Resenha - A Revolta da Vacina

No primeiro semestre do ano passado eu li um livro chamado "A Revolta da Vacina" de Nicolau Sevcenko. O livro me encantou tanto que até escrevi um pequeno artigo para publicar aqui no blog:


Pois bem, neste semestre, cursando Brasil Independente II, foi pedido uma resenha como uma das avaliações e eu acabei fazendo a resenha deste mesmo livro, que publicarei agora aqui.
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“A Revolta da Vacina” de Nicolau Sevcenko é um livro que foge um pouco dos padrões acadêmicos em sua linguagem, mas não falha em sua qualidade de pesquisa. Através de uma linguagem fácil e acessível a qualquer um fora da academia que se interesse pelo tema, Nicolau vai nos mostrar o avesso da história oficial acerca do evento que dá nome a obra. O livro é de poucas páginas e composto por quatro capítulos. No primeiro, é abordado exaustivamente o cotidiano da batalha; no segundo e terceiro, privilegia-se o contexto político, econômico e social por detrás do motim; e finalmente, no quarto e último capítulo, o desfecho desta história bastante trágica e a ideologia construída pelas autoridades para explicar o que ficou então conhecida como Revolta da Vacina.

A tese central do livro consiste em mostrar que a Revolta não se limita ao furor de uma população pouco esclarecida sobre a importância da vacina para a prevenção da varíola, que ao lado de outras enfermidades estava causando um aumento significativo no número de óbitos e infectados, mas sim de que ela é o estopim de uma série de fenômenos políticos que solidificaram a hegemonia paulista no poder em detrimento de interesses sociais que abrangesse a população em geral. Além, é claro, da interferência de diferentes grupos políticos na Revolta que viram nela uma chance de se auto promoverem, mas que perderam o controle em determinado momento. Nicolau denuncia que as chacinas possuem um discurso próprio que não foi diferente desta que ocorreu em novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro: atribuiu-se toda a responsabilidade pela tragédia ao grupo revoltoso que queria impedir a manutenção e a imposição da ordem, enquanto que os executores se auto colocaram como heróis que lutaram pelo bem geral.

O que Nicolau mostra é que no início do século XX, a burguesia ascendente cafeeira paulista precisava se inserir e mostrar ao mundo desenvolvido uma imagem de prosperidade, ordem, governo e economia estável, para continuar com os recursos externos sem os quais a instituição cafeeira não poderia se manter. A cidade do Rio de Janeiro, para tanto, precisava passar por uma reformulação, já que as condições estruturais do porto não mais condiziam com a sua importância de terceiro maior porto em movimento do continente americano. Somam-se a este fato as ruas estreitas e tortuosas da cidade que dificultava o trânsito de mercadoria que eram desembarcadas. Além disso, o fato da cidade ser um foco endêmico para várias doenças, como febre amarela, varíola, peste bubônica e tuberculose, fazia com que a tripulação e os passageiros não descessem dos navios, já que o Rio de Janeiro era conhecido internacionalmente como “túmulo dos estrangeiros.”

Outro dado importante que contribui para piorar este quadro já esboçado foram as políticas econômicas de governos anteriores. Medidas que ficaram conhecidas como “funding loan” e Convênio de Taubaté tiveram como conseqüências um drástico processo de deflação e arrocho da economia interna. As camadas mais pobres foram as mais prejudicadas pela retratação financeira: a necessidade de restringir ao máximo as despesas públicas, que resultou na dispensa maciça de funcionários e operários das áreas que mais ofereciam empregos, como a indústria, o comércio e os serviços públicos, a criação de novos impostos e aumento dos já existentes, a rápida valorização da moeda, entre outros fatores, contribuíram para o forte aumento do custo de subsistência.

Assim, uma grande massa populacional que habitava a cidade do Rio de Janeiro que já estava sofrendo com o desemprego e o crescente custo de vida que lhes estava sendo imposto de maneira drástica, começou a ser despejada dos casarões em que viviam. Estes casarões, que se apresentavam como uma espécie de cortiço onde abrigavam famílias inteiras em pequenos quartos e em situações subumanas, estavam sendo demolidos para o processo de regeneração da cidade e o alargamento das ruas. Na rua, dentro desta lógica de prosperidade e ordem a ser mostrada lá fora, eram perseguidos desde cães, gatos e qualquer outro animal, até homens que se atreviam a andar sem paletó. Nesta atmosfera repressora, a população que estava sendo desalojada foi sendo cada vez mais empurrada para a periferia e áreas menos valorizadas, como os pântanos e terrenos em declive.

Essa política de regeneração da cidade do Rio de Janeiro aconteceu no governo presidencial de Rodrigues Alves e foi, como diz Nicolau, a última peça para a construção da hegemonia paulista. Se Prudente de Morais dedicou seu governo a pacificar a nação sob o poder civil e Campos Sales a recuperar as finanças para que os capitais e recursos estrangeiros não cessassem, Rodrigues Alves foi o responsável por construir a imagem da qual já foi falada para ser apresentada ao mundo desenvolvido. Assim, não é a toa que Rodrigues Alves era identificado como a continuação desta política paulista bastante impopular para a população do Rio de Janeiro que havia votado em massa no candidato de oposição Quintino Bocaiúva.

Somado a todos estes fatores e que, finalmente, foi o estopim para a causa da revolta, foi a violência do poder público (que já estava afetando a população com as demolições em massa) em instituir a obrigatoriedade da vacina. O modo violento com o qual homens, mulheres e crianças tinham seus braços despidos e a vacina feita, fez com que o poder da autoridade sanitária praticamente se confundisse com a policial, nas palavras de Nicolau.

