O Apanhador no Campo de Centeio: o privilégio de viver um dos seus livros preferidos
The Road, by Cormac McCarthy: a messianic tale in a post-apocalyptic world
The Tender Bar, by J.H. Moehringer: a coming-of-age novel inspired by Scott Fitzgerald and the men from the bar
O Corcunda de Notre Dame: minha estreia lendo Victor Hugo
Retrato de Uma Senhora, de Henry James: tradição versus modernidade, casamento e liberdade
Retrato de uma Senhora está entre as obras mais importantes de Henry James e da literatura norte-americana. Depois de A Outra Volta do Parafuso e A Herdeira de Washington Square, Henry James me conquistou e outras obras entraram na lista. E assim comecei The Portrait of a Lady. Foi um dos livros mais difíceis que li nos últimos tempos. Li em inglês e o começo, até me familiarizar com os personagens e ambientes, foi muito devagar e complicado. Mas insisti, funcionou, e segui pelas 800 páginas.
O enredo
Publicado em forma seriada durante o ano de 1881, Retrato de Uma Senhora conta a história de Isabel Archer, uma jovem moça da cidade de Albany, capital do estado de Nova York. Depois que seus pais morreram e suas irmãs se casaram, Isabel estava pobre, sozinha e um casamento era a única coisa que lhe restava. É aí que chega sua tia Mrs. Touchett, irmã de sua mãe e também nascida nos Estados Unidos, e convida-a a seguir com ela para suas casas na Europa, onde já morava há muitos anos. E assim começamos a saga da heroína Isabel Archer: sua chegada nos jardins de uma mansão inglesa, onde ela conhece seu primo Ralph Touchett e seu tio Mr. Touchett.
Na Inglaterra ela conhece Lord Warburton, um dos vários candidatos que vai pedi-la em casamento. O outro galã, ao contrário do lord inglês (como nos romances, Isabel diz), será Caspar Goodwood, um jovem businessman de Harvard, que enriqueceu com a indústria de algodão. (É curioso como James caracteriza este personagem fisicamente: de maxilar quadrado e um porte excessivamente masculino, me trouxe imediatamente a imagem do Gaston, personagem do filme da Disney, A Bela e a Fera.)
Isabel chega na mansão dos Touchett, chamada de Gardencourt, trazendo um frescor inocente, curioso e cheio de otimismo e desejos pela vida. Ela conquista a afeição de seu tio que, no leito de sua morte, decide deixar para a pobre moça uma pequena herança. Ralph, no entanto, de saúde frágil e baixa expectativa de vida, pede ao pai que diminua a sua própria herança e deixe a maior parte para Isabel. Provida de muita dinheiro, diz Ralph, Isabel poderia conquistar a liberdade que tanto desejava. "Mas ela não será vítima de caçadores de fortuna?", pergunta o pai. Ralph confirma que este risco ela irá correr, mas que ele está curioso e gostaria de ver e acompanhar como a prima vai lidar com essas questões.
Mr. Touchett morre, Isabel torna-se uma moça solteira muitíssimo rica e, sedenta por liberdade, recusa os pedidos de casamento do Lord Warburton e de Caspar Goodwood, partindo em direção à Itália com sua tia. A partir daí, a história se desenrola em casarões e ruínas nas cidades de Florença e Roma.
Ainda na Inglaterra, Isabel conhece uma amiga de sua tia que, assim como elas, havia nascido nos EUA, mas morava na Europa já há muitos anos. Mrs. Merle, para Isabel, é a perfeição: elegante, inteligente, culta e sabe agradar. Mrs. Merle também mora na Itália e, depois das pequenas férias em Gardencourt, partirá com Mrs. Touchett e Isabel para Roma e Florença, sendo um personagem importante na segunda parte da história.
Através de Mrs. Merle, Isabel conhece o viúvo Gilbert Osmond, outro expatriado que tem uma filha adolescente, chamada Pansy. Osmond é um personagem interessantíssimo: ele quer ser um aristocrata e vive, fala e se comporta como um. Seu gosto é o puro refinamento da aristocracia e sua visão de mundo é conservadora, mesmo ele sendo pobre e nascido nos EUA. Ele condena tudo o que é do novo mundo, dos novos costumes, e tem um gosto excessivo pelo convencional. (Praticamente um Caco Antibes.)
Mrs. Merle e Osmond têm uma relação bastante suspeita e, após a morte de Mr. Touchett e o recebimento da herança por Isabel, tramam um casamento entre a moça e Osmond. Bom, a partir daí, não vou continuar a história, mas adianto que Isabel - contra tudo e contra todos - decide-se casar com Osmond.
O Novo no Velho Mundo
Apesar da dificuldade que encontrei no começo do livro, por que continuei? Logo de entrada, me interessei demais pela relação de Isabel, uma moça do Novo Mundo, descobrindo as coisas no Velho Mundo. Eu me vi muito nela, quando fui pela primeira vez para a Europa, em 2017. Existe um impacto enorme quando nós, que nascemos e crescemos em países de histórias tão recentes - ex-colônias que conquistaram suas independência há menos de 200 anos -, pisamos em lugares que reinvindicam o início de suas histórias em tempos antes de Cristo.
Não é sem intenção que o autor coloca sua heroína caminhando pelas ruínas do Coliseu. É o velho versus o novo, a modernidade versus a tradição. No campo da geopolítica, era o recente país Estados Unidos da América se legitimar como uma nação potente e não mais como ex-colônia; no campo da literatura, era Henry James colocando sua obra no panteão da literatura ocidental.
Temos uma tendência de idealizar o passado, e mais ainda idealizar um lugar que tem um passado que nós não temos. Estar na Inglaterra e conhecer um verdadeiro Lord, diz Isabel, é "como viver um grande romance". Por isso os personagens deixam os Estados Unidos e, na Europa, vivem uma vida aristocrática parada no tempo, andando a cavalo e caminhando pelas ruas milenares europeias, enquanto do outro lado do Atlântico, linhas ferroviárias estavam sendo construídas para ligar o Atlântico e o Pacífico, metrópoles estavam sendo erguidas, e o avanço tecnológico e financeiro se desenvolvia rapidamente de um dia para o outro.
O progresso tecnológico bate de frente com o conservadorismo social e é aí que entra o casamento frustrado de Isabel Archer.
O casamento como liberdade e prisão
Eu li Isabel Archer e sua saga de duas maneiras.
