A outra volta do parafuso - uma leitura para me lembrar que nem tudo é certo ou errado, preto ou branco, verdadeiro ou falso

Acho que o grande debate "Capitu traiu Bentinho?" só existe mesmo porque Dom Casmurro é leitura obrigatória e é a única que muita gente faz. Ler Machado de Assis é muito inteligente e culto e para muitos só essa leitura já vale para a vida inteira. Porque se a gente lesse mais, outras perguntas tiradas de outros livros seriam tão condizentes quanto a possível traição de Capitu.

Aproveito para confessar que eu sou uma leitora facilmente manipulável. Eu me derreto ao personagem. Por mais que eu tenha sido avisada sobre os perigos da narrativa em primeira pessoa, eu esqueço de tudo logo nas primeiras páginas e me torno uma grande defensora do pobre-coitado-narrador. Foi assim com "O Apanhador no Campo de Centeio".... Eu só conseguia dizer "tadinho do Holden...". Depois, passa um tempo, eu passo a pensar um pouco mais e até vejo como sou bobinha.

Vi que na Netflix foi lançada uma nova série de "terror", chamada "A Maldição da Mansão Bly", dos mesmos  criadores de "A Maldição da Residência Hill", que eu vi ano passado e amei. Assim como o segundo show havia sido uma releitura da obra de Shirley Jackson, "A Assombração da Casa da Colina", o primeiro foi inspirado pela "A outra volta do parafuso", de Henry James.

Por isso, corri para baixar a obra de Henry James no Kindle e aproveitar o clima meio terror de Halloween em terras tupiniquins. Eu adorei o livro. Foi uma daquelas leituras que, para além da própria história contada, seus personagens, clímax, etc, a experiência mexeu bastante comigo. Quando acabou, senti que o último parágrafo, a última frase, era euzinha num equilíbrio perigosíssimo à beira de um precipício. Eu fiquei triste, apreensiva, cheia de dúvidas. 

É um relato - até bastante breve - da experiência de uma governanta que aceita o trabalho de cuidar de duas crianças orfãs em uma casa de campo, no interior da Inglaterra. Lá, ela começa a vivenciar situações estranhas, ver coisas suspeitas e desconfia que algo muito errado está acontecendo. Na intenção de proteger seus pupilos, decide colocar-se à prova: ouvidos e olhos atentos e diálogos muito bem manipulados para extrair a verdade das crianças, sem que elas percebam as intenções da governanta. Um jogo difícil e perigoso de adquirir confiança daqueles que ela quer salvar, sem mostrar sua intenção de benfeitora. 

Acontece que eu fui lendo o seu relato, quase de uma vez só, e fui acreditando em cada uma de suas palavras, gestos e intenções. Cheguei a pensar o quanto ela era inteligente. Demorei muito para perceber que seu nome nem aparece! Só depois de terminada a leitura, o mal-estar me levou a ler o posfácio da edição da Penguin-Companhia, no qual David Bromwich questiona quão inocente são as boas intenções da governanta. Ela nem expõe seu nome... O quão inocente não fui eu nessa leitura toda? 

Enfim, me peguei depois refletindo o quanto é fácil não questionar, não duvidar, não desconfiar. Não estou dizendo que é fácil acreditar, quão sedutor é crer na primeira coisa vista ou palavra ouvida; mas sim o quanto é difícil olhar uma vez, voltar e olhar de novo, e talvez mais uma vez. E para o bem e para o mal, a quantidade de informação e pontos de vista diferentes que são expostos - 24 horas por dia 7 dias por semana - torna humanamente impossível esse olhar crítico/desconfiado. Essa leitura que questiona e investiga. Não dá tempo. Por isso a sensação de afogamento no mar de certezas e afirmações feitas de formas tão convictas nas redes sociais. Cada tweet, cada foto, cada relato, cada thread e cada notícia compartilhada de pessoas "reais" ou anônimas são tão sedutores e parecem ser tão definitivos. Tão preto no branco. Tão sim ou não. O meio termo é que é complicado. 