Assim, questiona o autor se foi realmente somente a falta de informação a responsável pelo levante do motim. Na verdade, como ele diz, “a revolta não visava o poder, não pretendia vencer, não podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsão de dor, uma vertigem de horror e indignação” e que, na verdade, “não foi mais do que um lance particularmente pungente de um movimento muito mais extenso e que latejou em inúmeros outros momentos desse nosso dramático prelúdio republicano.” Nicolau finaliza o livro sugerindo que a nascente república, apesar de seu discurso liberal e democrático, acabou democratizando a senzala. Salva algumas diferenças, a experiência de controle de massas e disciplina social foi incorporada pela república, pois com a abolição e a posse de escravos, o Estado passou a tratar todos segundo a lógica escravista.

Em relação ás fontes primárias, o livro é riquíssimo e o autor não faz uso somente da fonte escrita, mas também de fontes iconográficas, como mapas, fotografias e charges. Está na lista de fontes textuais, desde o diário íntimo de Lima Barreto, até o relato de viagem de Spix e Martius de 1817 a 1820; ainda é importante citar a constante referência a revistas, como A Avenida e O Malho, de onde tira várias charges, jornais, como A Notícia, fotos oficiais, relatórios, discursos, citações, mas a maior fonte parece ser a literatura. A lista de autores é grande: Cruz e Souza, Lima Barreto, Olavo Bilac, Aluísio Azevedo, João do Rio, entre outros.

Quanto ao debate historiográfico, por se tratar de um livro que não se limita ao meio acadêmico, são poucas as referências historiográficas; mas importantes historiadores são mencionados para reiterar algumas proposições que Nicolau Sevcenko faz. Como por exemplo, Afonso Arinos de Melo Franco que aparece como a grande referência para se tratar do presidente Rodrigues Alves; Gastão Cruls, por sua vez, para contribuir a ilustrar o Rio de Janeiro do início do século XX em referências sanitárias; José Maria Bello para a política conhecida como Encilhamento, e Edgard Carone para o caráter draconiano e implacável do projeto reformador da cidade.

A Autarquia Paulista

O texto abaixo é o primeiro capítulo de um trabalho que fiz como conclusão de um ano de estágio. Ele foi o resultado de um encontro quase mágico com um conjunto de documentação de uma fazenda chamada Fazenda Guatapará que situava-se na região que atualmente conhecemos como Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. A documentação é do início do século XX e possui um forte caráter administrativo. Entre as diversas correspondências, um remetente predominante era a Companhia Paulista de Vias Ferreas e Fluviaes. A partir daí, comecei a pesquisar a íntima relação entre o surgimento da ferrovia e o café no estado de São Paulo.

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“O ouvidor geral me disse que na dita capitania de São Vicente havia um caminho de 5 ou 6 léguas o qual era tão mau e áspero por causa dos lameiros e grandes ladeiras que se não podia caminhar por elles...”
(Trecho de carta enviada a D. João III pelo Governador Geral Duarte da Costa em 1555. ELLIS Jr., Alfredo. O Café e a Paulistânia. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1951 – p. 255. )

“A quarta Villa da capitania de São Vicente é Piratininga, que está 10 a 12 léguas pelo sertão e terra a dentro. Vão por lá umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais e os homens sobem com trabalhos e as vezes de gatinhas por não despenharem-se e por ser o caminho tão mau e ser tão ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos.”
(Trecho de depoimento do Padre Anchieta em “Informações do Brasil e suas Capitanias” de 1584. Idem.)

Como podemos ver nos documentos acima, a geografia paulista sempre foi um fator de dificuldade de transporte e comunicação e, por conseguinte, de isolamento do planalto. Este isolamento foi um assunto bastante estudado por Alfredo Ellis Jr., que diz que se trata de uma região que sempre viveu ensimesmada e é um perfeito exemplo de determinismo geográfico.

As dificuldades no transporte através da serra faziam com que o planalto se tornasse uma região isolada econômica, psicológica e sentimentalmente. Como qualquer tipo de mercadoria só podia ser transportada no dorso humano, o frete de exportação ou importação a tornava praticamente proibitiva. Por muito tempo, todo este isolamento era quebrado por uma tênue ligação entre o planalto e o litoral chamado de “Caminho do Padre José”, pelo qual só passavam os índios, que se auto-trasportavam, e toda a produção era consumida pela própria população.

Além da dificuldade do transporte causada pelo terreno acidentado, o clima aproximado ao da metrópole impedia a exportação de gêneros de clima frio e a concorrência com o nordeste dificultava a exportação de gêneros de clima quente, a falta de fonte de renda e o fraco poder aquisitivo dos habitantes do planalto eram outros motivos do isolamento e da falta de interesse sobre a região por parte da Coroa portuguesa.

Como ilustração do isolamento e a falta de lusitanismo que vivia a região do planalto, vale mencionar a informação que nos foi passada pelo Padre Vieira e consta no livro de Ellis Jr.: António Paes de Sande que governou as capitanias reunidas de São Paulo e Rio de Janeiro entre 1692 e 1693 falava guarani. Por isso que Nogueira de Matos comenta sobre um processo de indianização que sofreu o grupo paulista. A América Portuguesa era apenas o Nordeste, única região povoada e civilizada, o resto da América, como informa Ellis Jr., estava abandonada à barbárie e alguns poucos aventureiros e desgarrados portugueses. São Paulo era uma terra selvagem.

Desta maneira, enquanto o nordeste possuía uma identidade muito maior com Portugal, sempre esteve presente entre os habitantes do planalto um sentimento vazio de lusitanismo, o que favoreceu um exagero do municipalismo, que tomou um caráter autônomo, e mais democrático se comparado com outras regiões da América Portuguesa que viviam com mais intensidade o pacto colonial. A produção dos gêneros de subsistência que eram consumidos in loco ajudaram a promover a pequena propriedade e a policultura. Como veremos adiante, mesmo com o advento da ferrovia e a maior facilidade de transporte do café, o frete ainda era muito caro para o transporte de gêneros como o milho, arroz e outros artigos pouco valiosos por quilo, portanto, mesmo na passagem do século XIX para o XX, a região do planalto continuou produzindo o que se consumia e procurando se auto-abastecer.