A primeira, como uma personagem feminina que, com os privilégios de uma boa e confortável educação burguesa, cresce com a inocência e vontade de conhecer o mundo. Ela quer ter novas experiências. Depois que seus pais morreram e suas irmãs se casaram, Isabel se vê sozinha, encantada pelo mundo dos livros e é apenas curiosa. Ela vê no casamento o risco de ficar presa e, com a companhia de sua tia e, depois, absolutamente rica, ela rejeita os pedidos de casamento de Lord Warburton e Caspar Goodwood sob o pretexto de preservar sua liberdade.
Mas o que é liberdade para a mulher no século XIX? Caspar Goodwood diz a ela: solteira, ela não pode andar sozinha por onde bem entender. Uma dama deve estar sempre acompanhada e é constantemente vigiada. Existe uma série de regras sociais do que uma mulher solteira deve ou não fazer para não sujar sua reputação. Só um casamento traria à ela a liberdade que ela desejava.
E é aí que ela vê em Gilbert Osmond, um compatriota, amante da beleza Antiga, que vive na Europa há muitos anos e cria sua filha com o rigor do conservadorismo Católico, a oportunidade de tornar-se uma dama e conquistar sua desejada liberdade nos círculos mais aristocrático europeus.
A segunda leitura foi de Isabel como uma metáfora do próprio país Estados Unidos, que vinha discutindo o conceito de liberdade intensivamente no último século. Quando o livro foi publicado, os EUA eram um país de apenas 105 anos, tendo conquistado sua independência da Grã-Bretanha em 1776. Depois disso, entre 1861 a 1865, o país enfrentou a Guerra de Secessão e, só em 1863 os EUA assinaram a abolição da escravidão. Liberdade era o tema do dia há muito tempo. Além disso, um país extremamente novo, estava procurando se encontrar, construir sua própria identidade, e apesar da tão desejada liberdade, era para a Europa que o país se virava para construir suas referências identitárias e culturais.
Isabel Archer, como uma metáfora dos Estados Unidos, olha encantada para os modos aristocráticos, as ruínas e a tradição do Velho Mundo. Por isso, ela decide casar-se com Gilbert Osmond, o compatriota americano mais conservador que ela poderia encontrar. Caspar Goodwood, o jovem industrialista de Boston, representava o progresso tecnológico, financeiro e o futuro; Lorde Warburton, apesar do título de nobreza, tinha ideias revolucionárias e um engajamento político relevante; Gilbert Osmond era o retrocesso do retrocesso. Sua admiração pelo passado, pelas coisas tradicionais e estáticas, seu gosto pelo Antigo, faz dele um retrógrado. Isabel, na sua inocência, viu no casamento com Gilbert Osmond a possibilidade de unir sua liberdade e juventude com o passado e a tradição.
Essa tentativa de união foi frustrada e deixo aos interessados descobrir porque. Mas acrescento brevemente que, recentemente li A Casa das Sete Torres, de 1850 e escrito Nathaniel Hawthorne. Neste livro, o autor também faz uma crítica à cultura aristocrática numa pequena cidade da Nova Inglaterra, colocando em personagens fantasmagóricos e uma casa mal-assombrada o passado vergonhoso da história de seu país que resistia ao progresso e às mudanças sociais.
Retrato de Uma Senhora é um livro difícil, mas maravilhoso, que pode ser lido sob diversos pontos de vista, principalmente por quem se interessa pela história dos EUA. Minha formação sempre faz eu ir para o lado mais histórico, mas também achei muito interessante como James fala sobre a mulher e o casamento no século XIX. É um autor que constrói grandes mulheres protagonistas, assim como Catherine Hopper, de A Herdeira de Washington Square. Em Retrato de Uma Senhora, Isabel Archer se sente toda hora deslocada, procurando seu lugar e sua identidade. Em alguns momentos ela só quer ser curiosa e aprender, descobrir as coisas. Ao mesmo tempo que existe uma força social daqueles que a rodeiam que manipulam suas ações, mesmo que ela ache que não.
Finalmente, só porque "Persuasão" é o tema do dia
Para finalizar, e ainda nesse assunto mulher e casamento, bem que o livro poderia ser chamar Persuasão, como a obra de Jane Austen. A palavra em si aparece inúmeras vezes durante a narrativa. Isabel é uma vítima da influência de Mrs. Merle e Osmond e, a todo momento, acontece um jogo de quem consegue persuadir quem, sem que a vítima da persuasão perceba que está sendo persuadida.
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Retrato de Uma Senhora foi traduzido por Gilda Stuart e publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras. Há uma versão em e-book para Kindle por menos de 5 reais.
Hamnet, de Maggie O'Ferrell: breves comentários sobre mulheres, heroínas, espaço doméstico
Não sei porque essa mania de ficar se justificando, mas decidi mudar de ideia e escrever sim sobre Hamnet, minha última leitura, já que aparentemente eu estou com dificuldade de começar um novo livro. Criei um vício bobo de precisar fechar um ciclo de leitura com alguns apontamentos para começar outro? Seria poético.
O Instagram esses dias me sugeriu a página Literatura Inglesa Brasil e o post de chamada era o do Clube do Livro, que estava lendo Hamnet, de Maggie O'Ferrell e publicado em 2020. Eu nunca tinha ouvido falar do título, tampouco da autora. Só conhecia a história de Hamlet e sabia que Shakespeare tinha tido de fato um filho chamado Hamnet que morreu anos antes que o autor escrevesse a peça Hamnlet. Achei tudo isso interessante e resolvi dar uma chance.
Foi amor a primeira vista. Que livro magnífico!
Apesar do título e de Hamnet ser um personagem importante, a protagonista é Agnes. As mulheres ocupam um lugar tão importante na narrativa que o marido de Agnes, o famoso Shakespeare, não é uma única vez nomeado em todo o livro. O professor, o marido, o pai, o tutor, etc. Ele é sempre referido de outros jeitos, menos de Shakespeare. Imagina o quanto o poder de Agnes seria diminuído só pelo famoso nome, Shakespeare.
O livro intercala dois momentos: quando Agnes e o Shakespeare se conhecem, se casam e têm seus filhos, e quando Hamnet e sua irmã gêmea Judith ficam doentes e todos os esforços de Agnes para curá-los.
