Releitura e breves observações de A Fúria e outros contos, Silvina Ocampo

Li pela primeira vez  A Fúria e outros contos em 2019, quando foi lançada pela Companhia das Letras. Publicada na Argentina em 1959, foi a primeira vez que estava sendo publicada no Brasil esta coletânea de contos da escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993).

Os únicos livros que consegui trazer comigo do Brasil para os EUA são os e-books. 
Só pude reler Silvina Ocampo graças a essa conveniência enorme do Kindle! 

Voltei à obra por dois motivos. Primeiro, porque Lucia Berlin fez eu olhar com outros olhos para contistas mulheres. Quis revisitar este gênero escrito por outra mulher de outra parte do mundo que, entretanto, estava escrevendo ao mesmo tempo que Berlin. Segundo, porque lembrava do horror e do tom sombrio dos contos e achei que seria interessante escrever sobre ele para o Querido Clássico. Talvez eu o faça no futuro, mas por enquanto esta ideia foi engavetada. 

A Fúria é uma personagem da mitologia grega. De acordo com a sábia Wikipedia, são "entidades da vingança". Na verdade, Fúria é o termo romano. Em grego, são Erínias. Estão presentes no submundo, e são representadas pela imagem de mulheres horríveis e aterrorizantes. Elas seriam o equivalente aos nossos "diabinhos" no inferno punindo as almas condenadas. 

Silvina Ocampo foi esposa de Adolfo Bioy Casares e bastante amiga de Jorge Luis Borges. Era a mais nova de seis irmãs e sua irmã mais velha, Victoria Ocampo, teve também bastante reconhecimento como escritora. No meio de tantas personalidades, Silvina acabou sendo deixada de lado e não recebeu a atenção que merecia. Talvez pelo círculo literário que faz parte, alguns dizem que seus contos podem ser classificados dentro do realismo mágico, mas eu não concordo. Vi uma análise em algum lugar que também defende meu ponto de vista: seus contos não chegam propriamente ao fantástico, mas tratam com muita força o abismo e escuridão humana de forma onírica. Ou seja, muitas vezes a narrativa faz parecer que estamos lendo um sonho. 

Em sua grande maioria, os contos se passam dentro do ambiente doméstico e têm como protagonistas crianças, mulheres, esposas. O "fantástico" de Silvina Ocampo está no fato de falar desses lugares e dessas histórias sob um outro ponto de vista - mais obscuro. Inspirada aqui pela série Stranger Things, é como se as histórias se passassem no mundo invertido. 

Estes espaços são como submundos, enquanto as crianças e donas de casa, longe de serem passivas, submissas e sofredoras, são as Fúrias. As "brincadeiras" e os trabalhos domésticos, inclusive as boas ações (como, por exemplo, proteger uma criança de linchamento!), tornam-se meios de vingança e atos de crueldade. Outro ponto fundamental que me fascina muito nos contos de Ocampo: em nenhum desses atos estes "monstros" de carinha inocente são "castigados". Não existe moralidade. Nenhum ato cruel é julgado como "ruim". Pelo contrário, estes "monstros" saem triunfantes das histórias. 

É como se, realmente, estivéssemos no submundo da mitologia grega e os protagonistas fossem Fúrias. A diferença, no entanto, está na aparência. Ao invés de mulheres aterrorizantes, são donas de casas comuns e crianças. 

Comparando as personagens femininas de Berlin e Ocampo, nos contos da primeira a realidade é um soco no estômago. São mães e esposas que se sentem sufocadas pela solidão e abandono dentro de suas funções domésticas e fortemente relacionadas ao ambiente: New York, Oklahoma, Albuquerque, e Santiago, Chile. Em Ocampo, reina a universalidade: estas mesmas personagens estão limitadas pelas funções domésticas e poderiam se passar em qualquer lugar do mundo - apesar de algumas referências de Buenos Aires aqui e acolá - e sua resistência contra o machismo e patriarcado são suas "inocentes" crueldades. As mulheres de Ocampo têm um cinismo particular cuja luta vai terminar de alguma forma dramática e trágica - elas conseguem se vingar e triunfar. As mulheres de Berlin, muito mais realistas, travam uma luta incessante e sem fim. 

Esse livro é maravilhoso. Sinceramente acho a capa da edição da Companhia das Letras lastimável de horrorosa, mas os contos são incríveis. Entre meus favoritos estão: A continuação, A Casa de Açúcar, O Rebento, As fotografias, Nós, A fúria, Voz ao Telefone

Nenhum comentário:

Postar um comentário