Só em 1724, aproximadamente, quando começou a ser trafegada a estrada de São Paulo - Rio Grande e o muar foi empregado como meio de transporte, o preço do frete abaixou, pois era caríssimo o transporte de mercadorias no dorso dos escravos. Assim, o açúcar que era produzido no planalto e havia perdido o mercado consumidor com o fim do ciclo do ouro nas Minas Gerais, começou a ser transportado pelos muares até o litoral para ser exportado além-mar. O muar como meio de transporte foi utilizado até o início da produção e exportação do café, antes que este se expandisse para o Oeste Paulista.

Mesmo no período áureo de exportação do açúcar, economicamente mais vantajoso por conta do transporte feito pelas tropas de muares, a ligação entre o planalto e o litoral continuou precária. As novas exigências desta nova economia fez adaptações de uma via que era, essencialmente, de pedestres para uma via de tropas. É importante lembrar também que as maiores dificuldades de transporte e comunicação ficavam na serra e que as estradas do planalto eram um problema bem menor. A serra, além de possuir um desnível de quase 800 metros, também apresenta um alto índice de pluviosidade que, aliado a alta capacidade da mata atlântica se recuperar de desmatamento, dificulta ainda mais tanto a construção como a conservação dos caminhos. As estradas do planalto que foram sendo desenvolvidas na época do açúcar, por sua vez, resultaram no aproveitamento e adaptação dos velhos caminhos dos bandeirantes . São Paulo entrou no século XIX com uma feição bastante parecida com a do período colonial e isso só foi se alterar com o advento da era ferroviária.

O projeto federalista

Eu já postei as questões 2 e 3 da prova de Brasil Independente I que eu fiz semestre passado. Agora é a vez da primeira questão, que trata sobre o possível destino federalista do Brasil que foi escondida pela história oficial que sempre privilegiou o projeto monarquista de unidade nacional.

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No início de seu texto, Evaldo Cabral de Mello vai nos dizer de maneira bastante clara que a historiografia da Independência tendeu a reproduzir a versão contada originalmente, valorizando a “vitória” da monarquia e da unidade nacional. No entanto, havia sim um projeto federalista que foi escamoteado pelos estudos do período e que a unidade territorial não era o destino do Brasil. Diante de um impasse entre as províncias do norte e as províncias do sul, a preservação da unidade brasileira, porém, era usada como argumento principal para a organização de um legislativo.

Com a chegada da família real e o enraizamento dos interesses portugueses no Rio de Janeiro, o Império Brasileiro se encontrou numa situação de extremo desequilíbrio. A capital do reino, agora com um enorme contingente de pessoas e uma necessidade de adaptação urbana e administrativa para atender os interesses da Corte portuguesa, se viu diante da necessidade de maiores quantidades de dinheiro que vinham, em sua grande maioria, das capitanias do norte. Em “Preciso” – Nota de José Luís de Mendonça, se referindo aos impostos dirigidos à Corte do Rio, ele diz: “Depois de tanto abusar da nossa paciência por um sistema de administração combinado acinte para sustentar as vaidades de uma corte insolente”. É por isso que a chegada da família real, antes de confirmar uma unidade brasileira em torno de si, vai, na verdade, acentuar regionalismos que já existiam. É importante salientar que não havia um sentimento de unidade. Mesmo quando foram formadas as Juntas provinciais, os deputados enviados às Cortes não representavam o Brasil, eles representavam suas próprias províncias e defendiam seus interesses locais. Em “Preciso”, a “pátria” a que José Luís de Mendonça se refere é o seu lugar de nascimento, a província de Pernambuco.

No início da década de 20, vai-se defender a “constituição de um corpo legislativo em território brasileiro, paralelo ao Congresso de Lisboa” cuja justificativa maior, como foi dito acima, estará na manutenção da unidade tanto brasileira, quanto do reino luso-brasileiro. As elites nortistas, no entanto, viam na formação de uma Assembléia a chance de se verem livres tanto do sistema colonial imposto por Lisboa, quanto pela subordinação que deviam à Corte no Rio de Janeiro. Como a Lúcia nos fala, a Assembléia Constituinte não visava, de fato, uma separação entre Brasil e Portugal, mas tinha lá sua ousadia, pois previa o direito de o Brasil fazer suas próprias leis.

O problema central dos debates entre os deputados do Brasil e de Portugal se tornou a questão da autonomia. Assim, em Outubro de 1821, Dom João assina um decreto proposto pelas Cortes na sua primeira tentativa de organização do Império Português. Este Decreto de Outubro de 1821 transformava as capitanias em províncias e depunha todos os governadores nomeados por D. João; as províncias, quando formassem as Juntas Provinciais, seriam reconhecidas legitimamente e seriam estas Juntas as responsáveis pelo controle dos governos regionais. Como afirma Márcia Berbel, esta possibilidade de os governos provinciais serem escolhidos pelos âmbitos regionais é um nível de autonomia inédito, não conhecido pela “América Portuguesa durante todo o período colonial”.

Também como nos mostra Márcia Regina Berbel, a província de Pernambuco, que já tinha tido uma experiência na formação de Juntas para o governo local com o movimento revolucionário de 1817, aceitou a implementação do Decreto de Outubro de 1821 quando este ainda era um projeto e estava em fase de discussão. O Decreto não só permitia a destituição do governador nomeado por D. João VI que se mostrava contra à eleição de uma Junta Provincial em Pernambuco, mas também anulava a existência do Reino do Brasil, a partir do momento em que eliminava as funções centralizadoras do Rio de Janeiro e exigia o retorno de D. Pedro, cuja permanência no Brasil aterrorizava os portugueses, uma vez que se D. João VI morresse, o herdeiro estaria aqui. Assim, é possível entender com clareza o que Evaldo propõe: mesmo se os deputados não lutavam por uma separação, ainda sim, não é possível pensar que priorizavam a unidade do Brasil, pois como ilustra o exemplo acima, o decreto aceito pelos pernambucanos destruía o papel centralizador do Rio, reforçando a autonomia para cuidarem de seus problemas internos e as escolhas de governos em âmbito local. O que eles buscavam eram o autogoverno e os princípios liberais, uma constituição e a representatividade, o que Evaldo chama de “precondição do triunfo do federalismo”.