Sob o ponto de vista de Agnes, acompanhamos o dia a dia das atividades domésticas, sua conexão com a natureza. Ela gosta de cuidar do jardim, das abelhas, de sua águia de estimação. Ela conhece as plantas e faz remédios caseiros, sendo procurada por toda a vizinhança pelos suas habilidades medicinais. Ela também tem um passado meio curioso: sua mãe, morta quando ela ainda era pequena, veio da floresta, diziam. Agnes é meio selvagem, meio bruxa. Ela tem sonhos premonitórios e ao segurar a mão de alguém e pressionar suas mãos, ela consegue "ver" suas almas e o futuro. Ela causa admiração e ao mesmo tempo medo aos vizinhos.
Agnes me lembrou muito Morgana, de As Brumas de Avalon. Me lembrou da formação da Inglaterra entre os saxões e os bretões, os bárbaros e os civilizados. Shakespeare era da cidade, urbano, ligado ao comércio e às artes. Agnes era do campo, do meio rural, da terra e da casa. Juntos eles formam um novo povo.
A lembrança de As Brumas de Avalon também veio pela relação entre as mulheres e suas habilidades com as plantas e os animais, ligando-as aos pagãos e condenando-as como bruxas. Finalmente pela centralidade da mulher na história, colocando os homens, o Rei Arthur e o grande Shakespeare, como coadjuvantes numa história na qual as mulheres, escondidas atrás da cortina do teatro, manipularam situações para que estes homens chegassem onde chegaram.
Agnes não sabe ler. Durante os longos meses de ausência de Shakespeare, que trabalhava na capital, é sua filha mais velha que lê as cartas recebidas e redige as missivas ao pai. Agnes nem sempre entende o que vem escrito: comédia? atores? teatro? Porém, algo une o casal: ambos entendem a alma humana, mesmo que seja cada um do seu jeito.
Assim como as peças de Shakespeare conversam até hoje, séculos depois, com a natureza humana, Agnes lia a alma daqueles ao seu redor. Ela entendia suas necessidades, compreendia seus medos, sabia como convencê-los. Agnes é uma ótima esposa, ótima mãe, uma filha que guarda a memória da sua mãe com carinho. Acompanhamos a história dessa mulher no casamento, nos partos e na cama de seus filhos doentes, fazendo de tudo para salvá-los da peste. Depois, acompanhamos o seu luto e o sentimento de que, como mãe, ela havia falhado.
A autora mistura ficção e história, portanto não podemos acreditar que tudo ali tenha acontecido. O único fato histórico do qual realmente temos certeza é que Shakespeare teve um filho chamado Hamnet que morreu ainda criança. Ele ter sido vítima da peste negra é uma teoria da autora, e ela faz isso de maneira fenomenal, conversando com nossa realidade pandêmica Covid-19. (Lembrando que o livro foi lançado em março de 2020!!) O capítulo no qual acompanhamos a pulga que causou o adoecimento de Judith e Hamnet, saindo de Alexandria, Egito, embarcando em um navio e passando meses em alto mar e atravessando continentes, até chegar numa pequena vila rural da Inglaterra, é fenomenal.
Enfim, Agnes me fez perceber que em minhas últimas leituras tenho procurado a heroína que não luta pelo seu espaço no mundo masculino. Pelo contrário. Minhas heroínas reafirmam seus papeis dentro do ambiente doméstico e familiar. Como as donas de casa dos contos de Lucia Berlin, as esposas dos contos de Silvana Ocampo, mesmo a personagem Phoebe de A Casa das 7 Torres, e a própria Morgana de As Brumas. São mulheres que na rotina e no cotidiano transformam a vida doméstica daqueles que com elas habitam. Suas grandes habilidades são a arrumação, a cozinha, o olhar atencioso e cuidadoso e às vezes maléfico. As mulheres de Silvana Ocampo, em suas habilidades femininas, são manipuladoras e vingativas.
Livro recomendadíssimo. Chorei bastante nos capítulos de morte e luto. A leitura é envolvente, bastante visual, e coloca em evidência uma coisa que as vezes é deixada de lado: quando lembramos das mulheres "apagadas" e "esquecidas" da história, não podemos nomear apenas artistas, poetisas, musicistas, cientistas e descobridoras. Se começamos, como sociedade, a falar da "economia do cuidado", então temos também que lembrar de multidões de mulheres que nunca saíram do espaço doméstico e familiar e, nem por isso, não deixaram de ter um impacto enorme nos rumos e na vida daqueles que - de fato - deixaram seus nomes impressos na história.
Ethan Frome - tragédia, solidão e a Nova Inglaterra de Edith Wharton
Ethan Frome me fez conhecer uma nova face de Edith Wharton. Depois de A Época da Inocência e A Casa da Alegria, saí da Velha Nova York aristocrática para conhecer Ethan Frome, um fazendeiro pobre de uma cidade gelada da Nova Inglaterra. Apesar do cenário diferente, a melancolia de Wharton continua. Li por aí uma crítica desfavorável, não lembro mais onde, que felicidade e vida são incompatíveis nas histórias desta autora, como se Ethan Frome fosse exageradamente e desnecessariamente triste demais.
Eu concordo que o que eu li de Wharton até agora é muito triste, mas são tragédias que evidenciam a dificuldade da vida e a hipocrisia social. Não acho, absolutamente, que são tristes por serem tristes, tampouco pedantes. São narrativas sempre envolventes que mostram as condições limitantes da vida humana e a promessa de uma felicidade inalcançavel. Além disso, como veremos, o livro onde li Ethan Frome trouxe outros quatro contos, sendo um deles uma sátira divertidíssima. Ou seja, Edith Wharton pode ser também engraçada.
Obs: como isso é um diário de leitura e a história foi publicada há mais de 100 anos, eu fiz comentários sobre o desfecho do livro.
Ethan Frome
Publicada em 1911, a história do fazendeiro Ethan Frome é emoldurada pela história de um homem que está passando uma temporada de trabalho numa pequena cidade da Nova Inglaterra, Starkfield. Ele não é nomeado e nos apresenta um pouco a dinâmica daquela comunidade. É inverno, faz muito frio, está nevando muito e ele repara, todo dia, no velho aleijado triste Ethan Frome, que todos os dias vai ao correio, não fala com ninguém e logo depois volta para sua casa. O homem fica curioso, conversa com algumas pessoas e descobre que Ethan é um sobrevivente, tendo saído vivo de um acidente muito perigoso. As condições do tempo pioram e o homem contrata Ethan para transportá-lo até o trabalho todos os dias. Um dia, uma tempestade de neve bloqueia o caminho de volta ao vilarejo e Ethan convida este homem a passar uma noite em sua casa. A partir daí, voltamos 25 anos para o passado e a história de Ethan é contada em flashbacks por uma narrador em terceira pessoa.
