Ellie e os espelhos: o duplo na narrativa de Last of Us II

"- Hoje a tarde, vamos jogar Last of Us 2?". 

Eu não toquei no controle nenhuma vez, mas não teve cinco minutos que o Allan jogou sozinho Last Of Us II nos últimos dias. Eu quis acompanhar tudo, os vídeos, os diálogos, todos os bilhetinhos coletados durante o jogo. "- Faz mais scavage, Allan.", "- Dá para entrar ali!", "- Você já entrou aqui?". Pelos últimos dias, mesmo já tendo fechado o jogo, não paramos de falar sobre a Ellie, a Abby, o Lev, os Scars, os Wolves, etc. Foram 25 horas de jogo. 

A princípio, tive a ideia de escrever as minhas impressões do jogo no blog, mas não seria esta uma plataforma dedicada às minhas leituras? Pensei bem e, para mim, um livro sempre é uma experiência: você ama, odeia, as vezes é chato e massante, ou passa rápido, a gente chora e ri. Tudo porque a narrativa está lá para te causar este enorme rebuliço. Pois bem, videogames no séculos XXI não são mais aquela coisa de passar de fase e enfrentar chefão. Não é acompanhar o Mário andando de ponto em ponto em mapa. Last of Us II é, além dos confrontos e jogabilidade, estória/ narrativa. Por isso que 25 horas ao lado do Allan, vendo ele jogar, se passaram num estalar de dedos e eu me senti tão envolvida quanto ele. 

O primeiro jogo da franquia foi lançado em 2013 e já havia sido um sucesso. Eu acompanhei também - mas de longe - o Allan jogar. O mundo de Last of Us se passa no futuro, em 2033, 20 anos após o surto de uma infecção fúngica não controlada que causa o colapso das instituições e da sociedade tal como a conhecemos. Num tempo e lugar onde a lei é salve-se quem puder, Joel tem a função de levar Ellie, de 14 anos e que é imune à infecção, para o grupo paramilitar Fireflies produzir uma vacina. 

Ao longo do jogo, você vai vendo Joel "adotar" Ellie como filha e uma relação de carinho e cumplicidade nascer entre eles. No final, Joel descobre que para a produção da vacina, Ellie precisaria ser morta. Inconsciente, na mesa de operação, Ellie é resgatada por Joel, que mata o médico e todos os fireflies que estão no hospital. Ele diz à menina que há outros imunes e por isso não precisam mais dela. Eles fogem e passam a viver numa comunidade no meio das montanhas de Wyoming.

Foram sete anos de Joel-Ellie-lovers esperando com expectativa pela continuação, até que o jogo chega no meio de uma pandemia (se eu fosse fã de teorias de conspiração, me arriscaria dizer que há uma jogadinha de marketing aí. Que plano chinês de dominar o mundo o que! Foi tudo premeditado pela Naughty Dog e a indústria de videogames, isso sim!). O cenário é o mesmo de 2013: o nosso cenário. Nossas casas, nossas TVs, nossos coffee shops, teatros, consultórios de dentistas, metrôs, escritórios, teatros, hospitais, prédios, escolas, piscinas... Só que abandonados, destruídos, dominados pela grama e infectados. Todo o jogo é você lutando ora contra os infectados, ora contra outros humanos e ora contra a própria natureza que dominou tudo o que foi um dia construído pelo homem.

Em Last of Us II, começamos em Wyoming (onde acabou a primeira parte), numa paisagem de inverno belíssima e Ellie, já mais velha, agora com 19 anos de idade. Ou seja, no ano de 2038, 25 anos após o surto da infecção fúngica (ou o outbreak, como eles falam). Durante uma patrulha comum, Joel e Tommy encontram-se com Abby e seus colegas, que os atacam furiosamente. Ao saber que Joel e Tommy ainda não voltaram e estão sem comunicação, Ellie vai atrás de Joel e se depara com Abby matando-o cruelmente com um taco de golf. Bem no estilo FATALITY! Abby, uma personagem nova, que ninguém nunca tinha visto ou ouvido falar.

A partir daí, o jogo divide-se em duas partes. Primeiro, partimos com Ellie em busca de vingança. Ela e sua namorada, Dina, vão atrás dos Wolves, grupo ao qual integra Abby e seus companheiros. Há alguns momentos de retrospectivas, que mostram Ellie e Joel neste intervalo de anos entre os jogos e que implica, principalmente, na descoberta de Ellie de que Joel havia mentido: não havia outros imunes. Os Fireflies precisavam sim dela para fazer a vacina, mas isso implicava em sua morte e, por isso, Joel a resgatou da mesa de operações.  Em Seattle, cidade-base dos Wolves, vamos descobrindo aos poucos uma guerra entre facções. Wolves e Seraphites (chamados de Scars pelos Wolves) disputam território e integrantes. Os primeiros, de cultura muito mais militarizada e secular, enquanto os segundos se assemelham a uma seita, com rituais e costumes orientados por uma mártir. 

