Senhor das Moscas: de uma primeira impressão morna para um dos livros mais legais que já li

O Senhor das Moscas mexeu comigo. Assim como assombrou Simon, me deixou também muito chocada.

Eu li a resenha já fazia um bom tempo. Talvez ano passado, não sei com certeza, mas foi nesta Black Friday que eu comprei. Na versão e-book estava menos de 10 reais e nem considerei não comprar. Um grupo de crianças sobreviventes de uma queda de avião em uma ilha deserta? Eu achei "UAU", não tinha como ser ruim para uma fã de Lost. Escrito pelo escrito inglês William Golding e publicado em 1954, o livro traz múltiplas possibilidades de leituras e metáforas... Abaixo, segue um pouco sobre as minhas reflexões. (Trata-se de uma reflexão sobre todo o livro, inclusive o final. Não é uma resenha. Se você tem a intenção de ler este livro um dia e não quer spoiler, não continue.)

Antes de "O Jardim Secreto", o último livro que li com personagens infantis foi o de contos de Silvina Ocampo, chamado "A Fúria". Foi um livro incrível, nada infantil. Apesar dos personagens crianças, os contos são bastante obscuros, desconfortáveis. Há uma "maldade", uma "falta de inocência", talvez até um sadismo infantil que perpassa a vida cotidiana e nos deixa muito chocados. Quando comecei a ler Senhor das Moscas, pensei em encontrar algo do tipo. 

Por isso uma decepção enorme até a metade do livro. É muito parado, mas depois compreendi que é tudo a preparação de um terreno para o que vem a seguir.  E o que vem, vem com tudo. 

Na verdade, a falta de preocupação das crianças-sobreviventes numa ilha paradisíaca, sem adultos por perto, me lembrou muito eu mesma no começo da quarentena lá em março/abril: parecia férias! O livro começa com esse sentimento: apesar do desastre (afinal, um avião caiu e não temos comunicação com o mundo civilizado, estamos por nossa própria conta e risco), não está tão ruim assim. 

Mas é claro que as coisas começam a piorar e a ausência de organização social, autoridades e instituições começa a pesar nos mais simples atos da vida do grupo. Apesar do líder eleito na maior alegria e unanimidade entre as crianças nas primeiras páginas, decisões difíceis criam divergências, rivalidades e, em última instância, tragédia. O que se torna mais importante: manter uma fogueira acessa como sinal para um possível resgate, ou caçar carne para alimentar o grupo? 

E até mais ou menos 50% do livro, as dificuldades óbvias que vão pressionando as crianças pela sobrevivência os divide entre dois grupos. Uns são os mais "civilizados", aos quais a sujeira incomoda e cuja preocupação maior é manter a fogueira acessa com a esperança de um resgaste e retorno ao mundo que conhecem. Os outros são os caçadores, que têm uma relação diferente com a ilha: aprendem a ser predadores, caçar e matar javalis e tornam-se mais "primitivos", desenvolvem rituais e crenças e estão preocupados com o aqui e agora. Enquanto os primeiros aguardam o retorno e se vêem na ilha em situação momentânea, os demais adotam uma postura mais integrada e assimilativa ao ambiente.

Isso torna a leitura um pouco chata, como se fosse uma aula de sociologia de ensino médio na qual a gente discute "o que é democracia?" e Rousseau e o homem primitivo. Esta é minha leitura de 2020, claro. No contexto da década de 1950, as atrocidades da Segunda Guerra Mundial haviam colocado em nova perspectiva a civilização ocidental e questionava-se estes valores iluministas até então considerados irrefutáveis.

Porém, da metade em diante, eu fiquei muito mais agarrada ao livro. Assustada. Tensa. Chegou um pouco naquela "falta de inocência" que eu estava esperando. As crianças perdem toda a aura infantil e tornam-se autoritários, caçadores, briguentos, egoístas, egocêntricos e assassinos. Ao mesmo tempo que os mistérios e segredos da ilha também começam a ter mais espaço na narrativa, o que torna tudo mais interessante. 

Gostei muito. Mesmo! Achei o final incrível. Ficava me perguntando se todos morreriam, se seriam resgatados, se virariam selvagens ou cresceriam na ilha e formariam uma nova civilização, ou se seria uma espécie de "A Lagoa Azul" e eles viveriam lá de boas aproveitando o sol da praia, ou se seriam vítimas do monstro da ilha... Mas quando eles são resgatados e caem em prantos, sabendo que apesar de voltarem para casa nada será como antes, me lembrou Primo Levi e a libertação dos campos de concentração. As experiências na ilha não lhes tiraram apenas a inocência infantil, mas também consumiram a "humanidade" de seus corações. Essa desumanização é didaticamente apresentada na cenal final: um ato de caça animalizado entre presa e predadores, o mais fraco e o grupo mais forte, a disputa pelo espaço e dominância pelo macho alpha, o líder do bando. 

Finalmente, ano passado eu maratonei Lost, que se tornou uma das minhas séries favoritas de todos os tempos. Até então, eu não sabia de Senhor das Moscas e é impossível não fazer a relação entre eles. Depois, procurando na internet, vi que - além da referência óbvia - existem em alguns episódios da série menções claras ao livro. Agora, parece que será lançada na Netflix outra série com um enredo inspirado na obra de Golding, mas agora será um grupo de garotas adolescentes. 

Ler um clássico assim, que inspira tantas outras produções contemporâneas e tornou-se referência, é muito bacana.

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