Dr. Jekyll e Mr. Hyde - a ambiguidade do público e do privado no homem moderno

A primeira vez na vida que vi uma referência sobre o clássico "O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson e publicado em 1886, foi em um episódio de Looney Tunes, chamado "Hyde and Hare". 

Em uma manhã ensolarada e ordinária, Pernalonga sai de sua toca, observa os velhinhos alimentar os pombos e aguarda ansiosamente o gentil senhor que todo dia o alimenta com cenouras. Mas desta vez, Pernalonga é adotado pelo senhor e, animado, segue-o até sua casa, onde a placa indica ser a residência de "Dr. Jekyll". Passando pelo seu laboratório, Dr. Jekyll não resiste à tentação e toma uma poção, que o transforma em um monstro assassino, o Mr. Hyde. 



A partir disso, fica um troca-troca de Dr. Jekyll / Mr. Hyde perseguindo Pernalonga que, sem compreender o que está acontecendo, procura Dr. Jekyll para avisá-lo sobre o monstro. É justamente nessa confusão, no entanto, que Pernalonga não consegue se desvencilhar de Mr. Hyde. 


Cansado, Pernalonga desiste da adoção e volta para o parque, momento em que ele mesmo se transforma em um monstro revelando que ele também tomara a poção escondido. Neste site, o autor traz várias imagens do episódio, produzido em 1955, e explica porque o considera uma obra prima. Eu acho divertidíssimo e, claro, quando era criança, eu não sabia quem era Dr. Jekyll e tampouco peguei a referência. 

Desta vez eu resolvi ler o livro. Primeiro porque eu me peguei pesquisando e lendo sobre o tema do duplo na narrativa para pensar e escrever sobre o jogo de videogame Last of Us, Ellie e os espelhos: o duplo na narrativa de Last of Us II. Depois, porque estou acompanhando o site Querido Clássico, que tem proposto a leitura de clássicos do gótico neste mês de Halloween. O livro é muito curtinho. Baixei depois do almoço no Kindle e antes de jantar já tinha terminado. 


No prefácio da edição da Penguim, Luiz Alfredo Garcia-Roza demonstra todas as qualidades que fazem da obra de Stevenson um clássico, sua originalidade e explica porque ela tornou-se uma referência na nossa cultura popular. "O Médico e o Monstro", título da tradução em português, tem como pano de fundo questões filosóficas, morais e científicas sobre a personalidade humana que estavam em voga nas discussões do fim do século XIX: o bem e o mal, a psicanálise e a insconsciência, a natureza humana sob os olhos da antropologia evolucionista e a criminologia, etc. A mentalidade e natureza humana passavam a ser analisadas sob as lentes da ciência e da medicina, sem desvincular-se totalmente da moral cristã. Por isso o elemento "mágico" e/ou fantasioso do horror em O Médico e o Monstro não é um fantasma, ou qualquer outra coisa inexplicável. Como explica Garcia-Roza:

"[...] o elemento sobrenatural ganha certo grau de plausibilidade ao se aproximar das técnicas de 'ficção científica' graças à sugestão de que o experimento de Jekyll poderia ser repetido caso ele tornasse a fórmula disponível." 

Na minha leitura de historiadora - de cientista social - o que se destacou da obra está menos nos aspectos psicológicos/ psicanalíticos e mais na duplicidade de Jekyll / Hyde no social. Dr. Jekyll é um senhor respeitável, um médico conhecido, de amizades tão conceituadas quanto ele na sociedade londrina. Sua casa, porém, tão bem frequentada e cheia de criados e elegância, tem uma porta nos fundos e, sempre que lhe convém, toma sua poção, converte-se em Mr. Hyde e sai escondido realizar suas tentações proibidas. Sua identidade perfeita é garantida, já que todas as atrocidades que comete tem a aparência física de um outro, alguém disforme. 

A personalidade "hydeana", que sai escondida pelas portas dos fundos, é comum e atual. Quantos homens respeitáveis, notáveis, pais de família, educados e "dignos de respeito" não são verdadeiros monstros quando estão dentro de quatro paredes? Na obra de Stevenson, os relatos contra Mr. Hyde são contra uma criança, que é pisoteada, e depois um velho senhor, que é morto a base de pauladas e ataques de bengala. Sempre são crianças, idosos e animais. São sempre os mais fracos que, longe dos olhos da sociedade, sofrem os ataques mais violentos daqueles que se transformam (ou se revelam?) quando não estão sendo vistos. 