Resumidamente, Ethan Frome é um fazendeiro pobre, que sonhava em ser engenheiro mas largou seus estudos precocemente depois da morte de seu pai, indo cuidar de sua mãe e, depois, casando-se e cuidando da propriedade que herdou. Com medo da solidão e do silêncio, depois da morte da sua mãe, casou-se com Zeena, a cuidadora, para que ela não fosse embora e continuasse a deixar as impressões femininas naquela casa. De saúde debilitada, Zeena recebe sua jovem sobrinha orfã, Mattie, para ajudá-la com as atividades domésticas. Ethan se apaixona por essa moça, que corresponde seus sentimentos.
Zeena não fala nada, mas percebe o que está acontecendo e constrói um situação na qual uma nova garota será contratada para assumir as tarefas domésticas para Mattie ir embora. Ethan e Mattie ficam devastados e, durante suas últimas horas juntas, eles decidem fazer algo que acaba de forma inesperada. Para nunca mais se separarem, Mattie propõe que eles se suicidem e Ethan acaba cedendo. Só que o acidente não os mata, mas os deixa inválidos para sempre. Ethan aleijado e Mattie paraplégica. No epílogo, voltamos para o tempo presente e descobrimos, pelos olhos do narrador sem nome, que há 25 anos, Mattie e Ethan continuam morando na mesma fazenda sob os cuidados de Zeena.
Essa tragédia me deixou fascinada. Apesar da paisagem fria e congelante da Nova Inglaterra e da pobreza e miséria em que vivem os personagens de Ethan Frome, há um aspecto similar das outras obras de Wharton que se passam na Velha Nova York: o vazio, a ausência, o silêncio, o não dito, a idealização frustrada do casamento e a procura de felicidade sufocada pelas condições materiais e sociais da vida humana. O que resta é a promessa vazia, relações miseráveis e uma solidão profunda.
Tanto a história moldura quanto os flashbacks se passam num longo e rigoroso inverno de Massachussets, o que torna a fazenda de Ethan ainda mais isolada do resto do mundo. Tão definitivo é o inverno na vida das pessoas, que a contagem do tempo é feita pelo número de invernos passados. Esse isolamento faz de Ethan um homem frustrado, que abdicou do seu sonho de estudar e tornar-se engenheiro para cuidar de sua família e propriedade. Casou-se com Zeena com o medo do silêncio, apenas para ter mais alguém vivendo sob o mesmo teto. Mas a relação entre eles é tão fria quanto o lugar onde moram. Mattie é a jovem forasteira que chega trazendo beleza, juventude e um frescor para esse ambiente opressor. Ethan sonha com uma outra vida com ela, mas não tem recursos para pedir um divórcio ou fugir com a amada, restando apenas a amargura e mesquinharia de sua esposa.
Mas veja, o narrador em terceira pessoa escreve principalmente sob o ponto de vista de Ethan e, por isso, neste triângulo amororo criamos compaixão com Ethan e Mettie, enquanto Zeena é a bruxa amargurada da história que trama contra a união dos pombinhos. Porém, Zeena era uma pessoa cheia de vida que iluminava a casa da fazenda e, sob a promessa de que depois do casamento iriam vender a propriedade e mudar-se para uma cidade, aceitou a proposta de união de Ethan. Mas o tempo foi passando, a fazenda não foi vendida e lá eles foram ficando. O isolamento e o frio da região e de seu marido foram tornando sua figura cada vez mais amargurada e hipocondríaca.
Mattie, a jovem inocente vítima das artimanhas de Zeena sob os olhos de Ethan, também não é tão coitada assim. Apesar de sua obediência e esforço diário nas atividades domésticas e cuidados com a saúde de Zeena - habilidades para as quais ela não tem vocação - confronta sua prima quando pega uma louça escondida do armário.
Ou seja, esses personagens vivem uma vida que odeiam. Ninguém é vítima, mas as amarras sociais, ou seja, o fato de que não têm dinheiro nem lugar para irem, faz com que eles fiquem presos uns aos outros. Sem conseguir se rebelar, largar tudo e fugir, eles acabam desafiando uns aos outros nas pequenices da vida doméstica. Os confrontos existem e estão lá, mas eles são sutis.
Estou falando tudo isso porque pesquisando brevemente sobre o livro vi duas coisas. Primeiro, muita gente não gosta do livro. Ele é leitura obrigatória no ensino básico nos EUA e fazer adolescente ler por obrigação um livro desse, completamente niilista e melancólico, com a paisagem fria, congelante, onde pouca coisa acontece, só pode dar nisso mesmo. Por causa desse descontentamento, alguns comentários tendem a diminuir o livro porque tiram sarro de algumas situações, como o prato de picles e o acidente de trenó. Porém, a história se passa no meio do nada, onde é possível fazer menos ainda por causa do frio. É justamente por causa desse vazio que pequenas coisas, como uma louça quebrada, ganham dimensões enormes. Além disso, uma vida dominada pelo tédio, sem televisão, luz elétrica, aquecimento interno, etc, escorregar de trenó na neve é uma das pouquíssimas coisas que sobram para fazer.
A segunda coisa que vi é a interpretação de que se trata de uma história romântica. Eu discordo desta leitura. Acho que Ethan é um homem infeliz, fraco, que prendeu Zeena nessa situação que ela nunca quis, a ignora como marido, e projeta nestas duas mulheres com quem vive suas frustrações e desejos e acaba tornando tudo muito miserável.
Infelizmente, colocar livros clássicos como obrigatórios no ensino básico diminui bastante a popularidade da obra. Eu lembro com agonia os livros que fui obrigada a ler no Ensino Médio. Quando somos adolescentes, esses livros são chatos. É preciso ter certa maturidade de leitura para ler Ethan Frome e estar preparado para o nada. Para a ausência. Para o que é dito pelo não dito. Com certeza a leitura dos dois romances anteriores me preparou para isso.
O meu comentário final se refere à dificuldade da leitura. Como é um livro muito descritivo onde pouca coisa acontece, foi muito difícil ler em inglês. Com certeza demorei mais por isso e várias vezes precisei procurar palavras no dicionário. Nesse sentido, o Kindle ajudou.
