Ecologia, sociedade e literatura: os "mortos" de Ana Paula Maia e Olga Tokarczuk

Dentre as leituras que fiz este ano, Enterre seus mortos de Ana Paula Maia, talvez tenha sido a mais grata surpresa. É um livro curtíssimo de apenas 136 páginas e publicado em março de 2018 pela Companhia das Letras. Dificílimo, na minha opinião, de classificar: é um thriller? Suspense? Terror? Drama? Denúncia social? Gostei muito da apresentação da editora: uma habilidosa mescla de novela policial, faroeste de horror e romance filosófico, escrito por uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea.


Eu acrescentaria mais algumas coisas: é um cenário apocalítptico composto por rodovias que cruzam lugares pouco habitados e que parecem ligar o nada a lugar nenhum, que só existem para atender as necessidades de uma pedreira que cumpre muito bem seu papel de explosões e destruição. Uma paisagem estilo Mad Max, marcada pela pouca vegetação, tom amarronzado e alguns poucos animais mortos, ou abutres sobrevoando as carcaças. O trabalho do protagonista, Edgard Wilson, parece um eterno sofrimento típico de um dos círculos do Inferno de Dante: interminavelmente coletar corpos de animais mortos pelas estradas e terrenos que, além de causar problemas sanitários, complicam a circulação de veículos. Quando não são mortos pelos carros e caminhões, seus corpos jogados e imóveis são a causa de novos acidentes. 

O sol, mesmo entre nuvens, deixa enfadados as aves e répteis, que evitam cruzar a estrada quente. O capim amarelento e esmorecido contorna o caminho que segue. Tudo parece morto ou quase morto debaixo do sol. Edgard Wilson apanha no meio da estada um gambá que morreu de olhos arregalados. Suspende-o pelo rabo usando luvas de borracha para se proteger. Joga-o na caçamba da caminhonete e deixa as luvas no chão do veículo.

E o que parece mais do mesmo é quebrado quando Edgar Wilson acha um corpo de uma mulher enforcada, pendurada numa árvore e sendo devorada pelos abutres. A partir disso, um enorme problema burocrático atormenta os próximos passos: a quem compete a responsabilidade por este corpo? É um lugar abandonado pelo poder público e as instituição são ausentes. Os animais, por mais cruel e indigno que possa parecer o fim de seus corpos num triturador que lhes transforma em adubo, ainda tem um fim que não é serem desconfigurados e devorados pelos animais necrófagos. 

Depois desta mulher, Edgard Wilson ainda encontra outro corpo. Como os animais, eles não têm nomes, não são reconhecidos, mas ao contrário dos corpos que são recolhidos e enviados ao triturador, estes corpos-humanos são ignorados. Não há polícia, não há necrotério. E o ato de humanidade que resta é tirá-los de lá, colocá-los num freezer para, AO MENOS, não serem devorados pelos abutres. 

Uma das riquezas da narrativa de Ana Paula Maia é a dificuldade de definir: o quanto disso tudo é realidade e o quanto é ficção? Por mais desconfortável e surreal que pareça ser o trabalho de Edgard Wilson e o cenário "faroeste de horror", tudo é muito palpável, fácil de reconhecer. É tanto um lugar imaginário quanto todos os lugares.

Em 2009 a autora polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de literatura em 2018) publicou Sobre os Ossos dos Mortos e somente em novembro do ano passado foi traduzido e publicado no Brasil pela Todavia. No começo do ano, cheguei a esta obra de forma depretensiosa. Muito mais interessada no aspecto social e geopolítico de uma obra polonesa, um lugar tão marcado pelas invasões alemãs e soviéticas do século XX, campos de concentração - um lugar "tão século XX", de extermínio e sofrimento. Para além destas questões, Olga Tokarczuk e Ana Paula Maia tocam em outra que, me parece, ser importantíssimo para nosso futuro como humanidade e que, nem sempre, recebe a seriedade que merecem. Muitas vezes, fica no panfletismo e por isso, assim como eu mesma já fiz muitas vezes, é considerada como um campo "menor": a crise ambiental. (Afinal, diante de guerra, fome, violência, acesso à educação, corrupção, etc, quem liga para poluição e queimadas, não é verdade?)

