Apesar dos pesares, 2020 foi um ano de ótimas leituras - uma retrospectiva literária

Não achei que a retomada deste blog chegaria tão longe. O nome "um caderno esquecido" é justamente porque eu venho até ele, escrevo um pouco, abandono-o para, algum tempo depois, lembrar que ele existe e que é interessante escrever sem compromissos. (Obrigada, Google, por possibilitar isso.)

Lá em maio, auge do isolamento social, quando todos os dias pareciam exatamente iguais e o Nelson Teich vampiresco ainda era o Ministro da Saúde, eu tive a ideia de ocupar um pouco o tempo livre escrevendo no blog. Primeiro como exercício de escrita. Segundo, como uma tentativa de registrar os livros lidos e poder, de alguma forma, fazer uma reflexão sobre minhas leituras feitas fora do meio acadêmico. 

Na época, eu tinha já depositado minha dissertação e estava esperando a data da defesa. Eu estava com saudades do exercício de ler, refletir, grifar, escrever, marcar páginas com post-it, enfim... de estudar. O blog pareceu uma boa oportunidade para isso. 

Agora, a pandemia não acabou, mas o isolamento social sim (verdade infeliz). Eu mesma voltei a realizar parte das minhas atividades rotineiras - como ir para a academia -, mas o blog continuou resistente. Isso se deve a dois fatores. 

1. O ato de escrever - esta prática de fixação e estudo - me permitiu fazer conexões entre as leituras e diferentes livros que não seriam possíveis se eu não estivesse dedicando tempo e esforço mental para isso. Como antes, durante a leitura eu teria vivido intensamente a experiência narrativa, mas depois que o livro fosse fechado, a memória seria logo guardada junto na estante e lá esquecida. Escrever sobre o que li, mesmo que seja um breve comentário, ajuda a lembrar, categorizar e conectar com outras referências.

2. Outro motivo foi a comunidade de leitores e escritores de blogs que fui conhecendo na internet. Perfis e blogs literários que me ajudaram a descobrir novos autores ou me estimularam a ler autores clássicos que eu já conhecia, mas não teria tido a iniciativa de ler. Tudo isso tem enriquecido o leque de leituras que tenho feito e que, na minha opinião, já é bastante eclético. Além do fato de que é legal trocar impressões e opiniões sobre os livros lidos em comum. Já comentei em outros posts a importância dos clubes de Leitura Coletiva para a escolha das últimas obras escolhidas. Deixo novamente registrado os dois mais importantes que tenho acompanhado: o Querido Clássico e a Gabi Barbosa

Lembrando também que passei a conhecer outros blogueiros, interagir com outras pessoas que escrevem e publicam e até participei da campanha Estação Blogagem - o que foi muito legal!

Agora, nestes últimos dias de 2020, o blog possibilitou uma retrospectiva, pois eu nunca conseguiria lembrar de todos os títulos apenas de memória. Pode ser que eu tenha deixado escapar alguma leitura feita antes de maio, mas seria uma ou duas. 

No final, fiquei muito orgulhosa com a lista. Eu nunca fui atrás de número, metas, estilo ou autores específicos. Sempre fui fluindo com o que eu sentia vontade. E quantidade - em se tratando de livros - é tosco, pois as experiências são diferentes.  O Jogo da Amarelinha, por exemplo, tem número de páginas similar a O Pintassilgo, mas o primeiro foi uma viagem prazerosa no começo, difícil e vagarosa no meio e, no final, mindblowing. Levei mais de um mês para ler, enquanto O Pintassilgo li em muito menos tempo e a experiência foi bem "chuchu". Não foi ruim, mas também não foi espetacular.

Achei legal também a variedade de gênero e nacionalidade de autores, estilos e escolas literárias. Com predominância, é claro, do século XX - meu século favorito. Se eu tivesse paciência e boa vontade, faria uma tabela no excel com as informações de todos os livros, apenas por curiosidade estatística. Mas não preciso disso agora. Da lista abaixo, em negrito estão os meus favoritos do 2020.

