Memória individual e coletiva no romance de Kazuo Ishiguro, "O Gigante Enterrado"

Comentei no post anterior como meu hábito de leitura foi meio atrapalhado neste ano. Em 2021 acabei o volume 1 da trilogia de "O Problema dos Três Corpos", li o segundo volume, mas o terceiro desisti depois de já ter completado mais de 60%. Como forma de passar o tempo, li até metade a edição chilena de "Uma breve história do tempo", S. Hawking. Portanto, posso dizer que "O gigante enterrado", de Kazuo Ishiguro, foi a primeira narrativa que eu li inteirinha, de uma vez só. Senti, pela primeira vez, aquele "todo" do começo-meio-fim que um romance nos proporciona. 

Eu comecei a lê-lo porque 1) estava disponível no meu kindle, já que comprei em uma ótima promoção da Amazon ano passado e 2) eu precisava de coisas bonitas. Eu fiquei encantada ano passado com a beleza nostálgica e triste de "Um artista no mundo flutuante" e, além de narrativa leve, linda e triste, a história tocava em assuntos que me são muito caros, como a memória individual e coletiva, a identidade, períodos de conflito histórico e a Segunda Guerra Mundial. 

"O gigante enterrado" foi meu segundo livro do autor japonês e completamente diferente do que eu esperava. Há muita beleza e muita tristeza, como eu já sabia que encontraria, mas não esperava que fosse uma história que se passava na Alta Idade Média no território que hoje conhecemos como Inglaterra. Não esperava ver Arthur, Merlin, dragões e elfos. Foi uma surpresa muito boa. 

Na minha total ignorância sobre romances de cavalaria, quando comecei a ver a apresentação dos personagens, a descrição das paisagens, o início da viagem do casal protagonista, a menção de uma dragoa e outras referências deste universo, fiquei com a impressão de que "O Gigante Enterrado" era uma mistura de "O Hobbit" e  "As Brumas de Avalon". No final, continuo com essa impressão, mas uma mistura com muito mais profundidade. Com uma tristeza e melancolia que nos leva a ficar refletindo e pensando no que tudo o que se passa naquelas páginas querem dizer para além do que está escrito. Ficamos procurando as metáforas e significados que estão nas entrelinhas. 

Assim como em "Um artista no mundo flutuante", a memória tem um protagonismo grande na história de "O gigante entererrado". No primeiro, o protagonista é um homem japonês idoso, cuja participação na Segunda Guerra Mundial tem consequencias diretas nas tratativas de casamento de sua filha mais nova e no futuro das novas gerações de sua família. Seu passado nos é apresentado como uma mistura de suas próprias memórias com o que os outros dizem que aconteceu. 

Com Beatriz e Axl, protagonistas de "O Gigante Enterrado", algo se passa de forma similar. O casal de idosos decide partir em uma jornada atrás de seu filho, do qual não lhes restam muitas lembranças. Não se lembram muito bem de seu rosto, onde ele está examenta e porque partiu. Aliás, todas as lembranças parecem escapar pelos seus dedos e dos demais. Mesmo nas ações e atividades mais cotidianas, as pessoas parecem esquecer com muita facilidade os eventos - recentes ou não - e as pessoas. Mas algo acontece e eles partem para a aldeia do filho. Nesta jornada, vamos conhecendo outros personagens e percebemos que este esquecimento é um problema generalizado. Mas as pessoas estão "vivendo", estão preocupadas em viver o momento, e não percebem - ou não dão muita atenção para isto. Porém, algo falta. É como um mal estar presente e constante, mas inominável. Que ninguém sabe muito dizer o que é e porque.

As observações que seguem revelam um pouco demais sobre a história. Para quem tem interesse em ler o livro um dia e não saber spoilers, não continue a leitura.

Descobrimos mais para frente que este mal coletivo do esquecimento é causado pelo bafo de uma dragoa adormecida, que havia sido enfeitiçada por Merlin. Para amenizar o conflito entre os bretões e saxões, o bafo da dragoa faz os povos estrangeiros esquecerem as atrocidades cometidas pelo exército comandada pelo Rei Arthur. Assim, porque esqueceram, os povos vêm vivendo ao longo do últimos anos "em paz". 

Mas a que custo? Axl e Beatriz não lembravam da guerra, dos massacres, do sangue... Mas também não se lembravam de coisas boas, de como se conheceram, porque se amavam, do rosto de seu filho. A todo momento estão procurando as lembranças boas de seu passado para se sentirem um pouco mais feliz diante de uma velhice tão difícil e dura.