Se o que a governanta diz que viveu é verdade, ou é imaginação, não cabe a nós julgar. Cabe a nós desconfiar sim, mas qual a verdade? Não há. Sempre lembro da questão: os homens das grandes navegações viram mesmo monstros e sereias, como eles dizem em seus relatos? Sim e não. Viram algo, mas reconheceram o que lhes era familiar ao mundo que conheciam. O que era exatamente? Não saberemos, mas vale a pena se questionar e refletir sobre a área cinzenta.  

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A tempo... Não gostei tanto de Mansão Bly. Mas acho que isso é muito mais culpa minha, que ando meio bodeada com TV e não tenho conseguido passar muitas horas assistindo alguma coisa, do que da própria série. Maridão gostou!

Dr. Jekyll e Mr. Hyde - a ambiguidade do público e do privado no homem moderno

A primeira vez na vida que vi uma referência sobre o clássico "O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson e publicado em 1886, foi em um episódio de Looney Tunes, chamado "Hyde and Hare". 

Em uma manhã ensolarada e ordinária, Pernalonga sai de sua toca, observa os velhinhos alimentar os pombos e aguarda ansiosamente o gentil senhor que todo dia o alimenta com cenouras. Mas desta vez, Pernalonga é adotado pelo senhor e, animado, segue-o até sua casa, onde a placa indica ser a residência de "Dr. Jekyll". Passando pelo seu laboratório, Dr. Jekyll não resiste à tentação e toma uma poção, que o transforma em um monstro assassino, o Mr. Hyde. 



A partir disso, fica um troca-troca de Dr. Jekyll / Mr. Hyde perseguindo Pernalonga que, sem compreender o que está acontecendo, procura Dr. Jekyll para avisá-lo sobre o monstro. É justamente nessa confusão, no entanto, que Pernalonga não consegue se desvencilhar de Mr. Hyde. 


Cansado, Pernalonga desiste da adoção e volta para o parque, momento em que ele mesmo se transforma em um monstro revelando que ele também tomara a poção escondido. Neste site, o autor traz várias imagens do episódio, produzido em 1955, e explica porque o considera uma obra prima. Eu acho divertidíssimo e, claro, quando era criança, eu não sabia quem era Dr. Jekyll e tampouco peguei a referência. 

Desta vez eu resolvi ler o livro. Primeiro porque eu me peguei pesquisando e lendo sobre o tema do duplo na narrativa para pensar e escrever sobre o jogo de videogame Last of Us, Ellie e os espelhos: o duplo na narrativa de Last of Us II. Depois, porque estou acompanhando o site Querido Clássico, que tem proposto a leitura de clássicos do gótico neste mês de Halloween. O livro é muito curtinho. Baixei depois do almoço no Kindle e antes de jantar já tinha terminado. 


No prefácio da edição da Penguim, Luiz Alfredo Garcia-Roza demonstra todas as qualidades que fazem da obra de Stevenson um clássico, sua originalidade e explica porque ela tornou-se uma referência na nossa cultura popular. "O Médico e o Monstro", título da tradução em português, tem como pano de fundo questões filosóficas, morais e científicas sobre a personalidade humana que estavam em voga nas discussões do fim do século XIX: o bem e o mal, a psicanálise e a insconsciência, a natureza humana sob os olhos da antropologia evolucionista e a criminologia, etc. A mentalidade e natureza humana passavam a ser analisadas sob as lentes da ciência e da medicina, sem desvincular-se totalmente da moral cristã. Por isso o elemento "mágico" e/ou fantasioso do horror em O Médico e o Monstro não é um fantasma, ou qualquer outra coisa inexplicável. Como explica Garcia-Roza:

"[...] o elemento sobrenatural ganha certo grau de plausibilidade ao se aproximar das técnicas de 'ficção científica' graças à sugestão de que o experimento de Jekyll poderia ser repetido caso ele tornasse a fórmula disponível." 