São três dias de Ellie em Seattle caçando Abby e matando todos os outros Wolves que participaram do assassinato de Joel, até que as duas se encontram.

Corta. 

Somos agora Abby, no mesmo dia 1 de Ellie em Seattle. Mesmo tempo, mesmo lugar, mas agora não jogamos mais com o caçador e sim com a caça. Descobrimos quem é Abby, quais as motivações que a levaram a matar Joel, seu passado dentro dos Fireflies e que papel ela teve no encerramento do primeiro jogo, quando Joel resgata Ellie do hospital e da mesa cirúrgica. Nesse ínterim de três dias, duas crianças Scars salvam sua vida, os irmãos Yara e Lev, que também estavam sendo perseguidos pela sua própria comunidade. 

Você passa a ajudá-las, conhecer mais sobre os Seraphites, entra em seu território, passa no meio da guerra entre eles e seus própios, os Wolves, e descobrimos que Lev é uma criança trans. Ele deveria casar-se com uns dos Elders, mas raspa sua cabeça, muda de nome e quer ser um guerreiro, como sua irmã, mas é condenado a morte pelo seu grupo. E aí, como no primeiro jogo, passamos a acompanhar uma aproximação entre a soldada-wolf Abby e o menino-scar Lev. Abby passa a protegê-lo como amigo (filho talvez?) e seu próprio grupo passa a condená-la por ter "mudado de lado"

Passam-se os três dias e Abby e Ellie se encontram. Agora já conhecemos os dois lados e a compaixão pelas duas é gigantesca. Mas é um jogo, começa o embate físico entre as duas e para quem torcer? Quem tem (mais) razão? #teamAbby ou #teamEllie? Nasce aí um flaXflu bobo no mundo dos gamers.

E aí... Algumas reflexões sobre a narrativa do jogo. 

Durante todo o jogo, o Allan comentava "- todos os espelhos desse jogo são quebrados". 

Bingo. 

Os momentos nos quais Ellie consegue se ver no espelho são muito bem marcados e você consegue interagir com sua imagem: na casa de Joel após sua morte, num flashback dela mais nova, enquanto passeia com Joel em um museu e depois, no final, na casa onde vive com Dina e seu bebê JJ. Você se vê, faz caretas, comentários. Ou evita se olhar.

Dentre as análises que li sobre o jogo, esta foi a que melhor apontou para a questão de Ellie e os espelhos. No rancho em que vivem Ellie, Dina e JJ, você pode fazer Ellie se olhar e interagir com os os espelhos da casa. Depois de Santa Barbara, no mesmo espaço - agora vazio - a personagem te desobedece e não encara mais seu próprio reflexo. Mas o espelho não está quebrado, sua imagem agora está lá, é a decisão de Ellie não encará-la. 


 

Porém, o maior espelho está, na verdade, ao longo da própria narrativa do jogo. É uma narrativa espelhada. Abby é o duplo de Ellie, a doppelganger, seu nemesis. Os primeiros três dias de Ellie em Seattle versus os três dias de Abby, até os nomes Ellie/Abby são parecidos, ambas perdem os pais e essa morte é o que as motiva a buscar vingança, tudo é uma projeção de espelho. Não vou explorar o tema LGBT do jogo, mas existe até uma sutileza com os esteriótipos: Ellie é homossexual e feminina, Abby é heterossexual e musculosa, quase masculinizada. Abby toma para si Lev como seu protegido, como Ellie foi para Joel. É como se na primeira metade do jogo você jogasse um lado do espelho e, na segunda metade, o outro lado. 

Na literatura, o duplo é um tema que muito me fascina. O Retrato de Dorian Gray, O Estranho caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, Alice no País dos Espelhos, Dois irmãos, O homem duplicado, e até mesmo o Clube da Luta, são apenas alguns poucos exemplos que me vêm imediatamente a mente. (O mundo das telenovelas também amam umas irmãs gêmeas) Não se trata de uma simples duplicação. O duplo funciona como um desdobramento do eu e, portanto, como formação de identidade na medida em que o eu se constrói a partir do outro. Trata-se da tensão do "um" e do "outro" na simultaneidade e no contexto social, para a definição do "um". 

