Manual da Faxineira, de Lucia Berlin: seus contos são como um mergulho em alto mar

Tem uns livros que mexem com a gente e se tornam marcos de passagem. A gente é um antes e se torna outro depois que acabaram as páginas. Claro que são pouquíssimas as obras que conseguem ganhar essa estrelinha de reconhecimento. No meu caso, A Manual for Cleaning Woman de Lucia Berlin (1936-2004) ganhou. Não é só por causa do livro em si. Para ganhar esse status, a obra precisa ser também lida no momento certo. Há um ano, Lucia Berlin não teria me tocado tanto como agora. 


A Manual for Cleaning Woman foi traduzido e publicado no Brasil com o título "Manual da faxineira" pela Companhia das Letras, mas eu peguei o livro na NYPL e foi em inglês mesmo. Cheguei até ele porque no curso de crônica que fiz pela Escrevedeira, o professor discutiu as diferenças e semelhanças entre os gêneros conto e crônica e, entre outros exemplos, nos enviou o conto Melina

Quando comecei a ler Melina, foi como um mergulho em alto mar sem tanque de oxigênio. Conforme foram avançando os parágrafos, eu ia cada vez mais fundo. Eu estava tão envolvida que praticamente não conseguia piscar. Quando acabei, foi como se em apenas um segundo eu estivesse na superfície recuperando o fôlego. Não são todos, mas são quase todos os contos escolhidos para esta coletânea trazem essa experiência. No texto de introdução da coletânea, Lydia Davis se pergunta "por que não conseguimos parar de ler um conto de Lucia depois que começamos?". Ela traz algumas respostas técnicas, mas para mim, no meu caso, é porque eles estavam falando diretamente comigo. 

Lucia Berlin nasceu no Alasca numa família americana, morou em algumas cidades dos EUA e viveu com seus avós maternos no Texas enquanto seu pai combatia na Segunda Guerra Mundial. Quando retornou, a família mudou-se para o Chile, onde ela passou boa parte da infância e adolescência. Ela voltou para os EUA somente quando começou o college em Albuquerque, New Mexico. Berlin nasceu com um problema grave na coluna, ela não viveria muito nem poderia ter filhos, disseram os médicos. Mas acabou se casando três vezes, teve vários amantes e quatro filhos. Trabalhou como recepcionista em hospital, diarista, professora, e foi mãe e dona de casa. Enfrentou anos de alcoolismo e por muito tempo lutou contra sua dependência. 

É desse cenário, a sua própria vida, que Berlin tira as referências para escrever seus contos. Li por aí que ela escreve autoficção. Não vou entrar na questão técnica, mas adianto que para mim autobiografias e biografias já são um tipo de ficção. Por que dizer que a água é molhada? Acho que suas histórias são tão bem narradas e envolventes que o leitor fica procurando "verdades", mas como é impossível negar a ficcionalização diz que é "autoficção". Berlin não escreve seus contos dizendo que são autobiográficos tampouco se os fatos narrados aconteceram de verdade, ela diz que o que importa "é a estória"*.  

Manual da Faxineira tem 43 contos que têm como cenário os lugares onde Berlin viveu e as pessoas com quem conviveu. Eu não li tudo de uma vez. Os contos são tão envolventes que no meio fiz uma pausa. Li outros dois livros neste interim e só depois retomei. 

Alguns contos são sobre coisas aparentemente banais, como os que se passam nas lavanderias coletivas: é como se nós ficássemos um dia como turista (ou antropólogo) em lavanderias norte-americanas com Berlin vendo como funciona essa lavação de roupa que máquinas, secadoras e espaços são divididos com pessoas tão diferentes. Justamente neste momento em que me mudei para os EUA e estou tendo que aprender a usar estas máquinas e dividir a lavanderia com desconhecidos. Um "lugar" que fica exatamente na divisão entre o  público e privado. Pessoas que você nunca viu e nunca verá novamente vê as roupas que você usa em momentos de intimidade e você vê as delas. Pessoas que dividem com você uma atividade doméstica fora de casa. 

Os contos de sua adolescência no Chile me tocaram de forma profunda. Principalmente porque muito recentemente eu vi os Andes, os chilenos e a Santiago sobre a qual ela fala. Em um conto, quando é mencionada a Embaixada dos EUA, eu pude com muita clareza visualizar o prédio e lembrar do dia que eu estive lá. Seu conto era tão real. Tão palpável. Era como se as palavras pudessem se materializar na minha frente.

Em Good and Bad, Berlin narra em primeira pessoa (acho que todos são em primeira pessoa, se não me engano) a relação de uma aluna e sua professora freira comunista. Foi uma das coisas mais incríveis que eu li em toda a minha vida e eu não estou exagerando aqui. Good and Bad  é sobre a adolescente Lucia, americana, estudando e vivendo no Chile, seu pai é funcionário do governo dos EUA, e uma de suas professoras tenta convencê-la de que aquele seu mundo rico e privilegiado é opressivo. Por isso, passa a levá-la, todo fim de semana, em orfanatos, instituições de caridade, recitais de poemas e reuniões de agricultores e classe operária chilena para ela ouvir e conhecer "os oprimidos". 