Em Sobre os Ossos dos Mortos, o tom é um tanto oposto ao de Enterre seus Mortos. Naquele, é presente uma nostalgia bucólica e li por aí sugestões de que se trata de uma reformulação contemporânea do gênero fábula. A floresta, o verde, e a vida - tanto quanto a morte - se mostram muito presentes. Há um choque constante ao longo dos capítulos entre viver e morrer, criar/ nascer e matar. Há melancolia e até certa beleza nos cenários de fim. Na obra de Ana Paula Maia, porém, é só morte retratada de forma cru, escatológica, gore

O que os livros trazem em comum, no entanto, é a relação da sociedade e do meio ambiente: como lidamos com nosso entorno, a vida e a morte (tanto dos animais quanto humanas), diante da burocracia estatal, poder público, capitalismo, cultura, ética e moral. Ambos têm a o substantivo "mortos" no título (o Allan até me perguntou: "são dois livros diferentes?" rsrs) e suas tramas começam exatamente quando a morte/assassinato dos "seres humanos" se confundem com as dos "animais". Exatamente quando essa diferença entre seres racionais versus irracionais começa a se desfazer.

O mérito destas autoras está em expor como as relações e experiências individuais com a natureza e animais - a ecologia - é um problema sistêmico, que vai muito além de optar ou não pelo estilo de vida vegano, por exemplo. A heroína de Olga Tokarczuk, Janine Dusheiko é vegetariana, mas Edgard Wilson e seu amigo Tomás, os seres humanos "mais humanos" da história toda, não dispensam a rabada com agrião. A nossa relação com o meio ambiente e, consequentemente, a vida animal está vinculada aos meios de produção, à identidade cultural e às imposições da organização e burocracia social. A quem cabem as responsabilidades sobre a vida animal e humana? A preservação da natureza? A dignidade de um enterro?

Em determinada passagem de Sobre os Ossos dos Mortos, Dusheiko procura ajuda policial para denunciar os caçadores da região, que têm tirado muitas vidas animais de modo irregular - fora da época de caça. Ela é tratada com descrédito e chamada de louca, mas ela diz o quanto o modo que uma sociedade lida com seus animais diz sobre como essa sociedade lida com os próprios seres humanos. Os livros de Olga e Ana Paula Maia trazem essa discussão sobre discurso político, filosófico e ecológico de maneira profunda e rica. Uma oportunidade de trazer esse debate para níveis mais inteligentes e profundos, que não se perdem na superficialidade do veganismo versus carnívoro, plantar uma árvore no Ibirapuera e fazer compostagem no quintal de casa. 

- A senhora sente mais pena dos animais do que das pessoas. 

- Não é verdade. Sinto pena de ambos, de modo igual. Contudo, ninguém atira contra pessoas indefesas - disse ao funcionário da Guarda Municipal naquela esma noite. - Ao menos nos dias de hoje - acrescentei. 

- Sim, é verdade. Somo um estado de direito - o guarda confirmou. Pareceu-me bondoso e pouco sagaz. 

- Os animais mostram a verdade sobre um país - eu disse. - A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.

Acho que são leituras importantíssimas: estamos vivendo uma pandemia causada, entre outros motivos, pelo modo errado e doentio que temos tratado a natureza, subjugando-a aos nossos caprichos de consumo exagerado. Além do mais, apesar de tantos problemas sociais que merecem nossa atençao e cuidado, o mundo encontra-se num momento privilegiado para que seja possível também olhar para as questões ecológicas de modo inteligente, sustentável e nada panfletário.

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