Em alguns sites da internet, pesquisando mais sobre a questão do duplo, vi que a psicanálise se aprofunda bastante nesse tema e sugere que o embate entre estes dedobramentos do eu é bastante tensionado pela morte. Só a morte faz o Eu coincidir consigo mesmo e afirmar de novo a sua unicidade enquanto algo irredutível. Como por exemplo, Dorian Gray ao destruir seu retrato, acaba ele mesmo morrendo. Mesmo sem saber disso, no final da segunda parte do jogo, eu e o Allan especulávamos o desfecho e eu esperava que as duas morressem. A surpresa foi que aconteceu justamente o inverso: Ellie se salvou ao salvar seu duplo.

O jogo é sobre o processo de autoconhecimento da Ellie. Ao descobrir que Joel a resgata, mata a equipe médica, e foge, ela diz "- Era para eu ter morrido, e aí minha vida teria valido a pena". Ela não se vê naquele tempo e lugar: sua saga no primeiro jogo era salvar a humanidade e, agora, qual é? A relação entre ela e Joel está abalada e quando ela decide esforçar-se em perdoá-lo por ter impedido que ela se tornasse uma mártir, ele morre. Sua culpa são várias: sua vida não serviu para a cura, não conseguiu salvar o Joel e suas últimas interações foram frias e tensas. Não houve tempo, tampouco clima, para um adeus.

Os dois combates entre ela e a Abby são, na verdade, combates contra ela mesma. Somente na segunda vez, quando ela está prestes a matar seu duplo - a personificação da culpa que carrega e da obsessão por saber quem é e qual o seu lugar - que ela se encontra e, portanto, deixa Abby ir. Ela precisa primeiro salvar seu duplo e depois quase matá-la para poder se encontrar. Agora sim ela está inteira, ela se vê como inteira. Ela pode até não gostar, como fica claro ao evitar olhar seu reflexo na casa da fazenda onde vivia com Dina, mas é o que é.

O processo de transformação e auto-conhecimento, por mais doloroso e mortal, acabou. Em uma das cenas do embate final, como todas as outras em que Ellie se olha no espelho, agora a protagonista se encara em sua inimiga: Abby e Ellie esgotadas, quase morrendo, cansadas pela jornada que vêm enfrentando e olhando uma para a outra com a paisagem da praia ao fundo. 

 

O flaXflu surge porque, conforme vamos jogando com a antagonista Abby, vamos conhecendo sua história, se solidarizando com ela e passamos a sentir seu sofrimento e seus percalços. Quando Ellie decide ir atrás de Abby novamente, mesmo depois de sua vida ter sido poupada no combate anterior que tiveram e que perdeu, o sentimento é de cansaço. Ficamos "como assim, Ellie? Sério?? Sossega o facho aí, curte a Dina e o JJ". A ironia é que, se não fosse a Ellie, Abby teria morrido nas mãos dos rattlers californianos. E aí que está a chave da história: não se trata de flaXflu, Abby versus Ellie, porque é a Ellie contra ela mesma!

Tudo isso é contado dentro de uma míriade de outros temas, muitíssimos interessantes. A história de Lev e os Scars é muito emocionante também, e eu adorei acompanhar o Allan jogando com a dupla Abby e Lev, onde os opostos se ajudam e lutam um pelo outro. Também como o jogo coloca questões tão caras como homossexualismo e transexualismo de forma orgânica à estória. 

Chegamos num momento em que as narrativas já ultrapassaram os meios tradicionais de contação de história, livros, filmes, etc. Daqui para frente, não é possível mais ignorar a força narrativa das plataformas de videogames pois, elas sim, já têm explorado e muito os recursos tão bem sedimentados da literatura.

Fechando, o jogo é uma experiência narrativa incrível, é um privilégio meu poder acompanhar toda a história com alguém que, além de também ser apaixonado pela narrativa, adora jogar videogame!

4 comentários:

  1. Que reflexão incrível, muito obrigado por se dispor a compartilhar isso, já passou da hora dos videogames serem notados como produtos culturais, enfim, parabéns pelo texto.

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    1. Oi Higor! Muito obrigada pelo comentário! Fiquei muito feliz de ver que fãs do jogo gostaram da minha observação sobre a narrativa. Me incentiva a continuar escrevendo sobre outros assuntos além de livros.

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  2. Caraca... Que texto bom! Esse jogo sempre "mexeu" comigo, desde o primeiro. Ao fechar o II, traz uma mistura de sensações bem distintas. E esse lance do espelho... Putz! Que sacada... Obrigado!

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    1. Muito, muito obrigada pelo comentário! As vezes fico pensando "será que alguém lê as coisas que escrevo?". Mas o jogo também mexeu muito comigo e acho que esse é o brilhatismo de uma boa narrativa - a gente carrega ela com a gente mesmo depois de ter acabado. Mesmo quase um mês depois, eu ainda "vejo" Last of Us em vários lugares! rs

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