Opinião sobre "Casei com um Comunista": minha primeira frustração com Roth

Depois de quatro meses morando no Chile, estou de volta ao Brasil e à minha casa. Daqui do meu sofá, da minha sala, com minha televisão, mesa de jantar, cadeiras, almofadas e decoração escolhidas e montadas por mim, escrevo e publico neste blog meu primeiro texto escrito em terras tupiniquins sobre uma obra que li inteiramente no Chile.

Eu comentei em publicações anteriores a minha dificuldade em comprometer-me com leitura e escrita por causa das atribulações que estavam ocupando todo o tempo e espaço da minha vida. Por isso, escolhi um autor que eu sabia que seria muito envolvente. A primeira vez que li Philip Roth foi em 2019, "A marca humana".  O livro me sugou. Eu me senti completamente imersa. Gostei tanto, que logo depois li "Pastoral Americana", que também achei fenomenal. Consequentemente, Philip Roth está entre meus autores favoritos e faz parte daquela pequena lista de autores que eu gostaria de ler pelo menos uma vez ao ano. 

Ano passado, li "O Complexo de Portnoy" e "Homem Comum". Apesar de ter gostado muito mais do primeiro, o segundo também é muito bom! Desta vez, li o que faltava para completar a trilogia americana de Philip Roth: "Casei com um Comunista". Assim como "A marca humana" e "Pastoral Americana", é Nathan Zuckerman quem nos narra a história que, por sua vez, lhe é contada por Murray Ringold, irmão do nosso personagem principal: Ira Ringold. 


Durante a leitura, estava achando tudo excelente. Diria que até 2/3 do livro minha avaliação era 100% positiva. Eu gostei de como o autor trouxe em discussão alguns temas como o valor social da arte, o ambiente político estadunidense pós-Segunda Guerra Mundial, o sentimento de deslocamento do judeu na sociedade norte-americana e identidade. 

Estes últimos dois temas já centrais em "O complexo de Portnoy": o judeu americano raivoso, que não viveu o Holocausto, que não encontra seu lugar no seu país de nascimento e não compartilha desse "histórico" e identidade judaica é o próprio Alexander Portnoy. A diferença é que este reclama, grita, esperneia com seu psiquiatra e despeja toda a raiva e frustração num prisma sexual e freudiano. Ira, por outro lado, direciona sua insatisfação e deslocamento no mundo no aspecto ideológico e resistência política. 

A identidade e a ideologia se misturam em Ira: um personagem que não consegue ser ele mesmo porque está em função do partido/ ideologia, mas também não consegue ser o comunista ideal, pois sua personalidade o impede. Isso tudo contado, é claro, pelas memórias de seu irmão e do próprio Nathan, que o conheceu e o admirava quando entrava em sua adolêscencia. 

São várias camadas até chegar em Ira: Ira conta ao seu irmão Murray o que lhe passou, Murray conta para Nathan décadas depois e Nathan escreve para nós, juntando às memórias de Murray as suas próprias lembranças de menino. Dois idosos desiludidos, à margem, sozinhos no mundo, um com 90 anos e outro na casa dos 60 que vive recluso numa cabana, contando causos que aconteceram 40 e 50 anos antes sobre um outro homem. Muito suspeito, não?

Sob os olhos destes dois narradores, a história de Ira se funde à própria histórica política e cultural nos EUA na medida em que fala muito sobre os primórdios do rádio e da indústria de entretenimento, mencionando Broadway e o cinema mudo. A publicação de "Casei com um comunista", livro autobiográfico escrito pela personagem de Eve Frame, esposa de Ira e que intitula o livro que nós estamos lendo, é a representação do rompimento da fronteira entre público e privado e entre entretenimento e política na cultura norte-americana. É só um prenúncio de escândalos reais, como Bill Clinton e Monica Lewinsky, por exemplo. 

Uma pulga atrás da orelha, no entanto, ficou me incomodando. Esse papo infinito de seis noites regado a martini entre dois homens, fofocando sobre a vida dos outros e que, no fim, se resume a um julgamento de defesa de um outro homem que, apesar de impulsivo, adúltero, violento, assassino, etc, era uma boa pessoa, tinha bons princípios, era guiado pela vontade de fazer o bem e que foi "usado" pela ideologia comunista e sua ex-esposa, Eve Frame. Uma vítima. Coitado.

Eve é narrada por estes homens como a mulher louca, histérica, infeliz e frustrada como mãe, artista fracassada em fim de carreira, interesseira, manipulável, envergonhada de sua identidade judaica, cínica e - adivinha - injusta com o próprio coitado do Ira, cuja vida teria sido destruída não pelas suas próprias atitudes irresponsáveis ao longo de toda sua vida, mas pela publicação do livro escrito por Eve, "Casei com um comunista". 

Esse desconforto ficou comigo e, quando fui procurar textos e reviews sobre esta obra pude ver melhor o contexto de publicação. "Casei com um comunista" foi escrito e publicado como uma resposta ao livro "Leaving a Doll's House", de Claire Bloom, que foi ninguém mais ninguém menos que a ex-esposa de Philip Roth e cujas semelhanças com Eve Frame são gritantes. Não acredito em separar o autor da obra, mas também não espero ler na ficção um homem sexagenário ressentido de sua ex-esposa. Confesso que fiquei um pouco decepcionada. 

De todos os livros que li de Philip Roth este foi fraco e o que menos me agradou, apesar de tocar em assuntos que tanto me interessam: judaísmo, identidade, cultura norte-americana e comunismo. Existe uma ironia neste ponto de inflexão entre a minha relação com Philip Roth e a de Nathan com Ira. Em sua adolescência, Ira vê em Nathan um pupilo e este enxerga Ira com grande admiração, seguindo-o e idealizando-o. Aos poucos, no entanto, conforme vai crescendo e seu mundo se expandindo, Nathan começa achar Ira enfadonho, repetitivo e passa a se afastar. Chega a se questionar "como Eve pode aguentar Ira e seu discurso inflamado todos os dias, todas as horas, dentro de sua própria casa?". Pois bem, fiquei assim um pouco com Roth em "Casei com um comunista" - me desiludi. 

Terminei a leitura com a impressão de que Murray era um cunhado intrometido e chato, Ira um homem violento, impulsivo, adúltero e culpado de muita coisa. Mas Ira tinha quem o defendia - seu irmão, que direcionou toda a responsabilidade das frustrações e infelicidades de seu irmão para a cunhada, esposa de Ira, Eve. Quase uma novela mexicana.

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Alguns textos interessantes:

https://www.theguardian.com/books/1998/oct/03/fiction.philiproth

https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/98/10/11/reviews/981011.11kellyt.html

https://livroecafe.com/2020/03/26/casei-com-um-comunista-de-philip-roth-fissuras-no-sonho-americano/

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs10019912.htm

https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n03/alexander-star/what-the-hell-happened

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