O Decreto, porém, não era de todo perfeito. Ele apresentava uma dubiedade: ao mesmo tempo em que fortalecia a autonomia regional, ele abria uma possibilidade de intervenção do governo central, uma vez que o controle das armas nas províncias seria feito diretamente pelo governo central de Lisboa. Essa brecha, ao lado de outros fatores, como o envio de soldados para Salvador sem o consentimento dos deputados baianos, a impossibilidade de qualquer solução definitiva para a questão brasileira e sua união com o Império Português sem ser uma relação de subordinação e o “parecer da Comissão sobre os Negócios do Brasil acerca dos procedimentos da Junta de São Paulo e dos últimos atos do príncipe regente”, foram vistos e considerados como medidas retrógradas, que contribuiriam para a volta do antigo estado colonial do Brasil. Assim, uma aproximação entre os deputados das diferentes províncias e uma aliança à política de D. Pedro foi acontecendo muito mais porque o Congresso de Portugal era um fator comum que a todos eles desgostavam, do que por um possível sentimento de “brasileirismo”. Para se ter uma concretude da possibilidade de um regime federalista para o Brasil, João José Reis em seu panorama de revoltas baianas entre o período de 1824 e 1838, vai nos mostrar que em 1831 e 1832 ocorreram duas revoltas federalistas em São Felix, sendo uma das poucas revoltas com uma proposta de programa a ser cumprida a longo prazo, - fato que indica uma certa organização destes grupos que vão contra uma unidade política sob a hegemonia exercida pelo Rio de Janeiro.

O que os três autores tentam nos passar é que, ao contrário do que uma historiografia mais fiel ao discurso original do período da Independência tenta nos dizer, a independência do Brasil não foi resultado de um sentimento comum a todas as regiões que queriam se ver livres das garras metropolitanas de Portugal, muito menos de “uma consciência nacional profunda”. Algumas províncias estavam muito mais ligadas ao governo português do que à Corte no Rio de Janeiro (na Proclamação do Novo Governo de Pernambuco, os portugueses são considerados irmãos e a discórdia entre portugueses e os habitantes da província foram causados por “sementes de discórdia”) e uma aspiração a um autogoverno constituía um projeto federalista que tinha tudo para acontecer, mas que por causa de um “jogo de ações e reações entre as Cortes portuguesas e as elites do Novo Mundo”, a independência foi o resultado de “um processo que evoluiu no dia-a-dia”. Não é a toa que ela foi concebida para cada um num momento diferente e o sete de setembro não teve grandes significados para os contemporâneos do grito do Ipiranga.

O embate entre os ideais e a realidade política durante as independências da América Latina

Ao longo do curso de América Independente I foi possível sentir o grande dilema pelo qual a América Hispânica passava durante os processos emancipacionistas. Com as lutas independentistas, foi-se tornando explícito uma série de divergências internas que antes eram mascaradas pelo seu estado colonial de uma única metrópole. O que fazer depois da independência se tornou a grande questão e os problemas internos tiveram uma importante significação nos processos de delimitação de fronteiros e formação de identidade nestes países recém-formados.

As ideias de equilíbrio e de unidade (ou onipotência como Maria Lígia) percorreram de maneiras diferentes todos os autores explorados durante o curso. No entanto, seus projetos políticos permaneceram no campo das ideias e foram, em geral, mal vistos e combatidos por outros grupos que também faziam parte dos processos emancipacionistas e tinham uma outra opinião do que fazer e como fazer depois da independência.

No caso de Sarmiento, esse choque entre o que se projeto e idealiza e os problemas surgidos, ou agravados, pela independência fica bastante explícito. Há uma tensão muito grande entre um projeto unitarista defendido por Sarmiento e uma realidade de forças locais que vai unificar a Argentina por meio da supremacia militar e uma sequencia de domínio de caudilhos que vai se impor com o fim da Confederação Rosista. Em seu livro Facundo, Sarmiento personaliza na figura de Rosas tudo o que a ele se opõe: desde o caudilho federalista até o selvagem.

Artigas, por outro lado, é mais radical quando defende um movimento mais voltado para o sentido de lutar por uma independência em favor de melhorias sociais. No entanto, o que aqui nos interessa é o seu projeto de formação de uma confederação numa realidade de tensão entre unitaristas e federalistas. O projeto apresentado pelos deputados da Banda Oriental na Assembleia em Buenos Aires de inspiração artiguista nos deixa claro um projeto político que defende uma confederação que mantenha a soberania e autonomia de cada província, mas cuja união garanta segurança recíproca e trate de assuntos de preocupação comum, como a questão da divisão de terras. Este projeto, porém, não vingou e o Uruguai se tornou um Estado independente, coisa que Artigas nunca defendeu, muito mais por causa da incapacidade do Brasil e da Argentina fazerem um acordo sobre a dominação do território.

Símon Bolívas nos mostra na sua Carta de Jamaica um projeto político (e não um sonho) bastante otimista de uma América unica. Ele faz uma análise, um panorama geral da situação da América Hispânica e seus processos de independência e com argumentos bastante fortes defende sua posição anti-democrática e explicita as vantagens de uma América unida como ele propõe. No entanto, a realidade política em que ele se encontra vai gradativamente tirando-o e afastando-o do poder. Por isso que, em 1830, Bolívar escreve agora uma carta amargurada e pessimista em relação ao futuro da América.