Na minha leitura de historiadora - de cientista social - o que se destacou da obra está menos nos aspectos psicológicos/ psicanalíticos e mais na duplicidade de Jekyll / Hyde no social. Dr. Jekyll é um senhor respeitável, um médico conhecido, de amizades tão conceituadas quanto ele na sociedade londrina. Sua casa, porém, tão bem frequentada e cheia de criados e elegância, tem uma porta nos fundos e, sempre que lhe convém, toma sua poção, converte-se em Mr. Hyde e sai escondido realizar suas tentações proibidas. Sua identidade perfeita é garantida, já que todas as atrocidades que comete tem a aparência física de um outro, alguém disforme. 

A personalidade "hydeana", que sai escondida pelas portas dos fundos, é comum e atual. Quantos homens respeitáveis, notáveis, pais de família, educados e "dignos de respeito" não são verdadeiros monstros quando estão dentro de quatro paredes? Na obra de Stevenson, os relatos contra Mr. Hyde são contra uma criança, que é pisoteada, e depois um velho senhor, que é morto a base de pauladas e ataques de bengala. Sempre são crianças, idosos e animais. São sempre os mais fracos que, longe dos olhos da sociedade, sofrem os ataques mais violentos daqueles que se transformam (ou se revelam?) quando não estão sendo vistos. 

Não consigo não pensar nos dados assustadores de quantos pais de família e líderes religiosos são os pedófilos e consumidores de pornografia infantil. Se se tratasse de uma história contemporânea, diria que Mr. Hyde é o perfil fake do Dr. Jekyll: é o anonimato que lhe taz os sentimentos de impunidade e permissividade. 

Mr. Hyde é o próprio anonimato, que ganha relevância com as grandes cidades, a industrialização, o êxodo do campo e a modernidade: justamente o contexto de paisagem e mudança social pela qual vinha sofrendo Londres e outras capitais no fim do século XIX. 

Isso me lembra Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, quando explora as relações da paisagem urbana e do homem moderno a partir dos poemas de Baudelaire. Densamente povoadas, as cidades assumem, a partir do século XIX, uma configuração aparentemente anárquica: o caos urbano não se limita ao tráfego de veículos, passantes, cavaleiros e condutores, mas de toda a interação entre o espaço, o homem moderno e o sistema social.

"Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contradições interiores do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada, que conduz à irracionalidade anárquica do sistema social que mantém agregadas todas essas unidades. [...] Para atravessar o caos, ele [o homem moderno] precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precida aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. [...] Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego pode ir a qualquer parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores urbanos onde o próprio tráfego se move livremente. Essa mobilidade abre um enorme leque de experiências e atividades para as massas urbanas". (BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 190-1)

Nas relações urbanas, o homem moderno é um individualista. Nas relações sociais pré-modernas a fronteira entre o público e privado era muito mais frágil. Na cidade, porém, a intimidade é quase sagrada e as relações pessoais são protocolares. É como se Dr. Jekyll fosse o lado social - o público - enquanto Mr. Hyde é o privado, íntimo. Sair pelas portas dos fundos e não ser reconhecido como o prestigiado Dr. Jekyll, permite o médico circular por outros territórios. Territórios sujos, violentos, ocupados por lascívia e que estão na parte escura das cidades, onde se encontram os marginalizados da sociedade. 

Dr. Jekyll e Mr. Hyde é o arquétipo do homem moderno, na medida em que na dimensão social apresenta-se de um jeito, enquanto na intimidade apresenta-se de outro. No ambiente urbano, dentro o caos da densidade populacional, mudanças e movimentos bruscos, o anonimato permite ao respeitado Dr. Jekyll responder aos seus instintos perversos sem degenerar sua imagem social. 

No final, fica a pergunta: quem, então, somos nós? Qual a nossa "essência"? A que se manifesta no público, ou aquela que só aparece na intimidade entre quatro paredes?

