagem tomaram espaço e o pós-estruturalismo ganha espaço. 

E diante desta nova questão da identidade, quem é esse judeu pós-segunda guerra mundial? Exilado nos EUA, exilado em Israel... Alex não encontra seu lugar, porque parecem ser incompatíveis o que ele é (ou quer ser? ou tenta ser?) com o que é esperado dele - não importa onde esteja. E por isso o sentimento de deslocamento e vazio. Irônico sua ocupação ser na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York, profissão que decidiu seguir quando, ainda adolescente, teve uma epifania durante uma viagem de caminhão a trabalho com seu cunhado. É o conflito entre vontade de ajudar a todos com o direito de serem humanos sendo que, o próprio Alex, nunca foi visto como humano, mas como o judeu da mamãe, do rabino, o judeu exilado, o judeu narigudo, o judeu emasculado, etc. 

"Judeu judeu judeu judeu judeu judeu! Já está transbordando dos meus ouvidos, a saga dos judeus sofredores! me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu - porque por acaso eu também sou um ser humano!"

Foi uma leitura cansativa, mas instigante. Me vi várias vezes em Alex quando ele entra em pânico por fazer algo errado. No começo da pandemia, eu achava que ia morrer quando buscasse a pizza na portaria do prédio; eu ia ficar entubada se não limpasse cuidadosamente com álcool em gel o novo frasco em alcool em gel que comprei no mercado; que eu ia contaminar todos da minha família se eu abrisse o vidro do carro e depois os visitasse. E, ao mesmo tempo, vi vários Alex que não compreendem como os os fura-quarenteners não morreram de COVID, ou pelo menos não ficaram seriamente doentes. A culpa e o medo continuam presentes. Ainda que tem sido flexibilizada as atividades nessa quarentena, o medo de sair e se contaminar e a culpa e vergonha de estar saindo ainda são dominantes.

(Respondendo minha própria pergunta do título, estou tão presa na década de 60 que ontem, domingão, eu e Allan assistimos Rosemary's Baby, que também é bastante referenciado em Mad Men. Que filme, minha gente. Que filme!)