Ah, uma outra coisa: recentemente li A Casa das Sete Torres, de Nathaniel Hawthorne, uma história que também se passa numa cidadezinha da Nova Inglaterra. Ethan Frome foi um ótimo complemento, porque enquanto no primeiro a leitura nos coloca num cenário urbano, Wharton nos leva para um ambiente rural. Em ambos, todavia, são as atividades domésticas, a casa e a relação entre aqueles que vivem juntos sob quatro paredes que constituem o motor principal das tramas.
Os quatro contos
Dos outros quatro contos que vieram no livro, falarei brevemente sobre os dois que mais gostei. Afterward é um conto gótico, no qual um casal norte-americano muda-se para um antigo casarão de uma cidade rural da Inglaterra. Para eles, esta é uma experiência exótica e nesta nova residência eles esperam encontrar fantasmas. No entanto, antes mesmo da compra, eles haviam sido avisados que nesta casa havia sim muitos fantasmas, mas quem os vê, não sabe que os vê. Indignados, eles perguntam novamente "- Ou seja, se você viu um fantasma, você não sabe que viu e vai viver sua vida normalmente? Qual a graça disso?". E a resposta: "Bom, pode até ser que acabe sabendo, mas só depois".
Essa premissa do conto deixa tudo interessante e o ambiente misterioso da casa é ótimo. A descrição da biblioteca, os vultos, o comportamento estranho do marido e a desconfiança da esposa que passa a duvidar de si mesma tornam a história muito interessante. O desfecho é ótimo!
Xingu é uma sátira. Um grupo de seis mulheres aristocráticas montam um clube de leitura e estudos e, periodicamente, se reunem para discussões de "alto nível intelectual". Mas a verdade é que elas não sabem nada e fazem isso apenas pela aparência. Até que uma delas volta de uma viagem do Brasil e passa a ser ridicularizada pelo restante do grupo. Durante uma reunião, convidam para o almoço a autora do livro que vinham discutindo e elas ficam perdidas quando a autora, de sacanagem, começa a fazer perguntas cabeludas as quais elas nao conseguem responder. A mulher que voltou de viagem aproveita a brexa e, também por sacanagem, diz que elas estão sem conseguir responder porque nos últimos tempos estavam muito preocupadas com um tema importantíssimo: o "Xingu". Ninguém sabe o que é Xingu, mas todas conduzem a conversa como se soubessem do que estão falando e acaba sendo muito engraçado.
Eu amo Edith Wharton. Acho uma pena ela não ser muito conhecida no Brasil e não ter mais obras traduzidas. Alguns contos ou passagens mais descritivas têm uma leitura mais difícil. Enfim, leitura magnífica e recomendadíssima.
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No Brasil, Ethan Frome foi lançado pela Editora Penalux, com tradução de Chico Lopes, em 2017.
Goodbye, Columbus and five short stories - primeira vez lendo Philip Roth nos Estados Unidos
Venho lendo Philip Roth desde 2019, mas esta foi a primeira leitura que fiz nos Estados Unidos. Não é que tudo mudou, mas algo mudou.
Goodbye, Columbus and five short stories foi o livro de estreia do autor em 1959. Diferentemente dos outros que eu já li, este tem um ritmo mais tranquilo. Não tem aquela velocidade verborrágica de O Complexo de Portnoy ou Pastoral Americana. Adeus, Columbus se passa durante as férias de verão e descreve o romance entre Neil Klugman e Brenda Patimkin. Os dois são de família judias, mas a de Neil é pobre. Seus pais moram em outro estado e ele vive de favor com seus tios. Neil é também o narrador da história e tem um trabalho de baixa remuneração na Biblioteca Pública de Newark.
Ele conhece Brenda na piscina do clube que está frequentando. A família de Brenda tem uma situação financeira muito mais confortável. Ela é estudante em Radcliff College, Massachussets, e está passando as férias de verão com sua família em Newark. São pelos olhos de Neil que conhecemos Brenda, uma moça atlética, bonita, inteligente, e a sua família. Quando Neil é convidado para jantar com os Patimkin, é com Neil que entramos nos cômodos da enorme casa onde boa parte da história se passa, visualizamos o jardim, acompanhamos a rotina e conhecemos as personalidades dos integrantes daquela família.
A diferença entre os Klugman e Patimkin vão além do dinheiro. A mãe de Brenda se diz ortodoxa, seu marido é conservador e Brenda, segundo ela, não segue nenhuma linha. Quando Mrs. Patimkin pergunta para Neil qual corrente ele seguia e qual Sinagoga frequentava, Neil responde "- Eu sou apenas judeu".
Eu gosto muito como Roth coloca essas questões de identidade, religião e família dentro do espaço doméstico e das relações mais cotidianas da vida, pois são nesses momentos onde as diferenças se tornam mais problemáticas. Estes elementos já eram bem sensíveis para mim nas outras leituras, mas este livro trouxe uma vivência nova para mim. Aqui nos Estados Unidos estamos entrando na primavera depois de um frio horroroso, as temperaturas estão subindo, e as aulas já acabaram para dar início às férias de verão. Aqui as estações são muito bem demarcadas e há uma vontade coletiva de aproveitar cada segundo as altas temperaturas do verão. Por isso, as férias longuíssimas que começam em maio e vão até meados de agosto.
Brenda estuda em Massachussets, na Nova Inglaterra. Um lugar frio e desagradável (eu acho desagradável sim) para passar de 3 a 4 meses na casa dos seus pais apenas curtindo as férias e o calor, indo para a piscina, jogando tênis, saindo com os amigos. É um momento fora da realidade. Com data e hora para acabar. Já aprendemos nos filmes da Sessão da Tarde que qualquer romance que começa numa férias de verão é como um sonho e que, na chegada do outono, precisa encarar a realidade. Assim, já é esperado que Brenda vá embora de Newark no fim das férias. A dúvida que resta é como será o desfecho do romance entre o casal.
Ler ou já conhecer o lugar sobre o qual o autor fala também nos dá uma dimensão muito palpável do que ele está descrevendo. Na passagem em que Neil e Brenda vão para New York para que ela se consulte com um médico em frente ao Central Park, eu senti que estava lendo algo muito familiar. Por mais que seja uma delícia voar para outros mundos e realidades através da leitura, a proximidade com certos elementos - como a descrição da esquina onde estava o consultório - cria uma relação diferente - diria até íntima - com o autor e sua obra.