Em nenhum momento Lucia fala de bem ou mal explicitamente, ela não discute moralidade em tons abertos, ela apenas vai narrando os acontecimentos e escancarando como tentar definir o que é bom e o que é mal na sociedade e na política é impossível e sufocante. Não há dualidade. Na verdade, só há lamento. Ela viveu no Chile nos anos pré-golpe e neste conto ela está descrevendo, do ponto de vista da menina estrangeira, justamente este momento histórico.

Mas Good and Bad é uma exceção, pois é o único que traz essa abordagem política de forma tão aberta. Os outros contos trazem as dores da existência e do constante sentimento de estar fora de lugar no cenário mais cotidiano e banal.  A narradora dos contos está sempre deslocada, não importa onde e com quem ela esteja. 

Os contos que se passam no hospital são tristes. Trazem temas como infanticídio, alcoolismo, abuso infantil, aborto e a finitude da vida. São tratados com frases curtas, rápidas, e por isso parece que o mergulho é de uma vez só. Sua forma de narrar coloca lado a lado a normalidade e o choque que envolvem esses temas. 

Em Bluebonnets, a narradora é uma professora universitária de meia idade, que escreve poemas e faz traduções espanhol-inglês. Ela vai se encontrar com outro professor com quem tem se comunicado por cartas e cujo livro de crítica literária ela traduziu para o espanhol. Ele é misterioso, solitário, cuida com zelo de sua fazenda e, em sua mesa de trabalho, centenas de fichas de estudo. Ela é poetisa, solta, leve. Eles se envolvem de maneira fluída, natural a princípio, mas quando ela diz não entender o que ele diz, a relação fica tensa e impossível de ser quebrada. Ela diz que escreve, mas não entende a teoria sobre o escrever e que aquilo não importa para ela. Ele não compreende, afinal, ela traduziu os livros dele! Ele fica nervoso, se afastam e depois retomam a relação. É uma metáfora linda e intensa sobre a relação literatura e teoria. São conectadas, mas imposssíveis de viverem juntos.

Mijito é sobre uma moça jovem mexicana que, seguindo o amor da sua vida, entra nos EUA. Ele logo é preso por envolvimento com tráfico de drogas e ela fica sozinha. Ela mal fala inglês, não tem família e descobre estar grávida. É acolhida de forma temporária por conhecidos do marido, que a tratam mal, abusam de seu trabalho para serviços doméstico e fisicamente de seu corpo. 

Seu bebê nasce e chora. Chora muito. Ela não tem ninguém. Tudo acontece de forma que o labirinto que ela esteja vivendo fique cada vez mais complicado e impossível de achar a saída. Ninguém ajuda, explica, acolhe. O parágrafo no qual ela começa a enumerar o vocabulário em inglês que ela conseguiu apreender até ali é de cortar o coração. Ela está tão perdida e desamparada que o conto culmina com um dos finais mais tristes de toda a coletânea. 

Em  So Long, como um simples "Hello" pelo telefone pode fazer ela mergulhar na lembrança e na saudade de quem ela é ao falar inglês, depois de tanto tempo morando no México falando apenas espanhol. "Of course I have a self here, and a new family, new cats, new jokes. But I keep trying to remember who I was in English." 

Unmanageable é desesperador. Conto curto, poucas páginas. É sobre a agonia de uma mulher alcoolatra que acorda sufocada na madrugada e precisa de uma bebida, a todo custo, e ainda estar em casa a tempo de preparar o café da manhã para os filhos. 

Apesar de tantos cenários diferentes, o sentimento de deslocamento e solidão estão presentes em todos os contos. Eu sempre falo aqui que leitura, para mim, é experiência e que as resenhas deste blog não são uma análise "inteligente" dos livros que leio, mas sim um registro da experiência que tive com cada leitura. Pois bem, A Manual for Cleaning Woman foi uma das mais intensas dos últimos tempos. Me deixou feliz, triste, agoniada e pensativa. Recomendo para todos que estejam procurando uma narrativa envolvente que nos faz esquecer de comer e dormir para não abandonar a leitura. 


Obs: sobre o título desta postagem, em um dos contos a narradora passa um tempo com mergulhadores, num povoado isolado do México.  E é um conto tão mágico e envolvente que parece que podemos sentir a pele molhada e o cheiro do mar enquanto mergulhamos com ela. 

*Na introdução da coletânea Evening in Paradise, o filho de Lucia Berlin, Mark Berlin, diz: "Our family stories and memories have been slowly reshaped, embellished, and edited to the extent that I'm not sure what really happened all the time. Lucia Said this didn't matter: they story is the thing." 

Um comentário:

  1. Eu estou com esse livro no kindle, agora acho que ele vai furar a fila. Eu amo quando não consigo largar um livro, vc me deixou curiosa ao dizer que os contos são tão envolventes!!!!

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