A Autarquia Paulista

O texto abaixo é o primeiro capítulo de um trabalho que fiz como conclusão de um ano de estágio. Ele foi o resultado de um encontro quase mágico com um conjunto de documentação de uma fazenda chamada Fazenda Guatapará que situava-se na região que atualmente conhecemos como Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. A documentação é do início do século XX e possui um forte caráter administrativo. Entre as diversas correspondências, um remetente predominante era a Companhia Paulista de Vias Ferreas e Fluviaes. A partir daí, comecei a pesquisar a íntima relação entre o surgimento da ferrovia e o café no estado de São Paulo.

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“O ouvidor geral me disse que na dita capitania de São Vicente havia um caminho de 5 ou 6 léguas o qual era tão mau e áspero por causa dos lameiros e grandes ladeiras que se não podia caminhar por elles...”
(Trecho de carta enviada a D. João III pelo Governador Geral Duarte da Costa em 1555. ELLIS Jr., Alfredo. O Café e a Paulistânia. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1951 – p. 255. )

“A quarta Villa da capitania de São Vicente é Piratininga, que está 10 a 12 léguas pelo sertão e terra a dentro. Vão por lá umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais e os homens sobem com trabalhos e as vezes de gatinhas por não despenharem-se e por ser o caminho tão mau e ser tão ruim serventia padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos.”
(Trecho de depoimento do Padre Anchieta em “Informações do Brasil e suas Capitanias” de 1584. Idem.)

Como podemos ver nos documentos acima, a geografia paulista sempre foi um fator de dificuldade de transporte e comunicação e, por conseguinte, de isolamento do planalto. Este isolamento foi um assunto bastante estudado por Alfredo Ellis Jr., que diz que se trata de uma região que sempre viveu ensimesmada e é um perfeito exemplo de determinismo geográfico.

As dificuldades no transporte através da serra faziam com que o planalto se tornasse uma região isolada econômica, psicológica e sentimentalmente. Como qualquer tipo de mercadoria só podia ser transportada no dorso humano, o frete de exportação ou importação a tornava praticamente proibitiva. Por muito tempo, todo este isolamento era quebrado por uma tênue ligação entre o planalto e o litoral chamado de “Caminho do Padre José”, pelo qual só passavam os índios, que se auto-trasportavam, e toda a produção era consumida pela própria população.

Além da dificuldade do transporte causada pelo terreno acidentado, o clima aproximado ao da metrópole impedia a exportação de gêneros de clima frio e a concorrência com o nordeste dificultava a exportação de gêneros de clima quente, a falta de fonte de renda e o fraco poder aquisitivo dos habitantes do planalto eram outros motivos do isolamento e da falta de interesse sobre a região por parte da Coroa portuguesa.

Como ilustração do isolamento e a falta de lusitanismo que vivia a região do planalto, vale mencionar a informação que nos foi passada pelo Padre Vieira e consta no livro de Ellis Jr.: António Paes de Sande que governou as capitanias reunidas de São Paulo e Rio de Janeiro entre 1692 e 1693 falava guarani. Por isso que Nogueira de Matos comenta sobre um processo de indianização que sofreu o grupo paulista. A América Portuguesa era apenas o Nordeste, única região povoada e civilizada, o resto da América, como informa Ellis Jr., estava abandonada à barbárie e alguns poucos aventureiros e desgarrados portugueses. São Paulo era uma terra selvagem.

Desta maneira, enquanto o nordeste possuía uma identidade muito maior com Portugal, sempre esteve presente entre os habitantes do planalto um sentimento vazio de lusitanismo, o que favoreceu um exagero do municipalismo, que tomou um caráter autônomo, e mais democrático se comparado com outras regiões da América Portuguesa que viviam com mais intensidade o pacto colonial. A produção dos gêneros de subsistência que eram consumidos in loco ajudaram a promover a pequena propriedade e a policultura. Como veremos adiante, mesmo com o advento da ferrovia e a maior facilidade de transporte do café, o frete ainda era muito caro para o transporte de gêneros como o milho, arroz e outros artigos pouco valiosos por quilo, portanto, mesmo na passagem do século XIX para o XX, a região do planalto continuou produzindo o que se consumia e procurando se auto-abastecer.

Só em 1724, aproximadamente, quando começou a ser trafegada a estrada de São Paulo - Rio Grande e o muar foi empregado como meio de transporte, o preço do frete abaixou, pois era caríssimo o transporte de mercadorias no dorso dos escravos. Assim, o açúcar que era produzido no planalto e havia perdido o mercado consumidor com o fim do ciclo do ouro nas Minas Gerais, começou a ser transportado pelos muares até o litoral para ser exportado além-mar. O muar como meio de transporte foi utilizado até o início da produção e exportação do café, antes que este se expandisse para o Oeste Paulista.

Mesmo no período áureo de exportação do açúcar, economicamente mais vantajoso por conta do transporte feito pelas tropas de muares, a ligação entre o planalto e o litoral continuou precária. As novas exigências desta nova economia fez adaptações de uma via que era, essencialmente, de pedestres para uma via de tropas. É importante lembrar também que as maiores dificuldades de transporte e comunicação ficavam na serra e que as estradas do planalto eram um problema bem menor. A serra, além de possuir um desnível de quase 800 metros, também apresenta um alto índice de pluviosidade que, aliado a alta capacidade da mata atlântica se recuperar de desmatamento, dificulta ainda mais tanto a construção como a conservação dos caminhos. As estradas do planalto que foram sendo desenvolvidas na época do açúcar, por sua vez, resultaram no aproveitamento e adaptação dos velhos caminhos dos bandeirantes . São Paulo entrou no século XIX com uma feição bastante parecida com a do período colonial e isso só foi se alterar com o advento da era ferroviária.

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