A Assombração da Casa da Colina: quando os fantasmas que nos perseguem somos nós mesmos

Parece que pipocaram clubes de leitura. Se reunir para discutir um livro me parecia tão coisa de filme americano. As senhorinhas donas de casas sentadas em poltronas numa sala confortável, conversando e trocando ideia sobre a mais recente leitura, comendo cookies e brownies... Em Lost, o episódio que apresenta com mais detalhes quem eram os outros, mostra os habitantes da ilha reunidos e discutindo o livro Carrie, de Stephen King, quando são interrompidos pela queda do avião dos nossos adoráveis protagonistas.

Ainda não me reuni presencialmente para discutir nada (só em salas de aula), mas minha bolha de perfis das redes sociais tem me apresentados clubes de leitura que propõem discussão online (o que faz muito sentido, considerando a quarentena). O fato é... O primeiro clube de leitura que entrei foi do site/revista  Valkirias, onde discutimos Sobre os Ossos dos Mortos. Agora, entrei em mais um, do site/revista Querido Clássico. Eu adorei a proposta de ler clássicos do terror no mês do Halloween e, por isso, a leitura coletiva deste mês é A Assombração da Casa da Colina, da autora norte-americana Shirley Jackson e publicado em 1959. Eu não conhecia o livro, tampouco a autora. Já tinha assistido a série da Netflix, A Maldição da Residência Hill, que eu gostei bastante, mas não sabia que tinha sido inspirada pela obra de Jackson. 

É um livro de leitura rápida, pouco mais de 200 páginas, que eu li em três dias numa viagem que fiz ao interior de São Paulo. Coincidências da vida, mas viajamos à região da Cuesta, em Botucatu, formada por grandes morros. Alugamos uma casinha pelo Airbnb e ficava bem no topo, com um mirante maravilhoso. Na primeira noite de leitura, ventava muito e, por ironia das deusas da leitura, estava eu lá lendo sobre a Casa da Colina. 

Anedotas curiosas a parte, gostei muito da leitura, mas pensava que eu não teria muito o que falar sobre este livro porque "não era uma história tão profunda" e que "ultimamente tenho lido obras tão densas, que esta é fichinha". Acabei pagando minha língua. 

O terror, na obra de Jackson, não está no campo do paranormal. Fantasmas, monstros, sustos não existem neste terror. O que existe é a tensão psicológica da protagonista, Eleanor, em saber quem é e qual o seu lugar na sociedade. Quando eu era criança, meu pai me dizia "não tenha medo de espíritos, é dos humanos que temos que ter medo". Essa é a grande lição do livro. 

As personagens aguardam ansiosamente uma atividade paranormal. Querem ser testemunhas de algum fenômeno inexplicável, mas no fundo, o que se passa na cabeça de Eleanor é o medo de como está sendo julgada pelos seus colegas, o medo de saber o que eles pensam dela. Se a casa é mal assombrada ou não, o medo da casa é contaminado pelo medo de parecer que tem medo e, por isso, a afirmação constante de "eu não senti medo". O curioso, no final, não é o medo de a casa não deixá-la ir embora. O medo é, de fato, ir embora. 

Quando a tensão aumenta e parece que estamos próximos do clímax, a chegada da esposa do Dr. Montague muda tudo. A dubiedade de sua crença no paranormal e, ao mesmo tempo, seu ceticismo, desestabiliza a conviccção de que a casa é realmente mal assombrada e, aí sim, percebemos que o problema está não na materialidade da residência, mas sim na cabeça de todos eles. É um livro que joga muito com a dualidade de expectativa versus realidade. O quanto daquilo que apuram os sentidos das personagens é real e o quanto é imaginação? O quanto o medo é do paranormal e o quanto é do julgamento do outro - outro de carne e osso. 

