Um Artista do Mundo Flutuante, Kazuo Ishiguro: as dores e a melancolia daqueles que perderam a guerra

Acabei sem querer tropeçando em Kazuo Ishiguro e Um artista do mundo flutuante foi meu livro de estreia do autor. Circulando pelos perfis literários no Instagram, vi uma referência à beleza da capa de Um Gigante Adormecido. Como eu estava ainda mexida pela recente leitura de Miso Soup, obra de outro autor japonês, fui atrás de Kazuo Ishiguro na Amazon e acabei me interessando.

Este post não chegará aos pés da atenção que merece Um artista do Mundo Flutuante. Sinto que eu deveria voltar às páginas do livro e fazer uma segunda leitura mais cuidadosa, mais reflexões, mais parágrafos grifados e páginas marcadas com post-it caso se eu quisesse cumprir com louvor a minha ousadia de escrever sobre este livro aqui. Não obstante, segue algumas ideias e um relato da minha experiência de leitura.  

Eu não sei porque, mas eu sou um ímã de leituras relacionadas à Segunda Guerra Mundial. Já mencionei sobre isso em outros posts. Talvez - só talvez, seja porque eu sou uma apaixonada pelo século XX e a Segunda Guerra foi o maior evento deste período. Nos últimos dois anos, li muita coisa sobre o Holocausto e o Exército Vermelho, mas nunca sobre o ponto de vista político. Sempre - absolutamente sempre - meu interesse está na relação do indivíduo e sua identidade com o momento histórico vivido (ou herdado). Hitler não me interessa. Me interessa a dona de casa que compra pão todo dia na União Soviética e, um dia, sai às ruas para protestar por mais liberdade. Me interessa o filho do judeu imigrante que nasceu nos EUA, viu o Holocausto do outro lado do Atlântico e um belo dia vai para Israel. Me interessam as pessoas comuns e como elas vêem o mundo - e a si mesmas! -  a partir das vicissitudes históricas.

Engraçado que, apesar de todo esse interesse, eu nunca havia me atentado para um dos antagonistas desta Guerra. Frequentemente falamos de Pearl Harbor, kamikazes, Bomba Atômica, Hiroshima e Nagasaki. Este vocabulário está aí, em todo o lugar, mas acho que se tornaram um pouco vazios. Tanto quanto as vezes "Holocausto" parece estar se desgrudando de todo o significado que a palavra carrega.  Parece que quando falamos da participação e derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a queda das bombas nucleares e a rendição estamos falando apenas de dados históricos. Precisamos relembrar os significados destes eventos - tanto para o momento em que ocorreram como para o tempo presente.

Neste sentido, Um Artista do Mundo Flutuante me lembrou Talvez Esther, de Katya Petrovskaya, que eu li ano passado. São leituras que falam sobre as feridas que não se fecham e os traumas que a Segunda Guerra Mundial trouxe nos níveis individuais e familiar. Como uma falha em um único ponto que deixa marcada toda a continuidade da trama de um tecido. Ou a colocação dos tijolos de um muro: quando uma peça não é bem assentada, todo o restante vai sendo construído torto. Passei tanto tempo na faculdade de História, há tantas e tantas horas de séries, documentários e filmes sobre eventos históricos, mas pouco se fala da dimensão de um trauma histórico naqueles que acordam no dia seguinte, vivem sua vida, almoçam, vão trabalhar, voltam para a casa e dormem para viver outro dia. Como diz Primo Levi em seus livros: é impossível voltar à vida de antes. 

Mas estou divagando - como diria Masuji Ono, o protagonista de Um artista do Mundo Flutuante. O livro é contado em primeira pessoa durante os primeiros anos da ocupação, entre Outubro de 1948 e Junho de 1950. A partir de quatro datas marcadas, que funcionariam como quatro grandes capítulos, Masuji Ono, um artista já aposentado, nos conta os problemas que envolvem as tratativas de casamento de sua filha mais nova, Noriko. A filha mais velha, Setsuko, já casada e com um filho pequeno, Ichiro,  mora longe com seu marido e visita o pai em ocasiões específicas. 

A partir destas questões que envolvem Noriko, Masuji Ono vai recuperando algumas situações passadas e, tomando de sua memória, nos conta eventos que viveu nos períodos pré e durante a guerra. Nos relata também, aos poucos, sua formação como artista, sua ocupação oficial no governo, a relação com seus alunos, o ambiente artístico e cultural boêmio do Japão dos anos 20 e, após, sua virada para uma arte mais patriótica e engajada às causas sociais. 

