O Mundo da Escrita, de Martin Puchner: um livro ambioso

No começo do ano comecei a ler O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização, de Martin Puchner, com tradução de Pedro Maia Soares e publicado pela Companhia das Letras em 2020. Ele estava há algum tempo no meu kindle e por isso viajou comigo para os EUA. 

Os capítulos são mais ou menos curtos, então decidi que leria um capítulo por vez sem compromisso. Não gostei da experiência. Levei quatro meses para terminar e acabou me faltando um pouco aquela sensação de linearidade que perpassa uma obra - mesmo que os capítulos sejam mais ou menos independentes. 

A proposta é ambiciosa: entender como a escrita foi decisiva para os rumos da história. Para isso, ele parte das primeiras narrativas orais e surgimento da escrita (tanto no aspecto social quanto tecnológico) e chega até os dias de hoje, com o fenômeno Harry Potter e a internet. Puchner nos mostra que coisas que nós tomamos como naturais, na verdade não são. Como por exemplo: a junção da escrita, criada para fins administrativos, com as narrativas orais. O surgimento da literatura não foi óbvia. Também nos mostra o processo de inscrição de mitos de criação e o surgimento de "textos sagrados". Puchner também investiga o desenvolvimento tecnológico ao longo da história da escrita: pedras, papiros, códices, a imprensa, computadores, internet e tablets. 

Sua ambição não acaba aí. Ele analisa geograficamente todo esse processo histórico, recuperando exemplos em todos os continentes e mostrando as particularidades de cada civilização. Também explora a questão de grandes mestres que entraram para o mundo da escrita sem nunca terem escrito uma palavra, como Buda, Jesus, Sócrates e Confúcio. E por que os textos escritos pelos pupilos destes grandes homens se tornaram ora textos sagrados ora textos filosóficos?

Um livro desta ambição pode apresentar um grande problema: exaustão e superficialidade. Acho que o autor lida bem com essas questões. É um livro cansativo sim, especialmente nas partes que ele conta as viagens pessoais que ele fez como pesquisa, mas não tanto. Uma leitura sem compromisso funciona bem. A superficialidade também existe, mas não é rasa. Ela é uma introdução a uma série de assuntos interessantes com os quais dificilmente teríamos contatos. 

Por exemplo, o capítulo sobre o Romance de Genji, "o primeiro grande romance da literatura universal que foi escrito por uma dama de companhia da corte japonesa por volta do ano 1000". A história da poetisa e escritora Murasaki Shibiku é interessantíssima. Numa sociedade de corte extremamente rígida em questão de gênero, ela aprendeu a literatura chinesa de forma clandestina para então escrever o Romance de Genji. Mais velha, já afastada da literatura, ela registrou toda sua história em um diário. 

"Depois de ter sido casada com um homem mais velho e ter sido acompanhante de uma princesa, a identidade que ela escolheu conservar foi aquela que adquiriu por iniciativa própria: a de escritora." (p. 169) 

Outro capítulo favorito é o da poetisa russa Anna Akhmátova. Nos capítulos anteriores, Puchner procura entender o surgimento de manifestos e o desenvolvimento de uma tecnologia e distribuição de um gênero que possibilitou revoluções e quedas de regime até chegar na União Soviética. Em seguida,  tomando como exemplo a vida de Anna Akhmátova, ele procura entender como, apesar de todos os avanços tecnológicos de inscrição e reprodução, um estado autoritário levou a poetisa à métodos pré-Gutemberg: narrativa oral e memória. Como não podia criar registros incriminatórios, Anna Akhmátova reunia suas amigas em torno de uma mesa de chá e cada uma era responsável pela memorização de certas estrofes. Mulheres russas no século XX, em torno de uma mesa de chá, subvertendo o governo por meio de memorização e narrativa oral. 

"O trecho mais revelador [do poema Réquiem] falava de mulheres, mães e esposas que se reuniam todos os dias diante de uma prisão, esperando para saber se seus entes queridos tinham sido executados ou exilados. 'Queria chamar a todas pelo nome/ Mas tiram-me a lista e não há como saber'. 

O poema em construção estava seguro enquanto Akhmátova memorizasse cada seção e queimasse imediatamente, mas sobreviveria apenas enquanto ela mesma sobrevivesse. Para que vivesse, o poema precisava ser compartilhado, ocupar a memória dos outros. Com cautela, Akhmátova convocou suas amigas mais próximas, não mais que uma dezena de mulheres, e leu o poema para elas muitas vezes até que o decorassem."

Mas outros capítulos também são interessantíssimos, como a prática de indulgência da Igreja Católica e sua relação com o desenvolvimento técnico da imprensa. Ou então, como o fenômeno Dom Quixote pode ser reconhecido como a primeira obra dentro de um mercado literário moderno tal como conhecemos hoje: autoria, direitos autorais, mercado, plágio. 

O livro é interessante e me fisgou pela sua introdução. Eu recomendo baixar uma amostra pelo Kindle e ler só a introdução. (risos) 

Puchner faz uma interpretação belíssima da leitura de passagens do livro de Gênesis pelos três astronautas norte-americanos no momento em que pisaram na lua. Do espaço, para um público imenso que assistia da Terra, a leitura dessa obra remetia à Guerra Fria e seus rivais russos. Iúri Gagárin, o primeiro homem a viajar para o espaço, disse quando retornou à Terra: "Olhei e olhei, mas não vi Deus". Essa anedota é também um resumo da história da civilização ocidental que dependeu da criação da escrita e o registro impresso de uma mitologia que veio a se tornar um texto sagrado, a Bíblia. Como ele vê toda a história da humanidade neste único ato é simples, didática e, ao mesmo tempo, complexa. Ele explora muitas camadas de significados neste ato que, a princípio, parece inocente, ou não tão importante assim. 

"Mas a lição mais importante da Apollo 8 diz respeito à influência de textos fundamentais como a Bíblia, textos que acumulam poder e significado ao longo do tempo, de tal modo que se tornam códigos-fontes para culturas inteiras, contando aos povos de onde eles vieram e como deveriam levar suas vidas. No início, esses textos eram frequentemente repetidos e transmitidos por sacerdotes, que os reverenciavam e os preservavam no centro dos impérios e nações. [...]

A União Soviética havia sido fundada com base nas ideias articuladas num texto muito mais recente do que a Bíblia. O Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friederich Engles e avidamente lido por Lênin, Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh e Fidel Castro, tinha apenas 120 anos, mas procurava competir com textos fundamentais mais antigos, como a Bíblia. [...]

Lá no espaçoo, tratava-se de uma batalha de ideias e livros." (p. 13-14)

Enfim, livro bom. Não ótimo. É ambiocioso demais querer falar sobre todos os lugares ao longo de toda a história humana, mas cumpre bem o propósito de nos ensinar coisas novas e atiçar nossa curiosidade. Como um ponto de partida, ele é excelente. Finalmente, essa leitura também me ensinou que não nasci para ler mais de um livro ao mesmo tempo. Melhor continuar a passos de tartaruga e com um de cada vez.

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