A partir destes exemplos é possível entender porque a Maria Lígia diz que "a idéia de onipotência dos líderes não se coadunava com os (...) problemas que as lutas de independência haviam colocado". Mesmo com projetos às vezes bem formulados, as tensões internas não favoreceram nenhuma das propostas de uma América unida. Alguns destes homens, como Bolívar e Artigas, serão, inclusive, usados como referências em discursos de construção de identidade destas nações, mas seus projetos políticos, ao lado dos de Sarmiento e Cecilio del Valle, perderam para as tensões internas e as forças locais que ganharam forças com os processos de independência.

Nada mais conservador do que um liberal no poder...

Essa foi a resposta da terceira questão da prova. A partir de uma afirmativa retirada de um livro de Ilmar Rohloff de Matos, a pergunta era se a autora Mirian Dolhnikoff concordava ou não com tal afirmação. Só para constar, esta foi a questão sorteada, e fiquei com 9! Minha melhor nota do semestre.

Não, Mírian Dolhnikoff não concorda com esta afirmação de Ilmar. Logo no início de seu texto, ela vai dizer que não vê esta oposição nítida entre liberais e conservadores como sendo também uma oposição entre descentralização e centralização, respectivamente. Seu texto nos mostra como que um projeto político que unisse todas as províncias sob um mesmo governo central também fazia parte dos projetos liberais e o que diferenciava, de fato, liberais e conservadores eram pontos específicos de como essa política seria implantada.

Os liberais procuravam através do fortalecimento do poder local favorecer e viabilizar a unidade do Estado Nacional. Devido as dificuldades de comunicação e a montagem de uma ‘’ampla rede de funcionários que levassem sua autoridade [do Estado Nacional] a todas as diversas e dispersas localidades’’ (pág. 85), os liberais procuraram conciliar autonomia local com uma política centralista. Esta tentativa conciliatória foi acontecer através da figura de Juiz de Paz, a brecha encontrada pelos liberais na política centralista do Primeiro Reinado. Como Mirian o chama, o juiz de paz era um ‘’homem poderoso na localidade’’, pois lhe eram atribuídas muitas funções, pois ele tinha, entre outras atribuições, a de controlar o processo eleitoral através da decisão de quem teria o direito de voto; apesar de todo este poderio local, havia a preocupaçao de mante-lo sob algum controle do governo central. Um outro exemplo das medidas centralizadoras tomadas pelos liberais foi a Guarda Nacional, que surgiu com a intenção de manter a unidade nacional diante das grandes turbulências que marcaram o período.

A emenda institucional aprovada em 1834, também chamada de Ato Adicional, veio a ‘’tornar realidade o pacto federalista defendido pelos liberais’’. A proposta da emenda trazia mudanças profundas na organização política vigente desde o Primeiro Reinado, entre as quais: a extinção do Poder Moderador e do Conselho de Estado, o fim da vitaliciedade dos senadores e, finalmente, a criação das Assembleias Legislativas Provinciais, sendo estas ultimas as responsáveis pela eleição do Regente. A Mírian enfatiza o radicalismo deste projeto federalista que defini que a escolha do chefe do Executivo seja feita pelas províncias. Ao fim dos debates, os liberais perderam em relação aos senadores, que continuaram com o mandato vitalíceo, mas ganharam com o fim do Conselho de Estado e com a ‘’eleição do regente nas mãos dos grupos provinciais’’ (pág. 94) não através da eleição pelas Assembleias Legislativas Provinciais, mas pelos mesmos mecanismos de eleição dos deputados.

Um grande opositor das reformas implicadas pela emenda foi o visconde de Cairu, que dizia que a criação das Assembleias destruiria a soberania nacional em favor de uma soberania provincial (pág. 95). O Padre Feijó, no entanto, via na mesma crescente autonomia provincial, uma unidade nacional na medida em que um sentimento patriótico emergia daqueles que, agora, se viam no direito de participar ativamente da política do Estado (pág. 100).

Em 1840, porém, com a perda da hegemonia dos liberais que vinha ocorrendo desde a renúncia do Padre Feijó, a ala conservadora veio a aprovar a Interpretação do Ato Adicional, o que a historiografia mais tradicional, na qual se inclui Ilmar, tende a explicá-la como uma reforma conservadora opondo-a ao Ato Adicional, uma lei liberal. A Miriam vai nos mostrar, no entanto, que a Interpretação não muda radicalmente o Ato como se propõe. Na verdade, os conservadores não se mostravam contra o projeto do pacto federativo, o que eles propunham era torná-lo ‘’mais possível’’ revisando alguns artigos do Ato que não estavam claros e, portanto, não viabilizando o projeto inicial federativo. Eles estavam se referindo ao aparato judiciário que estava confuso no Ato colocando em risco a unidade nacional e, por isso, precisava de uma revisão. Tinha ficado claro para eles que o Juiz de Paz não estava funcionando como o esperado e estava trazendo problemas tanto para os governos locais quanto para o governo central. Além disso, o direito de cada província decidir sobre os seus funcionários estava confuso e, por isso, a província estava legislando sobre empregados reais, pois entendiam que a subordinação do funcionário estava ligada ao local onde estava empregado. No parágrafo 7, artigo 10 do Ato Adicional, está escrito: ‘’[...] São empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos municípios e províncias, á exceção dos que dizem respeito á administração, arrecadação e contabilidade da Fazenda Nacional; à administração da guerra e marinha, e dos correios gerais; dos cargos de Presidente de Província, Bispo, Comandante Superior, e empregados da Faculdade de Medicina, Cursos Jurídicos e Academias [...]’’. Todos os outros possíveis funcionários do Estado que não se encontram nesta lista e se encontravam na província, eram considerados funcionários provinciais.