Contando sobre si, os lugares que frequentou e as relações cultivadas e rompidas ao longo de sua vida, Masuji Ono narra a própria história do Japão e faz um mea culpa, uma retrospectiva das responsabilidades e consequencias da Segunda Guerra Mundial para o que restou àqueles que sobreviveram e agora habitam um outro Japão - um lugar completamente diferente do que conheciam. Tudo isso sem mencionar, nem uma vez sequer, um evento específico ou todo aquele vocabulário já exaustivamente utilizado: bombas incendiárias, kamikazes, Hiroshima, Nagasaki, etc. Mesmo "guerra" é um vocábulo que quase não aparece.

Esta retrospectiva é feita sob as motivações que envolvem o futuro - os problemas das gerações mais jovens: a vergonha da perda, a humilhação da ocupação, a ofensa da rendição, as mortes dos entes queridos e a destruição das paisagens. Quem responsabilizar? Quem é o culpado de tudo isso? São traidores aqueles que levaram o Japão ao seu aniquilamento? 

Por mais que nosso conhecimento sobre o leste asiático seja muito tangencial, sabemos que a história tradicional do Japão é marcada pelos samurais, casas de chás, gueixas e uma forte cultura de expansão imperialista. Uma sociedade bélica, violenta, patriarcal, sanguinária. O que aconteceu com esta tradição após a derrota da Segunda Guerra e a ocupação do território pelos EUA?

Masuji Ono, um intelectual e artista patriota, que ocupou cargos oficiais importantes durante a guerra e participou ativamente da promoção artística das campanhas de recrutamento, apesar de não ser acusado diretamente, é visto como um dos responsáveis - culpados - pelos erros geopolíticos recentes do país. Que posição agora ele ocupa? Sem ser diretamente acusado, suas filhas acham que a proposta de casamento de Noriko do ano anterior foi frustrada por causa do passado de Masuji Ono. Sua família, apesar de tratá-lo com muito respeito, na verdade trata-o com excesso de formalismo e o exclui. Ele está lá. Ele faz parte, mas ao mesmo tempo não faz. 

Abre parênteses.

O neto Ichiro, uma criança pequena, está brincando - do que parece ser - de super-herói. Quem ele está imitando? Um grande samurai da história do Japão, como Musashi? Não. Um cowboy. Seu pai, genro de Masuji Ono, acha melhor seu filho não conhecer os heróis/ samurais da história japonesa, pois não são boa influência. É melhor ele aprender com a cultura norte-americana. 

Depois, mais para frente, a criança enche a boca com espinafre - muito mais do que é capaz - e bate em seu próprio peito para imitar o Popeye. Aos olhos de Masuji Ono, a criança faz isso de modo besta. Tosco. Vergonhoso. 

O tempo passa e Masuji Ono, depois de conversar com seu neto sobre saquê, diz que o Ichiro está grande, tornando-se um homem e poderia experimentar um pouco da bebiba alcoolica. A filha Setsuko se nega a diluir um pouco de saquê na água para dar a seu filho, apesar da expectativa da criança. Mesmo aos protestos de Masuji Ono, dizendo que o momento que um menino experimenta o saquê é um ritual de passagem - uma ocasião importante para a formação do menino-homem e que ele se lembrará para sempre com carinho desse momento, Setsuko nega. O pai de Ichiro discordaria também. 

Fecha parênteses.

Masuji Ono ouve dos jovens adultos que o Japão tem muito a aprender com os EUA e com a "democracia". Ele vê a chegada dos costumes ocidentais ocupando todos os espaços do Japão: desde a "comodidade" dos novos conjuntos habitacionais sendo construídos (apartamentos que, segundo ele, são minúsculos), até os cartazes de cinema e pequenas intervenções de mau-gosto nas decorações para agradar os norte-americanos. 

Os outros de sua geração se suicidam - a fim de "ajudar" as novas gerações a superar a vergonha passada e poderem se voltar ao futuro. Masuji Ono vê a doença e a velhice atingir a geração daqueles que um dia lutaram pela grandiosidade de seu país e que paassaram a serem vistos como "traidores", responsáveis pela decadência, destruição e sujeição do país às forças externas. 

Certo momento, Masuji Ono nos conta que teve uma conversa com sua filha Setsuko e começa dizendo que "se irritou" porque ela estava errada em sua suposição. Para nós, Masuji Ono vai aos poucos recuperando lembranças, nos contando a partir de sua memória, vários momentos e detalhes de sua vida que justificam os motivos pelos quais sua filha estava errada. Em nenhum momento eles se confrontam, mas, no mesmo almoço do evento do saquê, o artista aposentado sugere uma afirmação que indicaria que a filha estava errada - e ele acredita que ela entendeu o recado. De qualquer maneira, ele nos mostra com convicção: ela estava errada. 