Na carta deixada por Dr. Jekyll, o médico diz que Mr. Hyde é Dr. Jekyll, mas Dr. Jekyll não é Mr. Hyde. Ou, ao menos, o que Mr. Hyde faz - todos seus crimes e atrocidades - não compromete Dr. Jekyll. É como se o médico fosse isento de responsabilidade das atrocidades cometidas por Mr. Hyde que, por sua vez, faz e realiza tudo o que o médico tem vontade, mas por princípios morais não faz. 

Na verdade, essa questão é justamente parte do "caos" do homem moderno - onde as contradições do individualismo e das relações sociais se chocam, confrontadas pela moralidade cristã, surgimento da psicanálise, medicalização da vida, e tantas mais transformações trazidas pela modernização da vida no século XIX. Um grande mérito que torna essa obra um clássico, tão próxima de nós e um fenômeno da cultura de massa é que, apesar de vivermos já no século XXI, ainda somos filhos desta modernidade.

"Outras Mentes" foi uma leitura sobre polvos e humanos, mas também uma reflexão sobre outras leituras, esse blog e o futuro da discussão ambiental

Talvez uma das coisas mais interessantes que têm surgido com esse projeto de escrever - mesmo que de maneira leiga, pessoal e nada acadêmica - sobre minhas leituras, é poder visualizar alguns temas em comum. Como se fosse uma atividade de ligar os pontos, mas cujo desenho vai se formando meio que por acidente. 

Uma das primeiras obras que registrei aqui no blog, lá no início desta retomada em maio, foi Moby Dick (que pode ser visto aqui). Uma leitura que me levou para o alto mar, sob os olhos do século XIX: o interesse comercial no óleo de baleia para a iluminação e os meios primitivos de caça e extração. Uma ideia dos animais marinhos no meio termo entre desconhecimento-monstros-fantasia típico do imaginário medieval/renascentista e do controle absoluto e racional da natureza em função das demandas de uma organização social cada vez mais industrial. 

E depois disso, li Olga Tokarczuk (de novo ela aqui!) e Ana Paula Maia (um texto completo sobre as duas leituras encontra-se aqui). Romances contemporâneos que tentam entender a relação da sociedade com os animais, agora sob uma perspectiva do século XXI, procurando ressignificar as relações de vida e morte dos animais e seres humanos. Algo que não se encaixa no imaginário criado pelo desconhecimento, tampouco no controle absoluto e desmedido da natureza aos interesses de uma sociedade industrial e de consumo. 

Agora, saindo da ficção e por indicação de um perfil literário no Instagram, li Outras Mentes, de Peter Godfrey-Smith. Eu voltei para o mar, mas ao contrário de Moby Dick, cuja perspectiva era da superfície, em Outras Mentes nós mergulhamos para baixo da água e observamos o que se passa onde é preciso prender a respiração ou usar a tecnologia a seu favor através de tanques de oxigênio (ou seja, não é nosso ambiente). No primeiro, o ponto de vista é de cima para controlar o que está embaixo. No segundo, passamos a fazer parte do que está abaixo - uma tentativa de integração, não dominação.

Se durante a leitura de Moby Dick eu passei horas e horas lendo páginas de sites da internet e vendo vídeos no Youtube sobre cachalotes e baleias, agora o mesmo se passou com polvos. Até um documentário na Netflix eu assisti, chamado Professor Polvo e fiquei dizendo "- agora quero ver um igual com baleias". 

Em Outras Mentes, o filósofo Godfrey-Smith investiga as origens da consciência e utiliza-se largamente da Teoria da Evolução. Para quem não estuda biologia desde os tempos longínquos do colégio, a explanação didática do autor é um pouco nostálgica: "- nossa! eu lembro disso!". Ao contrário da época do colégio, no entanto, essa ciência e termos técnicos nos são apresentados sob o ponto de vista filosófico: em que medida investigar as origens da consciência em animais tão diferentes de nós e seus comportamentos, não fala sobre nós mesmos e nossa própria origem de pensamento?

