O fim do homem soviético, por Svetlana Aleksiévitch (e um pouquinho de Os Irmãos Karamazov)

Irônico como são os livros que nos escolhem e não o contrário. Existe uma afinidade que determina se a leitura será prazerosa, ruim ou, até mesmo, se ela irá até o fim. Acho que é por isso que eu odiava os livros paradidáticos que precisava ler para a escola. Por que 50 alunos tinham que ler, simultaneamente, Camilo Castelo Branco? Eça de Queiroz? Lembro desses nomes com o sentimento de desespero. Era completamente incompatível esses livros e autores com quem nós éramos e o que estávamos fazendo ali.

Enfim... Na tentativa de dar mais atenção aos livros da minha estante durante esta quarentena e pré-mudança aos EUA (que eu não sei quando vai acontecer), voltei meus olhos para "Os Irmãos Karamazov". Eu tenho uma relação bacana com Dostoiévksi. "Crime e Castigo" foi um livro que eu devorei (e até hoje é um dos meus favoritos) e eu peguei meio que por acidente. Não conhecia o autor na época. Depois li outras obras e, na pós-graduação, ainda fiz um curso na Letras sobre Bakhtin que carregava nas análises de obras do autor russo.

Também tinham outros fatores, como o famoso diálogo entre dois irmãos, lugar comum explorado pelos autores contemporâneos. E, finalmente, por causa da quarentena e do momento pós-defesa do mestrado, o tempo estava bem disponível. Parecia que seria uma lua de mel. Mas, infelizmente, foi mais um divórcio. Nossos santos não bateram. Foram +400 páginas, passei pelo tal diálogo, mas foi uma leitura chata, arrastada, complicada... E acabei desistindo. Mas não desisti d"'o homem russo".

Eu li no ano passado "Vozes de Tchernóbil", de Svetlana Aleksiévitch e foi uma das melhores leituras que realizei nos últimos tempos. Desta vez, parti para "O fim do homem soviético". O trabalho de testemunhos de Svetlana é triste e delicado. E também extremamente necessário: num mundo carregado de informações, números, estatísticas, Google e Wikipedia, Svetlana mostra o lado "humano" e "social" da história. Justamente aquele que não valeria a pena ser registrado, porque - em que medida - a experiência individual do fulano da padaria é histórica?

Sem repetir o que já é exaustivamente dito em livros didáticos e qualquer página do Google, tampouco tratando do momento histórico com frieza e distanciamento, os testemunhos trazem a visão do indivíduo que vive o dia a dia, acorda, lê as notícias e tem sua vida - nos mínimos detalhes e nas práticas cotidianas mais primárias - impactada.

Não se trata mais sobre Gulag, queda do muro, Perestroika. Se trata da família destruída por aquele pai que foi preso por conta da denúncia do vizinho, que voltou anos depois, completamente diferente e ainda fiel ao regime que o encarcerou e matou sua esposa em outra campo. Trata-se do sentimento mas íntimo que orienta as pessoas sob a realidade na qual elas vivem. Pessoas como eu e você, como a Maria, o João, o vizinho e primo, o colega da escola.

E depois o choque de gerações. Os mundos dos avós soviéticos, dos pais que lutaram pela "liberdade" e dos filhos que vivem agora no e pelo mercado. São diferentes e contraditórios, colocando em oposição estes indivíduos que dividem o mesmo espaço doméstico, a mesma família, mas que não se compreendem. Parece que se tornam incompatíveis.

Ele nunca vai me entender, nunca vai entender a minha mãe, porque ele não viveu nem um dia sequer no país dos sovietes. Eu... e o meu filho... e a minha mãe... Todos nós vivemos em países diferentes, embora todos eles sejam a Rússia. Mas existe uma ligação bizarra entre nós. Bizarra! Todos se sentem enganados...

Svetlana nos apresenta uma história "literária", em oposição a uma história "científica" e, na minha opinião, é nisto que reside toda a potencialidade de sua obra e porque ela é tão importante para a contemporaneidade. Chega de números, dados... Isso nos afasta, como humanidade, do outro e da nossa história. É o que normaliza a tragédia e a violência. É preciso ver esse "lado humano" da história que vai além das datas, nomes dos políticos e eventos históricos.

E como numa rotatória, não fugi de uma literatura que se questiona sobre "o homem russo". Por isso, Dostoievski é amplamento citado tanto pela própria autora quanto pelos depoentes do livro. Mas também tem outros caminhos que se encontram, pois qualquer olhar contemporâneo sobre nosso passado recente não consegue fugir da violência e crueldade do século XX.

Lembrei, portanto, de Olga Tokarczuk e "Sobre os ossos dos mortos" quando li o trecho abaixo. A denúncia que a autora polonesa faz sobre a violência, o sangue e os ossos daqueles que eram vivos - animais ou humanos - sob o solo onde vive-se e planta-se o próprio alimento impede que uma vida "normal" aconteça. O passado tem materialidade e não é possível fugir disso.

No ônibus, um velhinho foi sentado do meu lado e percebeu que eu não era local: ‘Quem você está procurando?’. ‘Pois então...’, eu comecei. ‘Tinha um campo aqui...’ ‘Ah, os barracões? Os últimos foram demolidos uns dois anos atrás. Com os tijolos desses barracões, as pessoas construíram galpões, saunas. Distribuíram a terra para as datchas. Com o arame farpado do campo cercaram as hortas. Meu filho tem um terreno lá... Não é muito bom, sabe?... Nas plantações de batata, no começo da primavera, as neves e as chuvas desenterram uns ossos. Ninguém se enoja, porque já se acostumaram, aqui a terra está cheia de ossos, são como pedras. Largam nas raias, pisam em cima com o pé. Pisoteiam. Já se acostumaram. É só encostar na terra... mexer um pouco...’

As decisões de canetada parecem definitivas, rápidas, mas o que significa de verdade, na dimensão real e pragmática da vida, uma mudança de regime político, econômico e ideológico? De todas as dimensões abordadas pela pluralidade de testemunhos coletados pela Svetlana, talvez o que me mais me socou no estômago, foram as dos idosos soviéticos. Num mundo pós-soviético, estes foram realmente os que viram e sentiram seu fim prolongado: tornaram-se párias. Antes heróis, tornaram-se bandidos e criminosos. Eles, de fato, viram o mundo acabar e vivem num pós-apacalipse.

Vassíli Petróvitch N., membro do Partido Comunista desde 1922, 87 anos:

(...) Com quem eu iria querer conversar? Poderia falar com o Lazar Kaganóvitch... Sobraram poucos de nós, e menos ainda são os que não estão senis. Ele é mais velho, já tem noventa. Li no jornal... (Risos.) No jornal escreveram que os velhos da vizinhança se recusam a jogar dominó com ele. Jogar cartas. Ele é enxotado:
‘Facínora!’. E ele chora por causa da ofensa. Antigamente era um comissário do povo, tinha mão de ferro. Assinava listas de fuzilamento, aniquilou dezenas de milhares de pessoas. Passou trinta anos ao lado do Stálin. Mas nos anos de velhice não tem com quem jogar um carteado... jogar um dominó... É desprezado pelos
trabalhadores simples... (Começa a falar baixo. Não consigo entender. Pesco só algumas palavras.) É terrível... viver muito é terrível.



Um comentário:

  1. Tá bom. Só de ler os relatos que vc colocou já lembrei que não consigo entender nada. Mas fiquei com vontade de ler Dostoiévski... hehehehe!

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