A insustentável leveza do ser: exilados em sua própria terra

A primeira vez que li "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera, foi, muito provavelmente, há 10 anos. Eu era estudante de graduação em História e morava ainda numa pensão de estudantes perto da USP. Um colega, que estava no mestrado em psicologia leu este livro, disse que era muito bom e me emprestou. 

Curioso que, na época, eu não tinha muitas referências sobre Praga, Tchecoslováquia, Boêmia, Primavera de Praga, 1968, Exército Vermelho, comunismo, literatura pós-moderna... Tudo era meio confuso e eu conhecia as palavras, mas não os conceitos ou a história. Não que agora eu seja uma especialista, mas pelo menos estes assuntos não são mais de outro mundo. Me lembro que, na época, eu li rapidíssimo. Achei provocante. Bonito e misterioso. Mas se alguém me perguntasse sobre o que o livro falava, eu talvez teria dito: 

- Ahn... Fala sobre amor. Uns casais que tentam se entender, mas não conseguem. Num país que foi comunista. 

E depois disso eu apaguei. Pouquíssimas coisas do romance ficaram registradas na minha memória. Quando fui para Praga em 2019, tudo o que eu lembrava era que eu havia lido um livro cujo autor era tcheco e cuja história se passava nesta cidade. Só. Eu não lembrava do nome dos personagens, tampouco de Karenin. Muito menos da resistência tcheca contra a ocupação soviética. 

Só retomei a leitura porque vi uma blogueira compartilhando este livro no Instagram (me julguem) e me toquei como tão pouco eu me lembrava do que tinha lido. E fiquei me perguntando como uma narrativa tão densa e nada óbvia tinha ganhado projeção nas camadas mais superficiais das redes sociais. Fui lá na Amazon e comprei.  Eu não fui atrás para ver o que esses influencers falaram sobre o livro, mas tenho uma teoria que vou dividir com vocês no final do texto. 



Acho que os motivos de todo esse "apagamento" da minha memória se encontra um pouco na conclusão que tirei nesta segunda leitura. Em "A Insustentável Leveza do Ser", Kundera fala sobre tudo e nada. É um pouco aquela crítica (que eu adoro) contra o pós-moderno: as correntes pós-modernas querem relativizar absolutamente tudo e acabam explicando nada. Do ponto de vista científico, isso pode ser um problema, mas para a literatura eu acho maravilhoso. 

Por isso a "A insustentável leveza do ser" tem tantas possibilidades de leituras diferentes. Ela pode ser superficial e se atentar ao erotismo e à relação entre Tereza - Tomas - Sabina - Franz, ou ir se aprofundando em centenas de questões filosóficas trazidas pelo autor e que mudam a cada página. 

Não, eu não fiz desta vez uma leitura de estudo profundo. Comecei a ler em São Paulo durante meus preparativos de mudança para os EUA. Precisei parar e retomei já na minha nova casa. Foi o único livro físico que trouxe nas malas. 

Esse apanhado de tudo e nada é também o motivo pelo qual é tão difícil escrever sobre essa leitura: sobre o que eu gostaria de falar? Que temas mais me chamaram atenção? Mas isso é complicado, porque a cada mudança de capítulo, um novo tema aparecia com força. As reflexões filosóficas do narrador que se misturam com o pensamento e intrigas dos próprios personagens foram criando uma sopa de letrinhas: cada colherada era ótima, mas em cada uma vinha uma letra diferente. 

É um livro amargo, triste. Como muitos que li ano passado, fala da desconexão entre lugar e indivíduo. Ao contrário de autores que narram sobre o Holocausto e a diáspora judaica (e sobre os quais escrevi neste blog no ano passado), desta vez não são os personagens que saem de sua terra natal e tornam-se desterrados no mundo, procurando e não encontrando seu lugar. Isso talvez se passe um pouco com Sabina, que sai da Tchecoslováquia em direção e Europa e depois muda-se para os Estados Unidos. Seu desapego é tão grande que, além de ir cada vez mais a oeste e distanciar-se de suas origens geográficas, ela chega a morar junto com um casal idoso mecenas - abrindo mão até de uma casa própria. 