Logo na introdução, ao expor a complexidade do sistema neurológico e do comportamento dos polvos, lulas e chocos (os cefalópodes) em comparação aos nossos próprios, Godfrey-Smith aponta que os polvos são o mais próximo que chegaremos de um alienígena inteligente. Isso porque, ver a experiência subjetiva em outros mamíferos a aves não é um desafio. Não parece ser ilógico. Somos animais bilaterais, com separação entre corpo e cérebro, pertencemos todos ao filo dos cordados, respondemos a estímulos externos e, ao mesmo tempo, estímulos internos nos fazem modificar o ambiente, sem contar que nosso ancestral comum é muito mais próximo se comparado àquele do qual originou a bifurcação entre nós e os cefalópodes.

"Se conseguirmos fazer contato com os cefalópodes como seres sencientes não foi porque temos uma história compartilhada ou algum parentesco. Eles são, provavelmente, o mais perto que chegaremos de um alienígena inteligente."

Por outro lado, ver senciência em animais como os polvos, que desafiam toda a lógica que conhecemos (e que parece tão natural) entre corpo e cérebro, que não apresentam coluna vertebral, vivem isolados sem interagir com outros animais, não bilateral, etc, é um desafio maior. Como ter experiência subjetiva - como ter pensamento e apresentar comportamento inteligente - sem um cérebro? Godfrey-Smith nos responde essas questões de maneira muito científica, provocadora, didática e instigante. Ás vezes, acho que se perde um pouco nos detalhes da biologia - como por exemplo quando ele nos explica como os chocos e polvos enxergam pela pele, não pelos olhos. Apesar da explicação muito detalhada, não deixa de ser interessantíssimo. 

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O grande triunfo do livro, ao contrário do documentário da Netflix, é a habilidade de Godfrey-Smith nos fazer admirar os cefalópodes, e até mesmo a vida e o ecossistema marinho, nos integrando ao mesmo ambiente e história evolutiva - e não humanizando esses animais. Nós somos como eles, nós dividimos essas características, essa história. Não se trata de uma argumentação de "eles são como nós". 

É perigoso isso de "humanizar" os animais com a intenção de criar compaixão e consciência ambiental: é nesta armadilha onde caem alguns movimentos de proteção animal e veganismo. Em Professor Polvo esse processo humanizador é tão exacerbado que, além de caracterizar o animal como professor no próprio título, o narrador espelha sua vida na vida do polvo com quem convive por um ano - chamando-a de "she", não "it" - e aí, claro, temos um recurso narrativo incrível para a gente chorar litros. 

Só que aí está o problema: é um recurso narrativo. Acabou o filme, acabou o sentimento. Humanizar o que não é humano não cria empatia e compaixão, tampouco consciência ambiental. O que os autores de Professor Polvo e Outras Mentes têm em comum é justamente a preocupação com a saúde dos oceanos e a continuidade da vida marinha que, desde os tempos de Moby Dick, vêm sofrendo uma degradação em ritmo maior que o de recuperação. 

No clássico de Herman Melville, a baleia do século XIX é um monstro. Nós, como humanidade, evoluímos muito de lá para cá. Não é mais comum ao pensamento ocidental bestificar os animais, no entanto, humanizá-los não têm efeito sistêmico. Choramos pela polva do documentário, torcemos pela liberdade de Willy, mas a consciência do todo - do ecossistema e das outras vidas animais - nós esquecemos quando viramos a página, desligamos a TV. 