É uma história curta, gostosa de ler. As questões das famílias judaicas americanas ficam nas entrelinhas - salvo alguns momentos específicos como este breve diálogo entre Mrs. Patimkin e Neil. É um ótimo livro inicial para quem nunca leu Roth, pois O Complexo de Portnoy pode assustar um pouco, e Pastoral Americana e A Marca Humana é de uma leitura frenética que nos impede de suspirar.
Junto com Goodbye, Columbus, vieram cinco contos - ou short stories. Algumas já haviam sido publicadas em revistas. Mais uma vez vemos elementos como identidade, subjetividade, as famílias judias nos Estados Unidos e seus descendentes, os dogmas e fanatismo religioso. Veja o que eu acho louvável em Roth: em seus livros - e nestes cinco contos - ele fala do deslocamento do homem judeu nascido na América, o preconceito, a sensação de estar fora do lugar, os traumas históricos, colocando um olhar crítico também dentro deste círculo. Seus ataques afiados não se limitam do fora para dentro dessa comunidade, mas também traz críticas severas que ficam dentro deste grupo. Não há vítimas nas histórias de Roth. Todo mundo é ambíguo e problemático: quase uma questão genética.
Dentre os cinco contos, The Conversion of Jews, Defender of the Faith e Eli, the Fanatic, foram meus favoritos. Na primeira, um menino judeu curioso chamado Ozzie, pergunta ao Rabino por que Deus, que é absolutamente todo poderoso, não poderia ter engravidado Maria sem relação sexual e, portanto, ter tido um filho com ela. Por que, ele se pergunta, se Deus criou até a luz, ele nao poderia ter um filho sem penetração com uma mulher? O resultado para o pequeno Ozzie não é agradável. Ao invés de receber uma resposta satisfatória, ele apanha do Rabino e sangra. Sua mãe também reprova seus questionamentos. No dia seguinte, ele sobe no telhado e, diante de uma ameaça, faz todos reconhecerem que Jesus era sim filho de Deus. Neste conto, Roth faz uma alusão à passagem bíblica Romanos 11:25, que prevê a conversão de todos os judeus ao cristianismo como um evento do fim dos tempos. Roth é sempre muito simbólico, mas este conto consegue ser desesperadamente simbólico.
O segundo conto dentre meus favoritos, Defender of the Faith, conta a história de um tenente judeu americano, Marx, que lutou em batalhas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial e agora está recrutando e treinando novos soldados em Missouri. No seu campo de treinamento ele conhece três soldados judeus e um deles, Sheldon Grossbart, procura insistentemente benefícios e regalias justificando a origem judia comum entre eles. Ele se diz defensor da fé por requisitar dias de descanso, saídas para almoço em família, comida kosher e tudo o que lhe permitisse continuar com os rituais religiosos apesar do ambiente e rotina militar.
Num determinado momento, o superior de Marx, o Captain, fala para Grossbart que Marx estava há 3 anos e dois meses no exército, sendo um ano em combate, e que o Lieutenant nunca havia pedido saídas especiais, tampouco comida diferente. Grossbart responde que isso acontece porque algumas coisas são mais importantes para alguns judeus do que para outros. E o Capitão responde:
- Look, Grossbart. Marx, here, is a good man - o goddam hero. When you were in high school, Sargeant Marx was killing Germans. Who does more for the Jews - you, by throwing up over a lousy piece of sausage, as piece of first-cut meat [porque não são kosher], or Marx, by killing those Nazi bastards? If I was a Jew, Grossbart, I'd kiss this man's feet. He's a goddam hero, and he eats what we give him.
Olhando este diálogo, fica a questão: quem é aqui o defensor da fé?
Enfim, quando publicado, este conto foi muito mal recebido pela comunidade judaica, que acusou Roth de ser um self-hating jew.
Finalmente, Eli, the Fanatic, conta a história de Eli, um advogado judeu que mora numa comunidade com protestantes que se vêem "ameaçados" pela chegada de judeus ortodoxos. Fugindo dos combates da Segunda Guerra, estes judeus se instalam nessa pequena cidade americana com vários meninos e começam a montar uma escola Talmund Torah. A violência já começa com a tentativa de segregação no processo jurídico que a atual comunidade - de judeus e protestantes - querem abrir contra a instalação dos recém-chegados. Mas tudo ganha uma nova dimensão quando o advogado veste as roupas negras do seu "inimigo" e ele mesmo se torna o "outro".
Recomendadíssimo. Com certeza um dos melhores livros que lerei este ano. Vi na Amazon Brasil que tem uma edição da Companhia da Bolso e disponível também para Kindle.
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Alguns links interessantes:
Brevíssimos comentários sobre O Monge, o livro do Clube de Leitura de Abril
Acabei de ler O Monge semana passada, mas não sei muito bem o que falar dele e fiquei enrolando até hoje para escrever algumas linhas. Li porque foi a leitura programada deste mês do clube do livro. A sinopse me pareceu interessante, ouvi falar muito bem, mas não é um livro da minha caixinha. Eu não leio muito coisas escritas antes de 1850. Na verdade, até pouco tempo atrás, minhas leituras eram muito mais século XX e só nos últimos meses tenho lido mais século XIX. O Monge foi escrito pelo inglês Matthew Gregory Lewis e publicado em 1796! Século XVIII é um pouco longe demais para mim.
Não é que eu não gostei! Eu gostei bastante sim! É uma narrativa cheia de surpresas. Um eita atrás de eita! Só não rolou aquela identificação.
O livro conta duas histórias paralelas, cujos personagens se entrecruzam no tempo e espaço. A maior parte se passa na Espanha, dentro de um convento, um mosteiro, e umas ruínas subterrâneas labirínticas que compartilham o mesmo subsolo destes dois edifícios. Dada a época e local, a Inquisição é uma instituição muito presente, apesar de só no final ela aparecer de forma mais concreta. A burocracia, a estrutura de poder, a moral repressora da Igreja Católica sobre as pessoas e suas relações com os outros e seus próprios corpos... Tudo isso aparece o tempo todo.