O esquecimento da guerra implica no esquecimento também da vida pessoal. Da intimidade. Esquecem-se mortes e massacre, mas também as boas lembranças da juventude, do amor, do companheirismo. Quando um esquece o passado coletivo, também esquece sobre si. Perde-se um pouco de sua própria identidade. Na medida que Axl e Beatriz seguem a jornada em busca de seu filho e de suas lembranças, eles estão também procurando saber quem eles são e isso implica saber quem eles foram, pelo que eles passaram e o que fizeram.

Eu acho isso muito bonito. Melancólico também. E não posso deixar de pensar como vários livros que li nos últimos anos - aqueles sobre os conflitos de guerra do século XX, trazem exatamente esta mensagem que Kazuo Ishiguro traz em "O Gigante Enterrado". Aliás, como várias outras metáforas que recheiam a narrativa, este gigante é tanto a criatura mística - a dragoa - quanto as lembranças, ou o passado, escondido. 

Não vou listar todos, mas penso imediatamente em Primo Levi e os testemunhos levantados e transcritos por Svetlana Aleksievitch. Os relatos sobre si são também os relatos sobre a guerra, a fuga, a perseguição e o ideal e dor coletivos. Quando Primo Levi fala sobre si, ele fala sobre Holocausto. E quando ele fala do Holocausto, ele fala sobre si. O mesmo com os testemunhos recolhidos por Svetlana. Quando estas pessoas falam sobre si e suas carteirinhas do partido, eles estão falando sobre um tempo e um lugar. 

Por isso é importante sempre lembrar. Sempre falar. E devemos sempre ouvir. Roubar a história é roubar também a identidade das pessoas. Devemos isso a todos que viveram os dolorosos conflitos e às  futuras gerações. Devemos isso para continuar sobrevivendo coletivamente - como humanidade, como civilização. 

Não vou me alongar sobre outro tema, mas quero pelo menos registrá-lo aqui. É muito sensível e lírico como Kazuo Ishiguro coloca o tema da velhice e da morte em sua narrativa. Axl e Beatriz são idosos, ela está doente, e conhecem durante a viagem várias mulheres cujos maridos foram levados por barqueiros a uma ilha e nunca voltaram para buscá-las. Estes casais foram separados porque, segundo o barqueiro, as mulheres e homens não se lembravam porque se amavam. Não compartilhavam uma memória juntos. Em toda sua jornada, Beatriz e Axl querem suas lembranças de volta porque não querem ser separados pelo barqueiro. Eles querem ir juntos para a ilha. Por isso é tão importante eles compartilharem as memórias e não viverem de migalhas de lembranças: porque um dia eles serão postos a prova. Como isso se desenrola é triste, mas bonito. Me fez chorar.

Minha estréia em ficção científica e uma reflexão sobre a passagem do tempo e sensibilidade

O tempo está passando de uma forma muito estranha para mim. Não é rápido, tampouco devagar. É uma constante espera, cheia de imprevisibilidade, que faz o tempo presente ser extremamente vagaroso, enquanto o passado parece ter acontecido num estalar de dedos. 

Quando penso que já estamos entrando na segunda quinzena de Abril, fico com a sensação de que eu não tive tempo de escrever sobre a trilogia "O Problema dos Três Corpos" do autor chinês, Cixin Liu. Eu virei 2020-21 lendo o primeiro volume e, aos trancos e barrancos, passei os meses de Janeiro e Fevereiro lendo os volumes dois e três. 

Mas como eu não pude ter tempo de escrever se meus dias são inertes e contabilizam - assustadoramente - horas excessivas e não-saudáveis de tempo gasto em frente a tela do celular?

Entre Março e Abril, também aos trancos e barrancos, li metade do livro de Stephen Hawking, "Uma breve história do tempo". Entre catálogos de livros de viagem sobre paisagens turísticas chilenas, estava esta obra - em espanhol, claro - disponível na mesinha de cabeceira. Quão irônico é isso? Decidi, voluntariamente, enterrar esta questão. 

Este mês comecei outro livro e percebi hoje, dia 15 de abril, que se eu não escrever sobre "O Problema dos Três Corpos", ele ficará perdido para sempre no tempo e, aos poucos, se esvaindo da minha memória. 