1. Um Artista do Mundo Flutuante - Kazuo Ishiguro

2. Senhor das Moscas - William Golding

3. O Talentoso Ripley - Patricia Highsmith

4. Quinquilharias Nakano - Hiromi Kawakami

5. Miso Soup - Ryu Murakami

6. O Jardim Secreto - Frances Hodgson Burnett 

7. Imunidade - Eula Biss

8. A outra volta do parafuso -  Henry James

9. Dr. Jekyll and Mr. Hyde - Robert Louis Stevenson

10. Outras Mentes -  Peter Godfrey-Smith

11. Rita Lee - uma autobiografia

12. A Assombração da Casa da Colina - Shirley Jackson

13. Enterre seus Mortos - Ana Paula Maia

14. O Apanhador no Campo de Centeio -  J.D. Salinger

15. É isto um homem? - Primo Levi

16. A Trégua - Primo Levi

17. O Complexo de Portnoy - Philip Roth

18. Jorge Amado: uma biografia - Josélia Aguiar

19. O fim do homem soviético - Svetlana Aleksiévitch

20. Os irmãos Karamazov - Fiódor Dostoiévski

21. Moby Dick - Herman Melville

22. Caçando Carneiros - Haruki Murakami

23. Sobre os Ossos dos Mortos - Olga Tokarczuk

24. O Pintassilgo - Donna Tartt

25. Homem Comum - Philip Roth

26. Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar

27. 1Q84 Vols. 1, 2 e 3 - Haruki Murakami

28. Becoming - Michelle Obama 

Entrei 2020 lendo Becoming e logo comecei a trilogia de 1Q84, do japonês Haruki Murakami. Como classificá-lo? Fantasia, realismo mágico, ficção científica? De qualquer maneira, vou terminar o ano e iniciar 2021 lendo O Problema dos Três Corpos, este sim oficialmente classificado como ficção científico, do chinês Cixin Liu. Apenas uma curiosa coincidência: trilogias de autores contemporâneos orientais. 


Apesar de todos os pesares de 2020, fiz ótimas leituras e espero que 2021 seja também recheado de bons livros. 

(Outra curiosidade: por ironia do destino meu texto mais visualizado e comentado não foi relacionado à nenhuma leitura, mas ao jogo Last of Us II.)

Um Artista do Mundo Flutuante, Kazuo Ishiguro: as dores e a melancolia daqueles que perderam a guerra

Acabei sem querer tropeçando em Kazuo Ishiguro e Um artista do mundo flutuante foi meu livro de estreia do autor. Circulando pelos perfis literários no Instagram, vi uma referência à beleza da capa de Um Gigante Adormecido. Como eu estava ainda mexida pela recente leitura de Miso Soup, obra de outro autor japonês, fui atrás de Kazuo Ishiguro na Amazon e acabei me interessando.

Este post não chegará aos pés da atenção que merece Um artista do Mundo Flutuante. Sinto que eu deveria voltar às páginas do livro e fazer uma segunda leitura mais cuidadosa, mais reflexões, mais parágrafos grifados e páginas marcadas com post-it caso se eu quisesse cumprir com louvor a minha ousadia de escrever sobre este livro aqui. Não obstante, segue algumas ideias e um relato da minha experiência de leitura.  

Eu não sei porque, mas eu sou um ímã de leituras relacionadas à Segunda Guerra Mundial. Já mencionei sobre isso em outros posts. Talvez - só talvez, seja porque eu sou uma apaixonada pelo século XX e a Segunda Guerra foi o maior evento deste período. Nos últimos dois anos, li muita coisa sobre o Holocausto e o Exército Vermelho, mas nunca sobre o ponto de vista político. Sempre - absolutamente sempre - meu interesse está na relação do indivíduo e sua identidade com o momento histórico vivido (ou herdado). Hitler não me interessa. Me interessa a dona de casa que compra pão todo dia na União Soviética e, um dia, sai às ruas para protestar por mais liberdade. Me interessa o filho do judeu imigrante que nasceu nos EUA, viu o Holocausto do outro lado do Atlântico e um belo dia vai para Israel. Me interessam as pessoas comuns e como elas vêem o mundo - e a si mesmas! -  a partir das vicissitudes históricas.

Engraçado que, apesar de todo esse interesse, eu nunca havia me atentado para um dos antagonistas desta Guerra. Frequentemente falamos de Pearl Harbor, kamikazes, Bomba Atômica, Hiroshima e Nagasaki. Este vocabulário está aí, em todo o lugar, mas acho que se tornaram um pouco vazios. Tanto quanto as vezes "Holocausto" parece estar se desgrudando de todo o significado que a palavra carrega.  Parece que quando falamos da participação e derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a queda das bombas nucleares e a rendição estamos falando apenas de dados históricos. Precisamos relembrar os significados destes eventos - tanto para o momento em que ocorreram como para o tempo presente.