Não consigo não pensar nos dados assustadores de quantos pais de família e líderes religiosos são os pedófilos e consumidores de pornografia infantil. Se se tratasse de uma história contemporânea, diria que Mr. Hyde é o perfil fake do Dr. Jekyll: é o anonimato que lhe taz os sentimentos de impunidade e permissividade. 

Mr. Hyde é o próprio anonimato, que ganha relevância com as grandes cidades, a industrialização, o êxodo do campo e a modernidade: justamente o contexto de paisagem e mudança social pela qual vinha sofrendo Londres e outras capitais no fim do século XIX. 

Isso me lembra Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, quando explora as relações da paisagem urbana e do homem moderno a partir dos poemas de Baudelaire. Densamente povoadas, as cidades assumem, a partir do século XIX, uma configuração aparentemente anárquica: o caos urbano não se limita ao tráfego de veículos, passantes, cavaleiros e condutores, mas de toda a interação entre o espaço, o homem moderno e o sistema social.

"Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contradições interiores do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada, que conduz à irracionalidade anárquica do sistema social que mantém agregadas todas essas unidades. [...] Para atravessar o caos, ele [o homem moderno] precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precida aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. [...] Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego pode ir a qualquer parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores urbanos onde o próprio tráfego se move livremente. Essa mobilidade abre um enorme leque de experiências e atividades para as massas urbanas". (BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 190-1)

Nas relações urbanas, o homem moderno é um individualista. Nas relações sociais pré-modernas a fronteira entre o público e privado era muito mais frágil. Na cidade, porém, a intimidade é quase sagrada e as relações pessoais são protocolares. É como se Dr. Jekyll fosse o lado social - o público - enquanto Mr. Hyde é o privado, íntimo. Sair pelas portas dos fundos e não ser reconhecido como o prestigiado Dr. Jekyll, permite o médico circular por outros territórios. Territórios sujos, violentos, ocupados por lascívia e que estão na parte escura das cidades, onde se encontram os marginalizados da sociedade. 

Dr. Jekyll e Mr. Hyde é o arquétipo do homem moderno, na medida em que na dimensão social apresenta-se de um jeito, enquanto na intimidade apresenta-se de outro. No ambiente urbano, dentro o caos da densidade populacional, mudanças e movimentos bruscos, o anonimato permite ao respeitado Dr. Jekyll responder aos seus instintos perversos sem degenerar sua imagem social. 

No final, fica a pergunta: quem, então, somos nós? Qual a nossa "essência"? A que se manifesta no público, ou aquela que só aparece na intimidade entre quatro paredes?

Na carta deixada por Dr. Jekyll, o médico diz que Mr. Hyde é Dr. Jekyll, mas Dr. Jekyll não é Mr. Hyde. Ou, ao menos, o que Mr. Hyde faz - todos seus crimes e atrocidades - não compromete Dr. Jekyll. É como se o médico fosse isento de responsabilidade das atrocidades cometidas por Mr. Hyde que, por sua vez, faz e realiza tudo o que o médico tem vontade, mas por princípios morais não faz. 

Na verdade, essa questão é justamente parte do "caos" do homem moderno - onde as contradições do individualismo e das relações sociais se chocam, confrontadas pela moralidade cristã, surgimento da psicanálise, medicalização da vida, e tantas mais transformações trazidas pela modernização da vida no século XIX. Um grande mérito que torna essa obra um clássico, tão próxima de nós e um fenômeno da cultura de massa é que, apesar de vivermos já no século XXI, ainda somos filhos desta modernidade.

2 comentários:

  1. Eu não gostei tanto do livro quando finalmente li. Mas isso do desenho do Pernalonga me lembrou um episódio do Pateta que é o Senhor Andante e o Senhor Volante (Mr Walker e Mr Wheeler) que tem bem essa dualidade do normal e o monstro que tá logo ali https://www.youtube.com/watch?v=kFHT1lw3vSI

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    1. Eu lembro desse episódio! hahaha Inclusive, o instrutor mostrou para a gente na auto escola também.

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