A invenção da Idade Média

Este foi o assunto da minha primeira aula de Idade Média. A transcrevi aqui porque em pouco mais de três horas, o professor quebrou com muitos de meus conceitos - ou pré-conceitos. Eu achava que tanto a disciplina de Idade Média quanto de Antiga seriam chatas por se tratarem de períodos muito longínquos que pouco ou nada teriam a ver com o nosso cotidiano, a nossa vida de hoje. Essa primeira aula serviu para eu pensar totalmente diferente sobre esses períodos históricos e também sobre o trabalho intelectual que fazemos na Universidade – e também fora dela.

A Idade Média nasceu no século XIX assumindo desde já as suas duas faces. Além de ser uma convenção cronológica referente ao período que vai do século V ao século XV, a Idade Média é também uma construção historiográfica. Esse último caráter nasceu para explicar as raízes dos Estados Ocidentais. Assim, a Alta Idade Média nasceu como um discurso identitário, tornando-se a base do discurso política da Europa no século XIX e, pasmem (!), até hoje.

Apesar de sua “incapacidade de assumir uma posição de matriz civilizacional”, a Idade Média ainda assume um importante discurso da política contemporânea. Por isso que, mesmo fechando a porta da sala de aula, é impossível separar nosso trabalho de pesquisador com a política, independentemente do assunto e da época que pesquisamos. Todo historiador, e outros cientistas sociais, é filho de seu tempo e, muitas vezes, de sua instituição.

Na historiografia francesa, a gênese da França encontra-se no século V. O Rei Clóvis do Império Franco, ao vencer uma batalha contra um determinado grupo bárbaro, recebeu do imperador romano o título de cônsul. Mais tarde, esse mesmo rei franco quebrou a tradição de seus pais e se converteu ao cristianismo. Assim, a França se coloca numa posição superior as suas nações vizinhas por ter uma herança romana e cristã além de ser capaz de manter esse império romano num mundo dominado pelos bárbaros.

Já na historiografia alemã, a “invasão” bárbara foi uma renovação do continente europeu, e é vista como algo positivo - é a regeneração do Ocidente. Invasão entre aspas porque não é considerada como tal, mas sim como uma “retomada”. Hoje, esse mesmo termo também gera controvérsias. Acredita-se que não houve uma invasão organizada, de caráter bélico e violento, mas sim uma migração de povos que já haviam tido algum contato com a política romana.

Assim, para os franceses, foi no século V que o povo germânico realizou sua primeira invasão. Invasão esta que só seria desfeita e libertaria a França em 1945. É a historiografia justificando e explicando guerras de séculos e séculos mais tarde. E as pessoas ainda se perguntam por que é importante estudar história – ela é tão comum nos discursos políticos e identitários que passa despercebida aos olhos de muita gente.

4 comentários:

  1. Nossa Gi, achei este um dos textos mais interessantes que voce a postou !

    Bem interessante sber sobre essas diferentes visoes sobre alguns acontecimentos historicos...legal.

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  2. E, se passa desapercebida em discurso político, cara, tamanha foi a persuasão!!..mas, claro, sem o conhecimento histórico, se torna bem mas fácil tal feito, convenhamos, hehe...

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  3. Giovana, obrigado pelas interpretações do meu poema. Ele pode ser tudo isso que você falou, e também pode ser o que o Cabeça falou também. =P E sim, foi engraçado mesmo. Quanto ao seu texto, seria ingenuidade a gente achar que a História escaparia do tendencionismo patriótico. Talvez seja por isso que já se pregou tanto a questão da neutralidade científica. Mas nenhuma atividade humana escapa dessa armadilha, a vantagem é que ao menos os argumentos são mais intelectuais e científicos, do que puramente ufanistas, não? Eu não sabia que a Idade Média ainda continua, talvez eu nem concorde com isso, mas não sou Historiador para brigar com os eu professor. O que posso concordar é que muitas fases da humanidade ainda estão presentes em determinadas situações, como também o já pós-modernismo paira por sobre nós.

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  4. Gi, o texto é interessantíssimo.

    Mas achei o segundo parágrafo um pouco confuso. Não seria a Idade Moderna no século XIX? A visão histórica de acordo com o patriotismo é evidente. Mas eu não achei que esse assunto tiraria o pre-conceito sobre a idade média, que é uma idade que andou para trás no que diz respeito à conhecimento e estudos, à direitos sociais, à demarcação de territórios, à expansionismo etc.

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