Não é a toa que os conservadores, nesta proposta de não confrontar o Ato Adicional, apenas ajustá-lo, contaram com o apoio de políticos que, em 1832, defenderam a reforma federativa. Aqui, talvez mais do que em outros momentos, fica claro que a oposição entre conservadores e liberais não está em descentralização e centralização, pois o cerne de projeto político para ambos os grupos é o mesmo – o arranjo federativo; a Mirian propõe, então, que a disputa entre eles fica muito mais no campo dos cargos políticos do que, de fato, numa ideologia ou num projeto político.
Com a aprovação da Interpretação, a centralização do Judiciário se concretizou, mas essa centralização não tornou insignificante a autonomia provincial, ela continuou existindo apesar de uma limitação desta autonomia que era um tanto radical em seu projeto de origem. Em alguns âmbitos, como o tributário, a força policial, as obras públicas e, inclusive, o direito de legislar sobre os empregos municipais e provinciais, a autonomia continuou existindo e, diferentemente de antes, não ameaçava mais a unidade nacional, coisa que nunca deixou de ser o foco de ambas as lideranças em seus projetos de Ato Adicional e a sua respectiva Interpretação.

A Mirian vai explicar que essa oposição radical e antagônica entre os conservadores e os liberais nasceu dos debates políticos que ocorriam entre eles durante a revisão da emenda constitucional no parlamento. Os liberais acusavam os conservadores de não se importarem com os interesses provinciais e, por outro lado, os conservadores acusavam os liberais de um ‘’excessivo e até irresponsável comprometimento com o poder local, a ponto de ameaçarem sacrificar sem medo o próprio Estado Nacional’’ (pág. 142). O que acontecia, na verdade, é que os liberais sabiam que sua causa era perdida, mas tentavam adiar ao máximo a votação, insistindo que o projeto de Interpretação alteraria radicalmente o Ato. Disso surgiram os acalorados debates cuja retórica materializou uma visão que a historiografia adotou como explicativa para a oposição partidária do período.

Regrinhas para notas de rodapé

Eu estou postando isso aqui porque precisei, achei esse site e achei muito útil! Assim, fica aqui para próximas consultas e para quem mais precisar.

Uso do: idem, ibidem, apud, op. cit., et seq., loc. cit., passim, em nota de rodapé

1 Para fazer referência, subseqüente, de um mesmo autor, usa-se idem.
Ex.:
1 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 15.
2 idem.

2 Para fazer referência, subseqüente, de um mesmo autor, em página diferente, usa-se ibidem.
Ex.:
1 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 15.
2 ibidem, p. 25.

3 Para referenciar um mesmo autor, após terem sido referenciados outros autores, usa-se op. cit.
Ex.:
1 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 15-17.
2 PAPALEO, Celso Cezar. Aborto e contracepção: atualidade e complexidade da questão. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 278.
3 CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplantes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 300.
4 MONTEIRO, Washington de Barros, op. cit., p. 36 et seq.
5 PAPALEO, Celso Cezar, op. cit., loc. cit.
6 MOTA, Sílvia. Testemunhas de Jeová e as transfusões de sangue: tradução ético-jurídica. In: GUERRA, Arthur Magno Silva e (Coord.). Biodireito e bioética: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, passim.

Explicação do item 3***
loc. cit. (locus citatum) = local citado. No exemplo do item 5, significa que a obra do autor Celso Cezar Papaleo foi anteriormente citada (no item 2), na mesma página (p. 278).
et seq. (et sequentia) = e seguintes. No exemplo do item 4, significa que a obra do autor Washington de Barros Monteiro foi anteriormente citada (item 1), desta vez às páginas 36 e seguintes.
passim = aqui e acolá. No exemplo do item 6, significa que a obra de Sílvia Mota foi citada em diferentes partes, aqui e acolá.

4 Para referenciar um autor (a cuja obra o pesquisador NÃO teve acesso) que está indicado num livro ao qual o pesquisador TEVE acesso, usa-se apud.
Ex.:
1 SUTTER, Matilde Josefina apud CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplantes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 136.
2 BUTERA apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 6, p. 80.
3 MAXIMILIANO, Carlos apud MONTEIRO, Washington de Barros, ibidem, p. 184.
4 ORGAZ, Alfredo, apud CHAVES, Antônio, op. cit., p. 86.

Explicação do item 4***
a) na referência n. 1 o pesquisador NÃO TEVE ACESSO à obra de Matilde Josefina Sutter, que foi CITADA por Antônio Chaves em seu livro Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplantes, ao qual o pesquisador TEVE ACESSO;
b) na referência n. 2 o pesquisador NÃO TEVE ACESSO à obra de Butera, que foi citado por Washington de Barros Monteiro em seu Curso de direito civil: direito das sucessões, ao qual o pesquisador TEVE ACESSO;
c) na referência n. 3, o pesquisador NÃO TEVE ACESSO à obra de Carlos Maximiliano, que foi CITADO por Washington de Barros Monteiro na obra JÁ REFERIDA no item anterior, em página diferente;
d) na referência n. 4, o pesquisador NÃO TEVE ACESSO à obra de Alfredo Orgaz, que foi CITADO por Antônio Chaves na obra JÁ REFERIDA, no item 1, em página diferente.

O passado é sempre melhor que o presente?