O mérito de obras como Outras Mentes é utilizar-se da nossa ciência - nossa própria produção de conhecimento - para mostrar como os polvos e a vida marinha é incrível por ser como ela é e - ao mesmo tempo, mesmo que tão distante de nós e tão poucas afinidades, ainda dizem muito sobre nós e podem, se continuarem a existir e serem estudados, dizer muito sobre nosso passado e origem como seres humanos. É neste quesito que se aproximam as obras de Olga Tokarczuk e Ana Paula Maia ao de Godfrey-Smith: elas nos mostram, com brilhantismo, como podemos evoluir a discussão ambiental no século XXI.

Rita Lee - uma autobiografia (e quando a gente tem a chance de contar o nosso lado)

O gênero (auto)biográfico me interessa muito. Tirando a biografia de Jorge Amado - escrito por uma mulher - as duas últimas autobiografias que li foram de mulheres: Becoming, de Michelle Obama, que li na virada do ano 2019/20 e, agora, Rita Lee - Uma Autobiografia. Que meus colegas eruditos da FFLCH, tampouco meus companheiros historiadores me vejam falando, mas para mim - enquanto leitora interessada, não especialista em gêneros textuais - os textos que envolvem as narrativas do eu não deixam de ser ficção (nisso se incluem também os textos historiográficos). 

Não quero entrar na toca do coelho de Alice, me dizendo pró-estruturalista, que tudo é relativo, etc. É um perigo eu cair nisso sem o cuidado necessário e nunca mais conseguir sair. Porém, todavia, entretanto... Ao longo de todo meu trabalho em arquivos pessoais, sempre me saltou aos olhos como nós - seres sociais que se utilizam das narrativas para diversos fins de organização social - utilizamos também a construção narrativa para dizer quem somos nós dentro de uma coletividade. A grande lição disso é que não cabe a nós julgar, decidir o que é verdadeiro ou não, porque a verdade está em quem fala o que fala. 

O texto de Rita Lee é uma delicinha de ler. Parece que estamos numa mesa de bar - ou no sofá da Hebe, que a ela era tão querido - ouvindo-a contar causos. Os capítulos curtíssimos organizados em ordem cronológica, comum às biografias, são na verdade muito mais lances de memória do que fatos explicados e datados. O uso do recurso de "eu me lembro" e dos sentidos - olfato, tato, sabor -, causa a nós, leitores, a impressão de uma confissão, de um relato autêntico. E Rita Lee faz isso muitíssimo bem. Acabamos a leitura com uma enorme vontade de conhecê-la pessoalmente e ter conhecido sua família excêntrica. 

Adorei a São Paulo que ela nos mostra. Essa cidade que me adotou e eu adotei - ela fala de uma São Paulo cheia de possibilidades, diversa, urbana e, ao mesmo tempo, linda. Eu mesma, paulistana por adoção e nascida no ABC Paulista, mais do que me identificava com os vislumbres da "caipirona" em sua primeira vez na Europa e no Rio de Janeiro. Eu também nasci e cresci "meio caipira" e viajar de avião ainda é uma maravilha.  Mas a "caipirice" de Rita, que se mostra como uma paulistana-jeca-tatu, é mais um recurso cômico de afirmação de suas origens e particularidades em oposição ao cosmopolitismo carioca. Afinal, seus pais tinham origem norte-americana e italiana e sua educação se deu em escola francesa.

De maneira geral, o livro parece ser um manifesto de auto-afirmação contra as críticas feitas por aqueles que lamentam o fim dos Mutantes e diminuem a carreira solo da cantora. Rita Lee foi uma mulher cantando rock, no meio de homens e mpbistas e bossanovistas: os ataques vinham de todos os lugares. Foi preciso muita força para resistir e continuar. E apesar do seu tom pouco friendly contra os irmãos Batistas, é preciso reconhecer a dificuldade de uma mulher se integrar num clube do bolinha. 

