09 de maio, o Dia da Vitória: homenagem às mulheres de "A Guerra não tem rosto de mulher"

Tenho uma pequena lista mental de alguns nomes de autores cujo trabalho eu gostaria de ler pelo menos uma vez ao ano. Svetlana Aleksietich é um desses nomes. Em 2019, li "Vozes de Tchernobil". Ano passado, devorei "O fim do homem soviético" e, neste ano de 2021, foi a vez de "A Guerra não tem rosto de mulher". 

Seu trabalho de história oral, coleta e transcrição de testemunhos, que fica no meio termo entre literatura e história, me fascina. Como historiadora, que passou anos em salas de arquivo lendo correspondência pessoal do século 20, acho que os relatos de si puxados de memória podem falar muito mais sobre os tempos passado e presente do que alguns documentos oficiais.

O trabalho de transcrição e curadoria de Svetlana é primoroso. Ela sabe fazer os cortes corretos para cada depoimento não ser longo demais e tornar a leitura cansativa, mas suficientemente comprida para prender nossa atenção. Ela conta uma grande história a partir de tantas outras pequenas histórias. Nós vamos, com a leitura, amarrando os pontos, imaginando o cenário e a linha do tempo. A intervenção da Svetlana é precisa: suficiente para não alterar as histórias individuais ao mesmo tempo que mantêm uma coerência entre si. É como se a autora pegasse as estrelas espalhadas e formasse a constelação. 

Dito tudo isso, fica claro o quanto eu gostei do livro. Apesar de indigesto, doloroso e triste, a leitura é fluída. É fácil o trabalho de leitura, difícil é encarar tudo aquilo como real. Como verdade. 

Eu gostei mais dos outros dois livros. Talvez porque os outros dois me trouxeram uma dimensão completamente nova de como esses traumas coletivos influenciaram na vida particular de cada indivíduo. Não tinha noção de como a maior parte da populaçao que sofreu com a explosão dos reatores eram camponeses - além de não terem compreensão do que significava radiotividade, eles tinham uma relação com a terra que nós não compreendemos. Expulsá-los de lá para garantir suas vidas era, praticamente, matá-los. 

Já "O Fim do Homem Soviético" tem uma linha temporal muito maior. Percorre quase todo o século XX e escancara o embate entre gerações que construíram a União Soviética, aqueles que desejaram uma nova ordem e os que já nasceram na Rússia. Os depoimentos vão revelando como avós, pais e filhos não se entendem, porque, apesar de compartilharem o mesmo lugar, seus tempos são completamente diferentes. E, no tempo de cada um, não existe espaço para o outro. Revela-se como o fim da URSS significou também silenciar uma história coletiva e individual. Talvez este tenha sido o meu favorito. 

"A guerra não tem rosto de mulher" é mais limitado no tempo. Reune depoimentos de mulheres ex-combatentes do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. Da invasão da Alemanha na URSS, em 1941, até o Dia da Vitória, em 9 de maio de 1945. No primeiro depoimento, já me veio à memória "A Trégua", de Primo Levi. Desde o momento da libertação do campo de concentração e durante todo o seu percurso sobre os trilhos de trem pela Europa em ruínas, Levi fala sobre as mulheres entre os soldados vermelhos. Fiquei até imaginando se aquela moça que fala sobre a libertação de um dos campos de concentração teria se encontrado com o químico italiano. 

 


Os relatos são memórias do campo de batalha: meninas e mulheres, ainda adolescentes, se voluntariando para ir ao front e disputando seu lugar entre os homens, fazendo "tarefas masculinas". Conhecemos mulheres que atiram e matam, que cavam as trincheiras, que desarmam bombas, que dirigem tanques, que consertam tratores... Mas também temos as lavadeiras, as enfermeiras, as médicas. Essas mulheres dizem que envelheceram uma vida em apenas quatro anos. O coração incha. É difícil imaginar a dificuldade em ser mulher, tanto física quanto emocionalmente, num meio masculino e de morte.

As mulheres passam a usar uniforme masculino: capote, cuecas e botas de numeração muito maior que pés femininos costumam calçar. Não é o exército que se adapta ao corpo feminino, é a mulher que tem que se adaptar às regras e cultura do exército masculino.