Dando continuidade a minha vida cultural eu fui ao Shopping Eldorado para passear. Se eu tivesse dinheiro, também teria dado continuidade ao meu lado burguês e consumista. O shopping é bastante bonito e também é novidade para mim. Fui a passeio de namorado e ele me levou ao cinema. Assistimos "Meia-noite em Paris" e foi mais ou menos uma surpresinha porque não sabíamos absolutamente nada sobre ele, só uma indicação de uma amiga minha. Enfim, o filme é surpreendente. Ele conta a história de um escritor, protagonizado por Owen Wilson, que pensa que se vivesse nos anos 20 em Paris seria mais feliz. Ele poderia levar aquela vida boêmia ao lado de grandes intelectuais como Ernest Hemingway, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Scott Fitzgerald, etc. Até que, sem querer, ele viaja no tempo e vai parar onde ele tanto queria e acaba conhecendo todas estas figuras e tantas outras. Para sua surpresa, no entanto, ele conhece neste tempo paralelo uma garota belíssima que diz que os anos 20 são chatos, deprimentes e que adoraria ter vivido na Belle Èpoque. Uma noite, caminhando com ela por Paris, os dois viajam para Paris de 1890 e conhecem outros intelectuais da época, que também reclamam do tempo em que vivem e dizem que a verdadeira Golden Age foi a Renascença!

Durante este semestre um dos cursos que eu acompanhei foi História Moderna I. Por mais que tivéssemos percorridos temas diferentes referentes ao período, houve um que nos seguiu o curso inteiro e toda a documentação com a qual trabalhamos. Os homens do Renascimento buscavam a inspiração nos clássicos, o período medieval havia sido um tempo de obscurantismo que deformou os antigos e seus ensinamentos. Nunca houve uma cópia da Idade Antiga, mas este pulo de quase mil anos ao passado lhes dava uma concepção de tempo particular a eles, ao contrário da crença medieval de que o tempo era imutável. Eles se viam como agentes capazes de transformação. Buscava-se nos clássicos ensinamentos que lhes ajudassem a transformar a realidade presente em que viviam em algo melhor. Suas maiores referências são Xenofonte, Cícero, Platão e outros filósofos da Antiguidade.

Na nossa realidade, é comum vermos os desenhos e as brincadeiras das crianças de hoje e pensarmos que a nossa infância foi muito melhor. Por sua vez, nossos pais e avós nos dizem a mesma coisa! Outro erro comum é a ilusão de que "antigamente" não havia violência. Para o senso comum a violência é algo atual, como se nos anos 60 e 70 não houvesse uma violência escondida por quatro paredes; como se nos anos 40 também não houvesse violência dentro dos campos de concentração; como se na passagem do século XIX para o XX o cangaço não resolvia seus conflitos políticos por meio da força; ou então, voltando um pouco mais para trás, as famílias reais do Antigo Regime não se matavam por questão de poder. Definitivamente, matar pai, mãe e irmão não é um fenômeno atual. Poderia-se voltar muito mais atrás quando não existia direitos humanos ou mídia para divulgar a violência como nos faz o Datena; a violência no Coliseu era apreciada e os gladiadores aplaudidos. Ainda na Roma Antiga, quando os maridos chegavam depois de muito tempo em guerra e não reconheciam seus filhos, a criança era deixada dentro de um vaso no telhado da casa até morrer e, se a criança já era maiorzinha e o choro fosse incomodar, ela era deixada no meio da floresta. Por isso que não tem sentido nenhum dizer que antes as pessoas eram mais felizes porque a realidade não era tão violenta como é agora! O mundo sempre foi cruel, mas a violência se apresenta de maneiras diferentes de acordo com o tempo.

O passado, no entanto, para os homens de todas as épocas parece ser melhor. Está no nosso imaginário idealizado de que nossa realidade é ruim e que seríamos mais felizes se voltássemos no tempo ou que éramos mais felizes quando crianças. Talvez porque queremos lembrar só das coisas boas e esquecemos dos aspectos negativos que percorreram estas épocas. Estuda-se e admira-se épocas passadas porque a história é, entre outras coisas, uma fonte de curiosidades, por isso ela parece ser tão interessante. Os homens discutindo política nas Ágoras, os gladiadores lutando contra tigres, os francesas fazendo a revolução... Tudo parece ser muito belo enquanto se limita em imagens e palavras em livros.
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Eu mandei um email comentando sobre a minha ida ao cinema e observações que eu fiz sobre o filme para a minha professora de História Moderna. Achei tão linda a resposta dela que resolvi publicá-la aqui para eu não perdê-la na minha caixa de email!

Fico feliz por compartilhares essas especulações. Realmente, foi sendo
construída, ao longo dos séculos, principalmente após o homem ter
descoberto que costumes e hábitos são produtos históricos, uma certa
nostalgia em relação ao passado. O ontem aparece como modelo positivo
e melhor se comparado com o presente vivido. A questão central está no
fato de o "presente" ser percebido negativamente porque se está a
viver, a sentir na pela a pressão do estar vivo e na tensão das
decisões momentâneas. Se foi na antiguidade o início de tais
especulações, será na Época Moderna que elas terão aprofundamento
filosófico e, por sua vez, antropológicos e sociológicos. Vês como a
Época Moderna é fundamental? Nela se encontram todos os elementos da
argamassa que solidificou o edifício da História Contemporânea.

As facções políticas, a população, a Balaiada e a Revolta dos Cabanos

No meio do semestre, a professora de Brasil Independente nos deu, em uma semana, três questões para a gente estudar. Na semana seguinte ela sortearia uma das três questões que seria a prova. Foi uma semana em que eu estudei demais para fazer as três questões muito bem feitas e tirar mais que sete para não ter que fazer uma segunda prova no fim do semestre. Deu certo, tirei 9 na questão 3, que foi a sorteada. A que transcrevi abaixo foi a questão 2, a mais difícil na minha opinião.

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Durante seu processo de Independência, o Brasil enfrentou muitas revoltas especialmente nas suas províncias do norte. Estas revoltas, muitas vezes, tinham como pano de fundo uma conjuntura socioeconômica carente e uma política bastante confusa. Por causa disso, não é raro encontrar nas revoltas que ocorreram durante este período uma mistura de gente dos mais diversos grupos sociais lutando por ideais que divergiam numa disputa de jogos de interesses tanto por parte dos aliciados, quanto por parte dos aliciadores.

