Rita Lee - uma autobiografia (e quando a gente tem a chance de contar o nosso lado)

O gênero (auto)biográfico me interessa muito. Tirando a biografia de Jorge Amado - escrito por uma mulher - as duas últimas autobiografias que li foram de mulheres: Becoming, de Michelle Obama, que li na virada do ano 2019/20 e, agora, Rita Lee - Uma Autobiografia. Que meus colegas eruditos da FFLCH, tampouco meus companheiros historiadores me vejam falando, mas para mim - enquanto leitora interessada, não especialista em gêneros textuais - os textos que envolvem as narrativas do eu não deixam de ser ficção (nisso se incluem também os textos historiográficos). 

Não quero entrar na toca do coelho de Alice, me dizendo pró-estruturalista, que tudo é relativo, etc. É um perigo eu cair nisso sem o cuidado necessário e nunca mais conseguir sair. Porém, todavia, entretanto... Ao longo de todo meu trabalho em arquivos pessoais, sempre me saltou aos olhos como nós - seres sociais que se utilizam das narrativas para diversos fins de organização social - utilizamos também a construção narrativa para dizer quem somos nós dentro de uma coletividade. A grande lição disso é que não cabe a nós julgar, decidir o que é verdadeiro ou não, porque a verdade está em quem fala o que fala. 

O texto de Rita Lee é uma delicinha de ler. Parece que estamos numa mesa de bar - ou no sofá da Hebe, que a ela era tão querido - ouvindo-a contar causos. Os capítulos curtíssimos organizados em ordem cronológica, comum às biografias, são na verdade muito mais lances de memória do que fatos explicados e datados. O uso do recurso de "eu me lembro" e dos sentidos - olfato, tato, sabor -, causa a nós, leitores, a impressão de uma confissão, de um relato autêntico. E Rita Lee faz isso muitíssimo bem. Acabamos a leitura com uma enorme vontade de conhecê-la pessoalmente e ter conhecido sua família excêntrica. 

Adorei a São Paulo que ela nos mostra. Essa cidade que me adotou e eu adotei - ela fala de uma São Paulo cheia de possibilidades, diversa, urbana e, ao mesmo tempo, linda. Eu mesma, paulistana por adoção e nascida no ABC Paulista, mais do que me identificava com os vislumbres da "caipirona" em sua primeira vez na Europa e no Rio de Janeiro. Eu também nasci e cresci "meio caipira" e viajar de avião ainda é uma maravilha.  Mas a "caipirice" de Rita, que se mostra como uma paulistana-jeca-tatu, é mais um recurso cômico de afirmação de suas origens e particularidades em oposição ao cosmopolitismo carioca. Afinal, seus pais tinham origem norte-americana e italiana e sua educação se deu em escola francesa.

De maneira geral, o livro parece ser um manifesto de auto-afirmação contra as críticas feitas por aqueles que lamentam o fim dos Mutantes e diminuem a carreira solo da cantora. Rita Lee foi uma mulher cantando rock, no meio de homens e mpbistas e bossanovistas: os ataques vinham de todos os lugares. Foi preciso muita força para resistir e continuar. E apesar do seu tom pouco friendly contra os irmãos Batistas, é preciso reconhecer a dificuldade de uma mulher se integrar num clube do bolinha. 

O fato é que o livro é a oportunidade da cantora e compositora mostrar que ela é mais que Os Mutantes e que o fim da banda não deve cair sobre seus ombros. Há mais: todo esse ar "cult" do grupo veio depois. Na época, eles estavam desbravando e não querendo ser cults, fazer história ou a revolução. Inclusive, esclarece sua posição política para aqueles fiscais do anti-ditadura: definitivamente não era a favor, mas também achava um porre fazer arte engajada. E isso não a diminui como mulher, como cantora, tampouco sua arte. Publicado em 2016, nos seus 69 anos, a autobiografia de Rita Lee é uma forma humorada, leve, de responder aqueles que a criticaram ao longo de seus mais de 50 anos de carreira. 

E aí, cabe a ela sim contar o lado dela dessa história, que faz de forma muito sincera:

Hoje, os Mutantes são considerados cult, especialmente na fase da qual fiz parte, o que muito me orgulha. Estávamos sim anos-luz à frente do nosso tempo, pena a nossa alegria espontânea ter perdido para a falsa ilusão da glória passageira. 

Eu aqui apenas conto o lado da minha moeda com o distanciamento inverso ao dos críticos-viúvos que teimam interpretar a história como se soubessem mais do que quem, como eu, fez parte dela.

Apesar de gostar muito da Rita Lee e saber muitas músicas de cor, não sou fã de carteirinha. Tampouco conheço muito essa história da cultura brasileira da qual Rita Lee é uma das protagonistas. Interessados neste assunto se deleitarão com os relatos mais históricos. De qualquer maneira, da minha leitura, despreende-se a genialidade e coragem de Rita Lee em se afirmar e afirmar sua arte num meio hostil, que não a reconhecia como cantora e artista e a critica/ responsabiliza pelo fim dos Mutantes. Rita Lee Jones conta os percalços que passou para não se deixar abater e se tornar a mulher que foda que é, solo, longe da sombra de homens e, deixa muito claro que, quando encontra Roberto de Carvalho, é parceria. E daí em diante, ela decola - tanto como mulher quanto como artista.

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