Isso, contudo, não se passa com os protagonistas Terezas e Tomas. Eles estão em Praga, vão para a Suiça, mas Tereza logo volta porque ela não se vê e nem é mais vista como Tereza neste outro país - é vista pelos outros como uma extensão de Tomas. Volta para Praga e Tomas logo vai atrás, encontrando uma outra cidade. Não foram eles que saíram do lugar, foi o lugar que saiu dele mesmo. Com a invasão, o país deixa de ser o que era e, consequentemente, também suas pessoas. O presidente Alexander Dubcek, depois de ter sido capturado pelos russos, volta transformado. Não é mais o mesmo. Por isso Tereza e Tomas, apesar de voltarem, também não são mais os mesmo. A transformação da Tchecoslováquia e de Praga também os transformaram: perderam suas profissões e suas referências.

Sabina exila-se saindo. Tomas e Tereza são exilados sem sair do lugar.

"Tomas dirigia, Tereza ia ao seu lado e Karenin no banco de trás; de vez em quando, esticava a cabeça para lamber a orelha deles. Duas horas depois, chegaram a uma pequena estação de águas onde tinham passado alguns dias juntos cinco ou seis anos antes. Pretendiam pernoitar ali. [...]

Tomas mostrava o hotel. Afinal alguma coisa havia mudado. Em outros tempos, chamava-se Grande Hotel e agora, de acordo com o letreiro, chama-se Baikal. Olharam para a placa, na esquina do prédio: era a praça Moscou. Em seguida percorreram todas as ruas que conheciam (Karenin os seguia sozinha, sem guia), lendo os nomes: havia a rua Stalingrado, a rua Leningrado, a rua Rostov, a rua Novossibirsk, a rua Kiev, a rua Odessa, havia o Sanatório Tchaikovski, o Sanatório Rimski-Korsakov, o Hotel Suvorov, o Cinema Górki e o Café Púchkin. Todos os nomes eram tirados da Rússia e da história russa. 

Tereza se lembrou dos primeiros dias da invasão. As pessoas retiravam as placas das ruas de todas as cidades e arrancavam das estradas os painéis indicativos. O país se tornara anônimo numa noite. Durante sete dias, o Exército russo ficara errando pelo país sem saber onde estava. Os oficiais procuravam os prédios dos jornais, da televisão, da rádio para ocupá-los, mas não conseguiam encontrar nenhum deles. Perguntavam às pessoas, mas elas davam de ombros ou indicavam endereços falsos e um intinerário falso. 

Com o passar dos anos, esse anonimato se mostrou nocivo ao país. Nem as ruas nem as casas conseguiram encontrar de novo seu nome original. Uma estação termal da Boêmia se tornara assim, do dia para a noite, uma pequena Rússia imaginária, e Tereza constatou que o passado que procuravam lhes fora confiscado. Era impossível pernoitar ali." (KUNDERA, M. A Insustentável Leveza do Ser. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 162-3)

Enquanto em Levi, por exemplo, a urgência é voltar para seu lugar, em Kundera a ânsia é para que este lugar lhes seja devolvido. São duas formas distintas de exílio. 

A saída do governo soviético se deu em 1989. Em Junho de 2019 eu visitei Praga com meu marido numa espécie de segunda lua de mel. E mesmo já tendo se passado trinta anos da redemocratização, o que vimos foi um país que repetidamente afirma os anos obscuros que foram a invasão comunista. "O Museu do Comunismo" é inteiro dedicado a este período sob um ponto de vista do horror e há monumentos e marcas relembrando eventos de resistência do povo tcheco contra o governo soviético em múltiplos lugares da cidade. 

Depois de uma longa história de ocupações, é como se o país procurasse estabelecer e afirmar sua identidade em completa oposição a estes momentos históricos. Tereza é a metáfora da República Tcheca. Ela se olha no espelho e fica procurando insistentemente a conexão entre sua alma e corpo, desvencilhando-se da imagem da autoridade materna. Ela renega completamente este passado. Notei essa tentativa de busca na cidade de Praga: monumentos, museus, passeios turísticos, tudo procura afirmar quem é este país e porque ele é único e diferente de todos aqueles que o ocuparam. 