Em uma história, acompanhamos o Padre Ambrosio* que, ao ser seduzido por uma mulher, descobre as tentações da carne e não consegue mais fugir de sua luxúria. A outra história é um romance de cavalaria. Acompanhamos Dom Raymond, um cavaleiro, sua mulher amada Agnes e Lorenzo, irmão de Agnes e amigo de Lorenzo. Por causa de uma promessa feita no nascimento de Agnes pelos seus pais, a moça é prometida a Deus, mas ela e Raymond são apaixonados um pelo outro. Por causa de mil infortúnios, ela não consegue fugir de seu destino e acaba se tornando freira. Nesta história acompanhamos seu amado e seu irmão tentar de tudo para resgatá-la das paredes e regras opressoras do convento.
As idas e vindas de Raymond, Agnes e Lorenzo eu achei mais legal. Na longuíssima introdução destes personagens, Raymond faz uma retrospectiva e conta suas aventuras aos redores de Paris numa casa de um grupo de bandidos que quer matá-lo, depois sua ida a um castelo em Strasbourg, onde conheceu Agnes, sua experiência de quase morte nas mãos de um fantasma, seu exorcismo e, finalmente, seu retorno a Madrid para salvar sua amada. Essa parte é muito legal, principalmente quando uma confusão entre Agnes e a fantasma que assombra o castelo, a Bleeding Nun, acontece. Raymond também tem um escudeiro, Theodore, que escreve poesia, é jovem e animado. Essa parte do livro lembra um pouco Dom Quixote e foi uma delícia ler. (Aliás, a Bleeding Nun é um personagem muito interessante!)
A primeira metade do livro é divertida: na história de Ambrosio, um eita atrás de eita, e na história de Agnes, Raymond e Lorenzo, uma aventura cavaleiresca com toques fantasmagóricos. Na segunda parte, no entanto, comecei a ficar cansada.
Século XVIII, Inquisição, Deus, Diabo. Existe uma discussão moral muitíssimo forte. A culpa, a tentação, o pecado, o perdão, as instituições religiosas, etc são temas aparecem em longos sermões, diálogos e fluxos de pensamentos num estilo rocambolesco. Ninguém no século XVIII vai direto ao assunto. Normal. Só que isso deixou a leitura cansativa e no final eu só estava "ai, tá bom, vai logo". Só frizando: são temas e assuntos sobre os quais não leio muito, que não estão em minhas leituras rotineiras. Então não tenho muito o que falar sobre tudo isso.
De qualquer maneira, o livro tem um grande valor. Ainda mais para lembrar que só porque existiam instituições reliogiosas muitissímo rigorosas, as pessoas não deixavam de pensar e falar obscenidades, não deixavam de fazer sexo e não desafiavam as regras institucionais. Durante um semestre na faculdade cursei a disciplina de História Medieval II, que foi quase um curso de como os homens medievais eram pervertidos. Praticamente um grupo de whastapp de homens dos dias de hoje impressos em pinturas, literatura e esculturas nas paredes de todos os edifícios possíveis numa estética medieval.
Enfim, se eu fosse dar uma avaliação de estrelinhas, eu daria nota 3 - relativamente recomendado. O livro é bom, divertido, mas não fez aquela conexão com meus gostos e assuntos de interesse.
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* Esquerdo-macho do século XVIII, que tem um papinho sedutor e as meninas amam.
O Mundo da Escrita, de Martin Puchner: um livro ambioso
No começo do ano comecei a ler O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização, de Martin Puchner, com tradução de Pedro Maia Soares e publicado pela Companhia das Letras em 2020. Ele estava há algum tempo no meu kindle e por isso viajou comigo para os EUA.
Os capítulos são mais ou menos curtos, então decidi que leria um capítulo por vez sem compromisso. Não gostei da experiência. Levei quatro meses para terminar e acabou me faltando um pouco aquela sensação de linearidade que perpassa uma obra - mesmo que os capítulos sejam mais ou menos independentes.
A proposta é ambiciosa: entender como a escrita foi decisiva para os rumos da história. Para isso, ele parte das primeiras narrativas orais e surgimento da escrita (tanto no aspecto social quanto tecnológico) e chega até os dias de hoje, com o fenômeno Harry Potter e a internet. Puchner nos mostra que coisas que nós tomamos como naturais, na verdade não são. Como por exemplo: a junção da escrita, criada para fins administrativos, com as narrativas orais. O surgimento da literatura não foi óbvia. Também nos mostra o processo de inscrição de mitos de criação e o surgimento de "textos sagrados". Puchner também investiga o desenvolvimento tecnológico ao longo da história da escrita: pedras, papiros, códices, a imprensa, computadores, internet e tablets.
Sua ambição não acaba aí. Ele analisa geograficamente todo esse processo histórico, recuperando exemplos em todos os continentes e mostrando as particularidades de cada civilização. Também explora a questão de grandes mestres que entraram para o mundo da escrita sem nunca terem escrito uma palavra, como Buda, Jesus, Sócrates e Confúcio. E por que os textos escritos pelos pupilos destes grandes homens se tornaram ora textos sagrados ora textos filosóficos?
Um livro desta ambição pode apresentar um grande problema: exaustão e superficialidade. Acho que o autor lida bem com essas questões. É um livro cansativo sim, especialmente nas partes que ele conta as viagens pessoais que ele fez como pesquisa, mas não tanto. Uma leitura sem compromisso funciona bem. A superficialidade também existe, mas não é rasa. Ela é uma introdução a uma série de assuntos interessantes com os quais dificilmente teríamos contatos.
Por exemplo, o capítulo sobre o Romance de Genji, "o primeiro grande romance da literatura universal que foi escrito por uma dama de companhia da corte japonesa por volta do ano 1000". A história da poetisa e escritora Murasaki Shibiku é interessantíssima. Numa sociedade de corte extremamente rígida em questão de gênero, ela aprendeu a literatura chinesa de forma clandestina para então escrever o Romance de Genji. Mais velha, já afastada da literatura, ela registrou toda sua história em um diário.
"Depois de ter sido casada com um homem mais velho e ter sido acompanhante de uma princesa, a identidade que ela escolheu conservar foi aquela que adquiriu por iniciativa própria: a de escritora." (p. 169)
Outro capítulo favorito é o da poetisa russa Anna Akhmátova. Nos capítulos anteriores, Puchner procura entender o surgimento de manifestos e o desenvolvimento de uma tecnologia e distribuição de um gênero que possibilitou revoluções e quedas de regime até chegar na União Soviética. Em seguida, tomando como exemplo a vida de Anna Akhmátova, ele procura entender como, apesar de todos os avanços tecnológicos de inscrição e reprodução, um estado autoritário levou a poetisa à métodos pré-Gutemberg: narrativa oral e memória. Como não podia criar registros incriminatórios, Anna Akhmátova reunia suas amigas em torno de uma mesa de chá e cada uma era responsável pela memorização de certas estrofes. Mulheres russas no século XX, em torno de uma mesa de chá, subvertendo o governo por meio de memorização e narrativa oral.