O fato é que o livro é a oportunidade da cantora e compositora mostrar que ela é mais que Os Mutantes e que o fim da banda não deve cair sobre seus ombros. Há mais: todo esse ar "cult" do grupo veio depois. Na época, eles estavam desbravando e não querendo ser cults, fazer história ou a revolução. Inclusive, esclarece sua posição política para aqueles fiscais do anti-ditadura: definitivamente não era a favor, mas também achava um porre fazer arte engajada. E isso não a diminui como mulher, como cantora, tampouco sua arte. Publicado em 2016, nos seus 69 anos, a autobiografia de Rita Lee é uma forma humorada, leve, de responder aqueles que a criticaram ao longo de seus mais de 50 anos de carreira. 

E aí, cabe a ela sim contar o lado dela dessa história, que faz de forma muito sincera:

Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente na fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira. 

Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela.

Apesar de gostar muito da Rita Lee e saber muitas músicas de cor, não sou fã de carteirinha. Tampouco conheço muito essa história da cultura brasileira da qual Rita Lee é uma das protagonistas. Interessados neste assunto se deleitarão com os relatos mais históricos. De qualquer maneira, da minha leitura, despreende-se a genialidade e coragem de Rita Lee em se afirmar e afirmar sua arte num meio hostil, que não a reconhecia como cantora e artista e a critica/ responsabiliza pelo fim dos Mutantes. Rita Lee Jones conta os percalços que passou para não se deixar abater e se tornar a mulher que foda que é, solo, longe da sombra de homens e, deixa muito claro que, quando encontra Roberto de Carvalho, é parceria. E daí em diante, ela decola - tanto como mulher quanto como artista.

A Assombração da Casa da Colina: quando os fantasmas que nos perseguem somos nós mesmos

Parece que pipocaram clubes de leitura. Se reunir para discutir um livro me parecia tão coisa de filme americano. As senhorinhas donas de casas sentadas em poltronas numa sala confortável, conversando e trocando ideia sobre a mais recente leitura, comendo cookies e brownies... Em Lost, o episódio que apresenta com mais detalhes quem eram os outros, mostra os habitantes da ilha reunidos e discutindo o livro Carrie, de Stephen King, quando são interrompidos pela queda do avião dos nossos adoráveis protagonistas.

Ainda não me reuni presencialmente para discutir nada (só em salas de aula), mas minha bolha de perfis das redes sociais tem me apresentados clubes de leitura que propõem discussão online (o que faz muito sentido, considerando a quarentena). O fato é... O primeiro clube de leitura que entrei foi do site/revista  Valkirias, onde discutimos Sobre os Ossos dos Mortos. Agora, entrei em mais um, do site/revista Querido Clássico. Eu adorei a proposta de ler clássicos do terror no mês do Halloween e, por isso, a leitura coletiva deste mês é A Assombração da Casa da Colina, da autora norte-americana Shirley Jackson e publicado em 1959. Eu não conhecia o livro, tampouco a autora. Já tinha assistido a série da Netflix, A Maldição da Residência Hill, que eu gostei bastante, mas não sabia que tinha sido inspirada pela obra de Jackson. 

É um livro de leitura rápida, pouco mais de 200 páginas, que eu li em três dias numa viagem que fiz ao interior de São Paulo. Coincidências da vida, mas viajamos à região da Cuesta, em Botucatu, formada por grandes morros. Alugamos uma casinha pelo Airbnb e ficava bem no topo, com um mirante maravilhoso. Na primeira noite de leitura, ventava muito e, por ironia das deusas da leitura, estava eu lá lendo sobre a Casa da Colina. 

Anedotas curiosas a parte, gostei muito da leitura, mas pensava que eu não teria muito o que falar sobre este livro porque "não era uma história tão profunda" e que "ultimamente tenho lido obras tão densas, que esta é fichinha". Acabei pagando minha língua. 

O terror, na obra de Jackson, não está no campo do paranormal. Fantasmas, monstros, sustos não existem neste terror. O que existe é a tensão psicológica da protagonista, Eleanor, em saber quem é e qual o seu lugar na sociedade. Quando eu era criança, meu pai me dizia "não tenha medo de espíritos, é dos humanos que temos que ter medo". Essa é a grande lição do livro. 