Algumas deixam de menstruar. Deixam de ver todo mês aquilo que lhes lembram que são mulheres, que possuem corpo de mulheres. E as que continuam menstruando, morrem. Um dos relatos nos conta sobre a travessia a pé que fizeram sobre um deserto. As mulheres seguindo na frente deixavam um rastro de sangue na areia. E o sangue, ela nos conta, secava na calça, cortando-as e machucando-as. "E os homens fingiam que não viam". Quando chegaram ao destino final, havia um lago e todas entraram para se limpar. Haviam alemães por perto e bombardearam o lago. "A vergonha era pior que o medo de morrer".

Mais para frente, em outro depoimento, a ex-combatente também menciona como o sangue secava na roupa e cortava a pele. Mas desta vez o sangue eram dos mortos e feridos. A vida e a morte se misturam.

Esta é a materialidade da guerra que nos é contada, mas há uma outra dimensão que lemos a partir dos relatos. Elas se voluntariavam para defender algo que acreditavam. Elas iam para o front para defender suas famílias, suas terras. Existia um ideal forte o bastante que lhes faziam não temer a morte. Elas haviam sido educadas sob o regime comunista: uma cultura bélica e idealista. Idealizavam a guerra e sua mortalidade. Na verdade, era como se vivessem antes num mundo de sonhos e, só depois chegando no campo de batalha, acordassem. Apesar disso, nenhuma delas se diz arrependida. Nenhuma.

Sexo. Estupro. Muito pouco. A autora chega a perguntar "E amor? Existia amor nas trincheiras?". Há um ou outro depoimento que menciona a aproximação entre uma combatente e um homem de outra patente. Há mulheres que conheceram seus futuros maridos nas trincheiras. E há a denúncia dos estupros cometidos contra as mulheres alemãs capturadas. Mas estes episódios são mencionados como quem pisa em ovos. Absolutamente nenhuma delas relata ter sofrido violência sexual. Nenhuma. 

Ainda que haja a intervenção da autora, é curioso não ter arrependimento nem estupro no livro. O quanto isso vem das mulheres entrevistadas e o quanto vem da imagem da mulher soviética na guerra que a autora constrói? Falar, transcrever e publicar sobre um estupro no front soviético seria desmoralizar o próprio exército soviético e sua história e cultura bélica. O quanto isso fala do passado e o quanto fala do presente? Mesmo após a mudança do regime comunista para o capitalismo, mesmo após as "aberturas" e denúncias, ainda há muitos silêncios.

E depois da vitória? 

Ficou o vazio. Ficou a decepção de voltar para as casas vazias, pois todos os familiares haviam morrido. Ficou a dor de uma mutilação ou de uma saúde precária aos 20 e poucos anos. Ficou o preconceito de outras mulheres que viam estas que foram lutar como prostitutas. Ficou o medo de ficarem sozinhas e a tristeza de não serem reconhecidas pelos filhos que elas deixaram para trás. Se na guerra a luta é para viver, depois da guerra a luta pela vida continua, mas sob a forma de outras batalhas.

Mas não só isso. Aqueles que chegaram à Europa ocidental, foram enviados à Gulag. Uma vez capturado pelo inimigo, o dever pátrio era se matar. Aqueles que fugiram, foram considerados traidores e também enviados à Gulag. Ficou a decadência e o desarme de minas terrestres por longos anos após declarado o fim da guerra.

Eu li em ordem inversa. A continuação deste livro é "O fim do homem soviético". Entende-se a dor e desamparo dessa geração que lutou pela URSS, venceu Hitler, e viu seus filhos e netos lutando por "liberdade" e, depois, serem escanteado, jogados de lado, humilhados, por terem acreditado e lutado por Stalin. 

Programei para hoje, dia 9 de maio, o Dia da Vitória, a publicação desse post como uma homenagem a estas mulheres. Não posso compreende-las. Não compreendo o que viveram, tampouco o forte ideal que sentiam e as levaram para o front. Só posso ter empatia e ouvidos atentos para uma história que sempre precisa ser narrada e lembrada. Não podemos nunca esquecer as dores do século XX.

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