"O trecho mais revelador [do poema Réquiem] falava de mulheres, mães e esposas que se reuniam todos os dias diante de uma prisão, esperando para saber se seus entes queridos tinham sido executados ou exilados. 'Queria chamar a todas pelo nome/ Mas tiram-me a lista e não há como saber'.
O poema em construção estava seguro enquanto Akhmátova memorizasse cada seção e queimasse imediatamente, mas sobreviveria apenas enquanto ela mesma sobrevivesse. Para que vivesse, o poema precisava ser compartilhado, ocupar a memória dos outros. Com cautela, Akhmátova convocou suas amigas mais próximas, não mais que uma dezena de mulheres, e leu o poema para elas muitas vezes até que o decorassem."
Mas outros capítulos também são interessantíssimos, como a prática de indulgência da Igreja Católica e sua relação com o desenvolvimento técnico da imprensa. Ou então, como o fenômeno Dom Quixote pode ser reconhecido como a primeira obra dentro de um mercado literário moderno tal como conhecemos hoje: autoria, direitos autorais, mercado, plágio.
O livro é interessante e me fisgou pela sua introdução. Eu recomendo baixar uma amostra pelo Kindle e ler só a introdução. (risos)
Puchner faz uma interpretação belíssima da leitura de passagens do livro de Gênesis pelos três astronautas norte-americanos no momento em que pisaram na lua. Do espaço, para um público imenso que assistia da Terra, a leitura dessa obra remetia à Guerra Fria e seus rivais russos. Iúri Gagárin, o primeiro homem a viajar para o espaço, disse quando retornou à Terra: "Olhei e olhei, mas não vi Deus". Essa anedota é também um resumo da história da civilização ocidental que dependeu da criação da escrita e o registro impresso de uma mitologia que veio a se tornar um texto sagrado, a Bíblia. Como ele vê toda a história da humanidade neste único ato é simples, didática e, ao mesmo tempo, complexa. Ele explora muitas camadas de significados neste ato que, a princípio, parece inocente, ou não tão importante assim.
"Mas a lição mais importante da Apollo 8 diz respeito à influência de textos fundamentais como a Bíblia, textos que acumulam poder e significado ao longo do tempo, de tal modo que se tornam códigos-fontes para culturas inteiras, contando aos povos de onde eles vieram e como deveriam levar suas vidas. No início, esses textos eram frequentemente repetidos e transmitidos por sacerdotes, que os reverenciavam e os preservavam no centro dos impérios e nações. [...]
A União Soviética havia sido fundada com base nas ideias articuladas num texto muito mais recente do que a Bíblia. O Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friederich Engles e avidamente lido por Lênin, Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh e Fidel Castro, tinha apenas 120 anos, mas procurava competir com textos fundamentais mais antigos, como a Bíblia. [...]
Lá no espaçoo, tratava-se de uma batalha de ideias e livros." (p. 13-14)
Enfim, livro bom. Não ótimo. É ambiocioso demais querer falar sobre todos os lugares ao longo de toda a história humana, mas cumpre bem o propósito de nos ensinar coisas novas e atiçar nossa curiosidade. Como um ponto de partida, ele é excelente. Finalmente, essa leitura também me ensinou que não nasci para ler mais de um livro ao mesmo tempo. Melhor continuar a passos de tartaruga e com um de cada vez.
Eight-day trip in Texas (Dallas, Odessa, Alpine, Big Bend and Austin) - Spring Break
For the first time, after eight months living in New York City, Allan and I had some time (unfortunately not money, but we made it anyway) to travel within the US and enjoy our one-week spring break (March 11th - 18th). We were tired of NY: the winter, the snow, the noises, the "everything is so expensive!", the typical new yorker rush and bad mood, the subway, the dirty, etc. So Allan, who planned the whole trip, chose the completely opposite of what we were living: we will go south, he said. No more Yankees. We will go to the Southest we can. So he took me to the US and Mexico border.
This was our first time in Texas. Everything was new and different. Besides having fun and feeling the sun on my skin after so many months, this trip was also a kind of an anthropological experience. I am going to list, day by day, our itinerary and the remarks of each day. This is neither a travel guide nor an analyses of my observations. This is just a small note so I can remember things in the future when I get old. Besides, I'm writing in English which is NOT my native languages. Many mistakes, but I don't care anymore like I used to.
Day 1 - Dallas
We arrived in Dallas in the morning. We barely left the airport and we saw the cowboys and cowgirls. I loved their style of boots, hats, belt. The cowgirls have a beautiful fancy-country style. The weather was not so pleasant, but it didn't mind. We just needed to eat and sleep. So we took advantage of the tex-mex cuisine (the first tex-mex meal of the whole trip) and of silence. Yes. Absolutely no sirens, no horns, no people screaming on the street. We slept like babies.
Day 2 - Dallas and Odessa
Now the fun began. We woke up very early because we had until noon to enjoy downtown Dallas before taking the car and going to Odessa. But, first things first. As a Brazilian, hotel breakfast in the US is a little bit frustrating. Much cereal, oatmeal, suspicious scrambled eggs, waffles, watered coffee and TOO MUCH garbage. Everything was disposable: plates, silvery, cups. I was not comfortable at all and this situation was the same in every hotel we stayed in Texas.
The image I had of Dallas was from the movie Dallas Buyers Club. I imagined cattle, cowboys, and rodeos. However, now I'd say Dallas is half cowboy half JFK assassination. Every where you go in Dallas is about Kennedy. There is a memorial (beautiful, btw) for the president and then we took a tram tour around Dallas downtown that followed all the steps of the ex-president murder. We started riding on the same avenue in which he was parading minutes before he was murdered, than we stopped at the spot where he got shot. On the pre-recorded narration we listened while we were riding, SHOT SHOT SHOT. It was terrifying. I was really scared. I felt I was living a true crime episode of Netflix. It is surprising the attraction for murder history and gun violence in the United States. It is morbid.