As personagens aguardam ansiosamente uma atividade paranormal. Querem ser testemunhas de algum fenômeno inexplicável, mas no fundo, o que se passa na cabeça de Eleanor é o medo de como está sendo julgada pelos seus colegas, o medo de saber o que eles pensam dela. Se a casa é mal assombrada ou não, o medo da casa é contaminado pelo medo de parecer que tem medo e, por isso, a afirmação constante de "eu não senti medo". O curioso, no final, não é o medo de a casa não deixá-la ir embora. O medo é, de fato, ir embora. 

Quando a tensão aumenta e parece que estamos próximos do clímax, a chegada da esposa do Dr. Montague muda tudo. A dubiedade de sua crença no paranormal e, ao mesmo tempo, seu ceticismo, desestabiliza a conviccção de que a casa é realmente mal assombrada e, aí sim, percebemos que o problema está não na materialidade da residência, mas sim na cabeça de todos eles. É um livro que joga muito com a dualidade de expectativa versus realidade. O quanto daquilo que apuram os sentidos das personagens é real e o quanto é imaginação? O quanto o medo é do paranormal e o quanto é do julgamento do outro - outro de carne e osso. 

Pesquisando mais sobre a autora e a obra, vi que Shirley Jackson foi contemporânea de outros autores norte-americanos clássicos, como Philip Roth. Adeus, Columbus, inclusive, concorreu junto com A Assombração da Casa da Colina, pelo National Book Award. O primeiro livro ganhou, assim como Philip Roth é muito mais conhecido e Shirley Jackson foi ficando... Vamos dizer assim... Um pouco apagada. 

E no final, assim como os protagonistas de Roth buscam sua identidade e saber quem são no meio em que vivem, também Eleanor, de Jackson, está procurando seu lugar. Só que é uma mulher, que viveu até depois dos 30 anos cuidando de sua mãe julgadora, pouco amável e recentemente falecida, sem um lugar próprio, vivendo às custas e à sombra de sua irmã. A Casa da Colina é um lugar onde ela pode pensar em ser ela mesma, longe do julgamento da irmã e do cunhado, fazer amizades com outras pessoas... Mas a insegurança e o medo do olhar do outro são de fato o que a assombram. 

Gostaria de conhecer mais Shirley Jackson e suas protagonistas. Em um artigo publicado no The Guardian na ocasião da estréia da série da Netflix, a autora diz como Jackson sentia-se sufocada e oprimida pela sua vida familiar - mãe, marido e a faceta dona de casa. Ao fato, acrescenta-se como, ao contrário de autores como Philip Roth, Saul Bellow e John Updike cujas obras foram associadas à seriedade e profissionalismo, Jackson foi relegada ao plano da dona de casa, habilidosa com a escrita, mas cuja obra era um pouco "emocionadinha". 


Depois de ter terminado, voltei ao livro e reli a primeira página que funciona como uma introdução. O quanto a Casa e todo seu equilíbrio, assoalhos firmes, paredes em pé, portas "sensatamente" fechadas e, ao mesmo tempo, tão "desprovida de sanidade" não são as nossas próprias amarras sociais? Uma sociedade de bases institucionais sólidas, existentes há tanto tempo no passado e tão mais no futuro, também desprovida de sanidade: sufocando e oprimindo os que nela habitam (neste caso, exemplificado por Eleanor, uma mulher em seus trinta, procurando seu lugar e aprovação no mundo). Mas aí, talvez eu já esteja viajando demais!!

De qualquer maneira, é importante ler A Assombração da Casa da Colina situando-a em seu contexto temporal e social. Percebemos assim como a obra expressa magistralmente sob uma narrativa de terror e suspense problemas do feminino da época de 60 e, ainda, tão atuais - sem cair do pedantismo de um feminismo raso e escandaloso. 

(Ainda não foi o encontro de leitura, certamente haverão outros pontos interessantes!)