Moby Dick: três anos em alto mar em busca da baleia branca ou quanto tempo em quarentena até uma cura

Há muito tempo que eu não entrava numa máquina do tempo e lia alguma obra do século XIX. A última vez foi em dezembro de 2018, com Jane Eyre, de Charlotte Bronte. Mas, por causa da situação permanente de estar em vias de me mudar e em vias de encaixotar meus livros, lacrá-los, colocá-los em algum porão/ armário/ quarto vazio, comecei a olhar com carinho obras da minha estante que a partir de algum momento deixarão de ver a luz do sol.

Nisso, eu vi os dois volumes de Moby Dick e lembrei do meu preconceito de "como deve ser chato um livro de 800 páginas que se passa em alto mar". Só que estamos de quarentena, cujo fim não se sabe quando será. Quão diferente a monotonia do livro poderia ser da minha?

Exceto o ponto central da narrativa - a "busca monomaníaca" do captão Ahab pela Moby Dick - eu não sabia nada sobre o livro e por isso foi uma leitura cheia de surpresas. A começar pelo vocabulário do universo baleeiro do século XIX. Que universo era esse, meu deus? Apesar de já possuir anteriormente uma ideia de que existem diferentes espécies de baleias, por exemplo, sinto que sabia nada e acabei me tornando quase uma especialista em cetáceos e cachalotes. 

A exposição exaustiva do funcionamento de um navio baleeiro, a tripulação e suas funções, as armas, ferramentas, a operação de caça, dissecamento e retirada do óleo das baleias cachalotes - tudo em alto mar - configura um didatismo espetacular. Tudo isso numa leitura fragmentária, composta por 136 capítulos curtos mais epílogo, de onde saltam capítulos reflexivos, analíticos e até de pequenas histórias que orbitam a narrativa principal.

Tudo é curioso e diferente.... Aos meus olhos do século XXI, baleias são amigas e fofas e não monstros assassinos. Afinal, milênios separam qualquer semelhança entre a Bolha (a baleia-maternal-de-Flap-Jack) e o leviatã que engole Jonas. Apesar de serem apresentados como ameaças, os cachalotes também são descritos como seres superiores, inteligentes, fortes e incríveis. Uma manada brincando no horizonte, com as caudas contra o pôr-do-sol é uma visão dos céus, enquanto o barulho ensurdecedor dos tubarões comendo a carne da baleia morta, é descrito como o som dos infernos.

Ao mesmo tempo que o narrador e tripulante Ismael admira estes animais, ele também os caça, mata, decapita, esvazia seu interior e solta sua carcaça ao mar. Não há um problema moral nisso. Não há culpa. Não há o que questionar. É uma obra do século XIX. Há, contudo, sugestões reflexivas sobre a relação do homem e a natureza. Uma das passagens que mais me marcou, foi a do capitão Stubb que, depois de matar um cachalote, embebeda-se em comemoração e exige comer filés do animal morto e pendurado ao lado do navio. Tudo isso, iluminado pela lanterna que consumia o óleo de espermacete da baleia:

"O fato de nutrir-se um homem com um ser que lhe alimenta a lanterna e, como fez Stubb, comendo à luz projetada por esse mesmo ser é algo tão singular que reclama um pouco de história e filosofia. (...)

A evidente repugnância com que os terrícolas consideram a baleia como alimento não se funda, aliás, inteiramente na excessiva gordura da carne. Talvez provenha muito mais da observação feita acima, isto é, o homem não se resigna a comer a carne de um ser marítimo recentemente morto e a iluminar-se ao mesmo tempo com ele. (...)

Ide uma noite de sábado a um açougue e observai as multidões de bípedes vivos com os olhos cravados nas grandes filas de quadrúpedes mortos. Cada um desses canibais não sente que a água lhe vem a boca? Canibais? Qual de nós não o é? Asseguro-vos que o juízo final será mais leve para um indígena de Fidji que salga um magro missionário na sua cela, na iminência de uma fome próxima, do que para ti, civilizado e sábio gastronômo, que abates os gansos no solo e te regozijas com o seu fígado inchado, no paté de fois gras."

Ao longo de toda a leitura eu me vi no Google, Youtube e Wikipedia pesquisando sobre baleias, cachalotes, esparmecete, Nantucket, etc e, depois de já ter acabado o livro, passei por este texto de 2013, The Endless Dephts of Moby-Dick Symbolism, e uma coisa me saltou aos olhos. Os navios partem dos portos para ficar três anos em alto mar. É quase uma máquina do tempo. Esta tripulação está alheia a tudo. O mundo que deixaram não será o mesmo que encontrarão no retorno. Ao mesmo tempo, a fórmula da busca, a jornada do capitão por algo, torna Moby Dick um livro sobre tudo. Cada um terá sua leitura, a depender de onde e quando é o leitor.

"Moby-Dick is about everything, a bible written in scrimshaw, an adventure spun in allegory, a taxonomy tripping on acid. It seems to exit outside its own time, much like Don Quixote and Tristam Shandy, the poetry of Emily Dickinson. It is so broad and so deep as to accept any interpretaton while also staring back and mocking this man-made desire toward interpretation."

E é por isso que eu não consigo deixar de comparar nosso presente à uma caça a Moby Dick. "Não eram trinta homens, era apenas um". E somos uma só sociedade, com os indivíduos isolados, com medo de um vírus que surgiu na própria relação doentia entre o homem e a natureza. Alheios a tudo. O mundo que deixamos pré-pandemia não será mais o mesmo no pós-pandemia. E assistimos, como a tripulação, uma busca insana e "monomaníaca" por uma cura, uma solução, uma saída dessa situação. Ou então somos nós mesmos o capitão Ahab, um dia após o outro à procura de um hobby, uma atividade produtiva, um pensamento positivo, uma esperança, em uma realidade marcada pelo isolamento e perigos.

Considerando o fim da história, é uma pena que esta comparação só traz mais desalento.

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