Pesquisando mais sobre a autora e a obra, vi que Shirley Jackson foi contemporânea de outros autores norte-americanos clássicos, como Philip Roth. Adeus, Columbus, inclusive, concorreu junto com A Assombração da Casa da Colina, pelo National Book Award. O primeiro livro ganhou, assim como Philip Roth é muito mais conhecido e Shirley Jackson foi ficando... Vamos dizer assim... Um pouco apagada. 

E no final, assim como os protagonistas de Roth buscam sua identidade e saber quem são no meio em que vivem, também Eleanor, de Jackson, está procurando seu lugar. Só que é uma mulher, que viveu até depois dos 30 anos cuidando de sua mãe julgadora, pouco amável e recentemente falecida, sem um lugar próprio, vivendo às custas e à sombra de sua irmã. A Casa da Colina é um lugar onde ela pode pensar em ser ela mesma, longe do julgamento da irmã e do cunhado, fazer amizades com outras pessoas... Mas a insegurança e o medo do olhar do outro são de fato o que a assombram. 

Gostaria de conhecer mais Shirley Jackson e suas protagonistas. Em um artigo publicado no The Guardian na ocasião da estréia da série da Netflix, a autora diz como Jackson sentia-se sufocada e oprimida pela sua vida familiar - mãe, marido e a faceta dona de casa. Ao fato, acrescenta-se como, ao contrário de autores como Philip Roth, Saul Bellow e John Updike cujas obras foram associadas à seriedade e profissionalismo, Jackson foi relegada ao plano da dona de casa, habilidosa com a escrita, mas cuja obra era um pouco "emocionadinha". 


Depois de ter terminado, voltei ao livro e reli a primeira página que funciona como uma introdução. O quanto a Casa e todo seu equilíbrio, assoalhos firmes, paredes em pé, portas "sensatamente" fechadas e, ao mesmo tempo, tão "desprovida de sanidade" não são as nossas próprias amarras sociais? Uma sociedade de bases institucionais sólidas, existentes há tanto tempo no passado e tão mais no futuro, também desprovida de sanidade: sufocando e oprimindo os que nela habitam (neste caso, exemplificado por Eleanor, uma mulher em seus trinta, procurando seu lugar e aprovação no mundo). Mas aí, talvez eu já esteja viajando demais!!

De qualquer maneira, é importante ler A Assombração da Casa da Colina situando-a em seu contexto temporal e social. Percebemos assim como a obra expressa magistralmente sob uma narrativa de terror e suspense problemas do feminino da época de 60 e, ainda, tão atuais - sem cair do pedantismo de um feminismo raso e escandaloso. 

(Ainda não foi o encontro de leitura, certamente haverão outros pontos interessantes!)

3 comentários:

  1. Acho que a gente tá muito sintonizada mesmo, minha amiga ontem publicou um artigo sobre Nós sempre vivemos no castelo, que eu gosto até mais que A Assombração
    https://medium.com/revista-subjetiva/sempre-vivemos-no-castelo-e-o-poder-da-d%C3%BAvida-82f0f4e91cd5
    Meu primeiro contato com a Shirley Jackson foi quanto eu tava na letras e tive que ler um conto dela. Eu não sabia nada sobre o assunto nem a autora, mas fiquei abismada. O conto é A Loteria, curtinho e fácil de achar na Internet mesmo.
    Eu não vi a série ainda, mas todo mundo recomenda demais 😊

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahahahahahaha aqui é Camila que tava conversando com você no twitter, é que Cachorros foi a conta que eu criei só pra ver um negócio no no blogspot 🤣

      Excluir
    2. Camila, estou adorando suas indicações! rsrs Já coloquei Nós sempre vivemos no castelo na minha wishlist. E vou ver esse conto. Muito curioso esse caso da sintonia, né. As vezes me sinto tão sozinha, sem poder comversar sobre as leituras/ ideias que estou tendo. Mas na verdade, elas não surgem por geraçao espontânea, elas estão circulando por aí. Só preciso olhar com mais atençao onde elas estão aparecendo com mais nitidez.

      Excluir