E já que o tempo está sendo tão ingrato comigo, decidi enfrentá-lo e escrever minhas impressões hoje, sem rodeios, mesmo que de maneira breve e incompleta. Não importa o que aconteça e qual seja minha motivação.  Hoje estas linhas saem do plano das ideias para o papel, digo, computador. 

É o problema matemático dos três corpos que intitula o primeiro livro da trilogia de Cixin Liu.
 

 Eu nunca tinha lido ficção científica, apesar de gostar muito do gênero nas telas e meu marido ser um grande leitor. Me interessei pela obra do Cixin Liu porque também nunca tinha lido um autor chinês e neste tempo histórico, é importante se voltar para a China. Como meu olhar não é econômico, geopolítico, ecológico, mas sim cultural, Cixin Liu me pareceu uma boa estreia para a literatura contemporânea chinesa e, de quebra, ficção científica. Por isso o livro me cativou logo nas primeiras páginas: uma parte da narrativa é ambientada nos anos 1960 na Revolução Cultural Chinesa.

Os livros são relacionados e, ao mesmo tempo, independentes entre si. O segundo e terceiro são expansões do que é iniciado no primeiro. Surge o problema, mas a história continua com outros problemas, outros personagens e uma passagem temporal tão grande, cheias de idas e vindas, que ficou confuso - mas não impossível. O mérito da leitura (pelo menos o que mais me interessou) foi a junção dos elementos da astrofísica com as grandes questões metafísicas da humanidade. Estes elementos são bem trabalhados nos dois primeiros volumes, mas se perdem no terceiro e, por isso, este último foi o mais difícil de concluir a leitura. 

O primeiro foi meu favorito. Através de um jogo de realidade virtual, nosso protagonista "entra" num mundo diferente e a partir de personagens e fatos da nossa própria história da ciência, vai descobrindo que lugar é este e quais os "problemas" naturais que devem ser compreendidos e resolvidos. Eram meus capítulos favoritos. O primeiro livro junta questões da astrofísica, história da ciência e história política e cultural da China com suspense de uma maneira muito didática e envolvente. 

No segundo volume, o problema já está colocado e a história pode ser resumida com um "como vamos resolver essa questão e não vamos todos morrer?". O problema do problema é de que qualquer solução não pode ser falada, tampouco demonstrada. Ela não pode ser comunicada sob nenhum pretexto. Por isso, esta empreitada fica nas mãos de meia dúzia de pessoas, sendo uma delas nosso protagonista. Acompanhá-lo nessa trajetória também é muito interessante. 

No terceiro, tudo se perde. Percorremos um espaço temporal e galático gigantesco, que resulta num descolamento da ficção com o que é palpável, concreto. Tudo se torna imensamente abstrato e, por isso, fora de contexto da nossa realidade, ao menos do que nos é tangível. Eu não conseguia mais ver sentido no que estava lendo. Por que ficar lendo sobre explosões do sol, planetas a milhões de Unidades Astronômicas de distância da terra e cérebros descolados de seus respectivos corpos que ficam vagando pelo espaço que se passam daqui 600-800 anos, sendo que nossa preocupação atual é sobreviver dia a dia e chegar no mês que vem? Infelizmente, é o maior volume de todos. 

Não estamos vivendo um momento fácil e a imprevisibilidade me consome. Lidar diariamente com a ansiedade, aprender a não me cobrar demais e, ao mesmo tempo, não me abandonar e aprender a me cobrar um pouquinho, tem sido muito difícil. Por isso a leitura lenta e a demora em doar este tempo para a escrita. Estou sentada o dia inteiro em casa e extreamamente cansada. Parece que o jeito é aprender a lidar com isso. Assim como aprender a lidar com esta nova forma de passagem do tempo. 

A passagem do tempo, além da dimensão física e natural, é uma percepção. De 1990 até março de 2020, eu aprendi a ter uma percepção temporal. A pandemia fez surgir novas relações e dinâmicas do indivíduo e da sociedade com o tempo, portanto, uma nova sensibilidade de passagem temporal que ainda estamos tentando conhecer. Por isso, a ficção científica de Cixin Liu, ou Stephen Hawking e seu livro de divulgação científica sobre o tempo, me parecem ser um pouco incompletos. Por mais interessantes que sejam, as leituras me deixaram com a sensação de que faltava algo. Com certeza isso diz mais sobre mim e minha experiência de tempo/espaço de leitura do que sobre as obras em si.