A outra volta do parafuso - uma leitura para me lembrar que nem tudo é certo ou errado, preto ou branco, verdadeiro ou falso

Acho que o grande debate "Capitu traiu Bentinho?" só existe mesmo porque Dom Casmurro é leitura obrigatória e é a única que muita gente faz. Ler Machado de Assis é muito inteligente e culto e para muitos só essa leitura já vale para a vida inteira. Porque se a gente lesse mais, outras perguntas tiradas de outros livros seriam tão condizentes quanto a possível traição de Capitu.

Aproveito para confessar que eu sou uma leitora facilmente manipulável. Eu me derreto ao personagem. Por mais que eu tenha sido avisada sobre os perigos da narrativa em primeira pessoa, eu esqueço de tudo logo nas primeiras páginas e me torno uma grande defensora do pobre-coitado-narrador. Foi assim com "O Apanhador no Campo de Centeio".... Eu só conseguia dizer "tadinho do Holden...". Depois, passa um tempo, eu passo a pensar um pouco mais e até vejo como sou bobinha.

Vi que na Netflix foi lançada uma nova série de "terror", chamada "A Maldição da Mansão Bly", dos mesmos  criadores de "A Maldição da Residência Hill", que eu vi ano passado e amei. Assim como o segundo show havia sido uma releitura da obra de Shirley Jackson, "A Assombração da Casa da Colina", o primeiro foi inspirado pela "A outra volta do parafuso", de Henry James.

Por isso, corri para baixar a obra de Henry James no Kindle e aproveitar o clima meio terror de Halloween em terras tupiniquins. Eu adorei o livro. Foi uma daquelas leituras que, para além da própria história contada, seus personagens, clímax, etc, a experiência mexeu bastante comigo. Quando acabou, senti que o último parágrafo, a última frase, era euzinha num equilíbrio perigosíssimo à beira de um precipício. Eu fiquei triste, apreensiva, cheia de dúvidas. 

É um relato - até bastante breve - da experiência de uma governanta que aceita o trabalho de cuidar de duas crianças orfãs em uma casa de campo, no interior da Inglaterra. Lá, ela começa a vivenciar situações estranhas, ver coisas suspeitas e desconfia que algo muito errado está acontecendo. Na intenção de proteger seus pupilos, decide colocar-se à prova: ouvidos e olhos atentos e diálogos muito bem manipulados para extrair a verdade das crianças, sem que elas percebam as intenções da governanta. Um jogo difícil e perigoso de adquirir confiança daqueles que ela quer salvar, sem mostrar sua intenção de benfeitora. 

Acontece que eu fui lendo o seu relato, quase de uma vez só, e fui acreditando em cada uma de suas palavras, gestos e intenções. Cheguei a pensar o quanto ela era inteligente. Demorei muito para perceber que seu nome nem aparece! Só depois de terminada a leitura, o mal-estar me levou a ler o posfácio da edição da Penguin-Companhia, no qual David Bromwich questiona quão inocente são as boas intenções da governanta. Ela nem expõe seu nome... O quão inocente não fui eu nessa leitura toda? 

Enfim, me peguei depois refletindo o quanto é fácil não questionar, não duvidar, não desconfiar. Não estou dizendo que é fácil acreditar, quão sedutor é crer na primeira coisa vista ou palavra ouvida; mas sim o quanto é difícil olhar uma vez, voltar e olhar de novo, e talvez mais uma vez. E para o bem e para o mal, a quantidade de informação e pontos de vista diferentes que são expostos - 24 horas por dia 7 dias por semana - torna humanamente impossível esse olhar crítico/desconfiado. Essa leitura que questiona e investiga. Não dá tempo. Por isso a sensação de afogamento no mar de certezas e afirmações feitas de formas tão convictas nas redes sociais. Cada tweet, cada foto, cada relato, cada thread e cada notícia compartilhada de pessoas "reais" ou anônimas são tão sedutores e parecem ser tão definitivos. Tão preto no branco. Tão sim ou não. O meio termo é que é complicado. 

Se o que a governanta diz que viveu é verdade, ou é imaginação, não cabe a nós julgar. Cabe a nós desconfiar sim, mas qual a verdade? Não há. Sempre lembro da questão: os homens das grandes navegações viram mesmo monstros e sereias, como eles dizem em seus relatos? Sim e não. Viram algo, mas reconheceram o que lhes era familiar ao mundo que conheciam. O que era exatamente? Não saberemos, mas vale a pena se questionar e refletir sobre a área cinzenta.  

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A tempo... Não gostei tanto de Mansão Bly. Mas acho que isso é muito mais culpa minha, que ando meio bodeada com TV e não tenho conseguido passar muitas horas assistindo alguma coisa, do que da própria série. Maridão gostou!

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