Um grande historiador baiano João José Reis vai mostrar que a realidade em que vivia a população das camadas mais pobres, inclusive os escravos libertos, era bastante caótica. A crise pela qual o atual nordeste passou foi significativo para a baixa qualidade de vida em que viviam essas pessoas. A queda da agro exportação, a espoliação que as províncias sofriam pelo Rio de Janeiro, o crescente nível de desemprego, o descompasso entre o aumento dos preços e do salário, entre outros fatores, como no caso da Bahia, que sofreu com uma forte inflação causada pela falsificação das moedas de cobre, tudo isso contribuía para que as camadas mais pobres sofressem com a fome e com a falta de condições básicas.

Eram estas as pessoas aliciadas pelas elites locais e partidos políticos. Pode se ver nos dois trechos sobre a Revolta dos Cabanos e a Balaiada, respectivamente, que por mais que as críticas de violência e vandalismo sejam dirigidas ás pessoas em geral que fazem parte da revolta, a culpa principal aparece como sendo de facções políticas, os restauradores, no caso dos Cabanos, e os liberais, na Balaiada. Marcus J. M. Carvalho vai dizer que a participação de índios, negros e pardos na história militar do Brasil vem desde o período colonial. Um discurso vazio, de liberdade e promessa de mudança nas condições de vida, em casos mais extremos de liberdade dos escravos, faz essa gente ser o contingente quantitativo das lutas entre as elites locais.

É passível de observação o texto de Domingos José Gonçalves de Magalhães no trecho em que se refere ao líder da revolta da Balaiada: ‘’[...] apresentou-se um certo Raymundo Gomes, homem de cor assaz escura, acompanhado de nove de sua raça [...]’’. João José Reis vai questionar em seu texto até que nível de consciência a elite vai ‘’racializar’’ os movimentos revoltosos populares. Se antes o agente catalisador das revoltas era o antilusitanismo, a necessidade comercial de boas relações com os portugueses, a Independência do Brasil e a abdicação de D. Pedro, vai trazer à consciência das camadas mais pobres que o problema não estava nos portugueses ou na colonização portuguesa, mas numa oposição entre ricos e pobres. Racializar a consciência popular seria garantir a propriedade individual e concentrar a ‘’culpa de todos os males’’ nos negros livres e libertos.

As disputas entre estas elites locais que armavam os pobres e até os escravos para lutarem a favor de seus interesses políticos particulares, trazia o risco de conscientizar esta camada que começaria a lutar pelos seus próprios interesses, pois como diz Marcus J. M. de Carvalho, os homens armados pelas camadas dominantes poderiam aprender a mudar com a experiência. Não é a toa que muitos deles viam no processo de recrutamento uma possibilidade de mudança. Os escravos, por sua vez, encaravam este momento de lutar pelo seu senhor como um meio de obter vantagens. Sem dúvidas, empenhar uma arma em momentos de atrito era uma experiência transformadora, J. M. de Carvalho vai dizer.

A Revolta dos Cabanos é um, entre tantos outros possíveis exemplos, do quanto a experiência nas batalhas é transformadora. Se de início a revolta começou sob a chefia da elite restauradora que defendia o retorno de D. Pedro a fim de recuperar seus privilégios políticos, aos poucos ela vai passar para as mãos do povo que, sob uma liderança (e não uma chefia) vai transformar o movimento, inicialmente de oposição entre facções elitistas, em uma revolta popular. Marcus J. M. de Carvalho descreve a diferença entre chefe e líder, sendo este último, ao contrário do primeiro, aquele que conquista seus seguidores e lhes transmite uma admiração. Na Revolta dos Cabanos, podemos dizer que a liderança de Vicente de Paula foi tamanha que teve sob seu comando os mais diversos segmentos sociais, entre eles escravos fugidos, pobres e índios. A revolta chegou a um ponto que saiu do controle das elites, principalmente quando começou a fazer parte dela os seus escravos fugidos. É importante lembrar que o medo do Haiti ainda reinava e, não era importante só não armar seus cativos, mas também como manter uma estabilidade política para não haver brechas para levantes ou revoltas que contradizessem a ordem.

A Balaiada, por sua vez, não fugirá a regra. Desta vez, a revolta que já começou nas camadas mais populares, sob a liderança do vaqueiro Raymundo Gomes, vai também adquirir grandes proporções em relação à adesão dos diversos grupos sociais e a associação com as disputas dos partidos políticos locais. Porém, o grupo revoltoso se aliará ao partido da ala liberal, os bem-te-vis, que terá como chefe político o líder da revolta, Raymundo Gomes.

Em ambos os casos tivemos indivíduos que através da luta armada se destacaram e viraram líderes; exemplos de como a experiência de empunhar armas é transformadora para os indivíduos que vêem nela a oportunidade de deixarem de serem qualquer um para virarem um líder e/ou um chefe político.

Para concluir, é importante salientar o que João José Reis chama de falta de conteúdo das reivindicações. Quase todos os movimentos tiveram alguma relação com partidos políticos. Em sua grande maioria, as revoltas tinham uma direção política mais liberal e a Revolta dos Cabanos se mostra como uma exceção a regra. No entanto, o que quero dizer é que o lado político que eles defendiam e pelo qual lutavam, de fato, pouco importava. Na Revolta dos Cabanos, eles continuaram defendendo a restauração em favor da política de D. Pedro mesmo após a sua morte. Isto mostra que, na verdade, as revoltas aconteciam muito mais pelas conjunturas sociais, políticas e econômicas problemáticas em que viviam essa população, como nos mostra João José Reis, do que por uma ideologia política. A população era aliciada através de um jogo de interesse, aliava-se a quem mais poderia oferecer. A identidade liberal ou conservadora da revolta faz muito mais parte da retórica de um discurso um tanto quanto vazio das facções elitistas, do que o motivo pelo qual estas camadas mais pobres da população vão, de fato, lutar.