Já ouvi falar outras vezes sobre o "choque" de gerações entre os japoneses. O choque entre tradição versus modernidade. Kazuo Ishiguro coloca essas questões de modo sensível e profundo. A partir da personagem de Masuji Ono, o autor nos mostra a importância de uma revisão histórica, que os responsáveis assumam seus papeis na tragédia que assolou o Japão para que o futuro venha a ser, que os jovens e as futuras gerações tenham possibilidades e possam superar os desafios impostos pela guerra e continuar suas vidas e a vida do seu país.

Porém, existe também uma crítica severa contra estas novas gerações que - seja por vergonha, ou outros sentimentos de remorso - transformam esta reflexão em uma completa substituição de seu passado. Parece que não se trata mais de uma autocrítica, mas uma completa substituição de suas história e tradição. Uma hiper-valorização da cultura ocidental, as tentativas sutis de agradar os americanos e a ideia de que o Japão tanto tem a aprender com a democracia norte-americana vem a borrar todo a cultura, tradição e identidade japonesas. Borrar - não apagar - porque, como Masuji Ono mesmo diz ao reconhecer traços de seu filho no seu neto Ichiro, as novas gerações nunca deixam de carregar e levar adiante características herdadas de suas famílias e até mestres. 

"Na verdade, nesse dia, ao ver Ichiro com o rosto colado ao vidro para olhar a rua lá embaixo, percebi o quanto estava ficando parecido com o pai. Havia traços de Setsuko também, mas isso se via principalmente em seu jeito e nas pequenas expressões faciais. E claro, me surpreendeu também a semelhança de Ichiro com meu próprio filho, Kenji, quando tinha essa idade. Confesso que sinto uma estranha consolação ao observar as crianças herdarem essas semelhanças de outros membros da família, e minha esperança é que meu neto as mantenha em seus anos adultos. 

Claro, não é apenas na infância que estamos sujeitos a essas pequenas heranças; um professor ou mentor que admiramos muito no começo da vida adulta deixará sua marca e, de fato, mesmo muito depois que se reavalia, talvez até se rejeita, o grosso dos ensinamentos desse homem, certos traços tenderão a sobreviver, como alguma sombra dessa influência, para ficar com a pessoa pelo resto da vida."

Apesar do sentimento consolador de ver as heranças sendo transmitidas de geração em geração, também é presente o sofrimento. Uma dor tanto entre aqueles que viveram a guerra, foram responsáveis por ela e, se antes eram heróis, tornam-se excluídos e acusados, quanto entre os mais jovens, que tentam apagar o passado herdado. As tentativas de apagamento são frustrantes, pois, como aponta Masuji Ono, inevitalmente os traços e semelhanças são herdados: as tentativas de importação da cultura ocidental e apagamento da tradição são, portanto, dolorosas para todos - independente da geração e da idade. É a melancolia que os afasta e, contraditoriamente, também os une.

Esta foi minha última leitura de 2020 e, com certeza, uma das mais belas.

2 comentários:

  1. Oi, Giovana!

    Vim aqui porque vi que tu escreveu sobre um livro do Ishiguro, e eu amo os livros desse homem. Ainda não li esse, mas quero demais.

    Porém, te deixo uma recomendação: já que tu curte livros sobre o século XX, esse período de guerras e tal, mas na perspectiva do indivíduo, acho que tu realmente vai gostar de ler A face da guerra, livro de crônicas da Martha Gellhorn, que foi uma correspondente de guerra - a mais longeva do século XX. É fascinante como essa mulher escreveu sobre as pessoas que eram obrigadas a vivenciar guerras as quais não tinham escolhido. Ela pega o cotidiano e transforma em palavra de uma forma maravilhosa - e dolorosa. Amo tanto que meu TCC foi sobre ela, inclusive.

    Enfim, fica a recomendação, caso tu não a conheça.

    Bjo!

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    1. Oi, Mia!
      Nossa, adorei ver seu comentário aqui! Obrigada!!

      Conheço a Martha Gellhorn por causa do Hemingway (que eu acho desprezível). Não conhecia este livro de crônicas dela. Com certeza vou atrás. Muito obrigada pela indicação.

      Agora sobre o Ishiguro, nossa... eu fiquei bem mexida com o livro. Este ano de 2021 quero ler outros dele.

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