É um livro que, provavelmente, vou ler novamente. Quanto mais "bagagem cultural" (odeio esse termo, mas no momento ela convém), mais camadas vão aparecendo durante a leitura. Só deixo aqui como nota registrada (e não apenas mental) de que na próxima leitura, se o tema "exílio" me for ainda de interesse, pesquisar o caminho do exílio do autor. Kundera parece ter tido uma relação conflituosa com seu país de origem e, apesar de escrever de maneira tão empática, me parece que, como Sabina, ele preferiu sair para nunca mais voltar. 




Memorial às vítimas do comunismo. Monte Petrin. Praga, Junho de 2019. 

O mesmo monte onde Tereza sonha que está indo ser assassinada. Em seu sonho, Tereza obedece Tomas que a manda subir o Monte Petrin. No topo, ela encontra três algozes que a matarão - caso assim seja sua vontade. Eu e o Allan visitamos o Monte Petrin e visitamos este memorial. Flagramos, neste momento, uma senhorinha colocando flores. 

"Quando chegou ao monte Petrin, a colina verdejante situada no centro de Praga, notou com espanto que não havia ninguém. Era curioso, pois, em geral, multidões sempre passeavam por ali. Sentia-se angustiada, mas os caminhos estavam tão silenciosos e o silêncio era tão repousante que relaxopu e se entregou cofiante à colina. Subiu, parando de vez em quando para olhar para trás. A seus pés, via um aglomerado de torres e pontes. Os santos brandiam punhos ameaçadores, os olhos de pedra fizados nas nuvens. Era a cidade mais bonita do mundo." (Idem, p. 146)


 Eu descendo o Monte Petrin. Praga ao fundo. Junho, 2019.


Outros textos nos quais falei sobre o tema exílio e publiquei aqui no blog:



Finalmente, por que o livro "A insustentável leveza do ser" sendo divulgado por influencers nas redes sociais que falam sobre tudo, menos literatura? Imagino que transformaram o livro de Kundera no horror de Sabina. O que Sabina mais detesta no mundo é o kitsch e, no contexto político e social que vivemos, os logos e palavras de ordem que imperam é o próprio kitsch. O governo Bolsonaro, Lula elegível, a aproximação das eleições, crise, etc... Uma leitura superficial e descontextualizada transforma a obra de Kundera num slogan anti-comunista tosco. E é isso que o transforma em poderoso.

"A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha um caráter ético, mas estético. O que lhe repugnava não era tanto a feiúra do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se cobrira, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa do Primeiro de Maio. 

[...]
A festa do Primeiro de Maio se abastecia na fonte profunda do acordo categórico com o ser. A palavra de ordem tácita e não escrita do desfile não era "Viva o comunismo!", e sim "Viva a vida!". A força e a estúcia da política comunista foi ter se apossado dessa palavra de ordem. Era precisamente essa estúpida tautologia ("Viva a vida!") que levava ao desfile comunista até mesmo os que eram completamente indiferentes às ideias comunistas. 

[...]
Por volta de dez anos mais tarde (ela já morava na América), um senador americano amigo de seus amigos a levou para passear num carro enorme. Quatro garotos se apertavam no banco de trás. O senador parou; as crianças desceram e desataram a correr num gramado imenso em direção a um estádio onde havia um rinque. O senador ficou ao volante olhando com ar sonhador as quatro pequenas silhuetas que corriam; virou para Sabina: "Olhe para eles!", disse, descrevendo com a mão um círculo que englobava o estádio, o gramado e as crianças: "É isso que eu chamo de felicidade".

[...], nesse momento, Sabina imaginou o senador num palanque de uma praça de Praga. Em seu rosto, havia examente o mesmo sorriso que os estadistas comunistas dirigiam do alto de seu palanque aos cidadãos igualmente sorridentes, que desfilavam a seus pés. [...]

O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos." (Idem, p. 244-6) 

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