Neste sentido, Um Artista do Mundo Flutuante me lembrou Talvez Esther, de Katya Petrovskaya, que eu li ano passado. São leituras que falam sobre as feridas que não se fecham e os traumas que a Segunda Guerra Mundial trouxe nos níveis individuais e familiar. Como uma falha em um único ponto que deixa marcada toda a continuidade da trama de um tecido. Ou a colocação dos tijolos de um muro: quando uma peça não é bem assentada, todo o restante vai sendo construído torto. Passei tanto tempo na faculdade de História, há tantas e tantas horas de séries, documentários e filmes sobre eventos históricos, mas pouco se fala da dimensão de um trauma histórico naqueles que acordam no dia seguinte, vivem sua vida, almoçam, vão trabalhar, voltam para a casa e dormem para viver outro dia. Como diz Primo Levi em seus livros: é impossível voltar à vida de antes. 

Mas estou divagando - como diria Masuji Ono, o protagonista de Um artista do Mundo Flutuante. O livro é contado em primeira pessoa durante os primeiros anos da ocupação, entre Outubro de 1948 e Junho de 1950. A partir de quatro datas marcadas, que funcionariam como quatro grandes capítulos, Masuji Ono, um artista já aposentado, nos conta os problemas que envolvem as tratativas de casamento de sua filha mais nova, Noriko. A filha mais velha, Setsuko, já casada e com um filho pequeno, Ichiro,  mora longe com seu marido e visita o pai em ocasiões específicas. 

A partir destas questões que envolvem Noriko, Masuji Ono vai recuperando algumas situações passadas e, tomando de sua memória, nos conta eventos que viveu nos períodos pré e durante a guerra. Nos relata também, aos poucos, sua formação como artista, sua ocupação oficial no governo, a relação com seus alunos, o ambiente artístico e cultural boêmio do Japão dos anos 20 e, após, sua virada para uma arte mais patriótica e engajada às causas sociais. 

Contando sobre si, os lugares que frequentou e as relações cultivadas e rompidas ao longo de sua vida, Masuji Ono narra a própria história do Japão e faz um mea culpa, uma retrospectiva das responsabilidades e consequencias da Segunda Guerra Mundial para o que restou àqueles que sobreviveram e agora habitam um outro Japão - um lugar completamente diferente do que conheciam. Tudo isso sem mencionar, nem uma vez sequer, um evento específico ou todo aquele vocabulário já exaustivamente utilizado: bombas incendiárias, kamikazes, Hiroshima, Nagasaki, etc. Mesmo "guerra" é um vocábulo que quase não aparece.

Esta retrospectiva é feita sob as motivações que envolvem o futuro - os problemas das gerações mais jovens: a vergonha da perda, a humilhação da ocupação, a ofensa da rendição, as mortes dos entes queridos e a destruição das paisagens. Quem responsabilizar? Quem é o culpado de tudo isso? São traidores aqueles que levaram o Japão ao seu aniquilamento? 

Por mais que nosso conhecimento sobre o leste asiático seja muito tangencial, sabemos que a história tradicional do Japão é marcada pelos samurais, casas de chás, gueixas e uma forte cultura de expansão imperialista. Uma sociedade bélica, violenta, patriarcal, sanguinária. O que aconteceu com esta tradição após a derrota da Segunda Guerra e a ocupação do território pelos EUA?

Masuji Ono, um intelectual e artista patriota, que ocupou cargos oficiais importantes durante a guerra e participou ativamente da promoção artística das campanhas de recrutamento, apesar de não ser acusado diretamente, é visto como um dos responsáveis - culpados - pelos erros geopolíticos recentes do país. Que posição agora ele ocupa? Sem ser diretamente acusado, suas filhas acham que a proposta de casamento de Noriko do ano anterior foi frustrada por causa do passado de Masuji Ono. Sua família, apesar de tratá-lo com muito respeito, na verdade trata-o com excesso de formalismo e o exclui. Ele está lá. Ele faz parte, mas ao mesmo tempo não faz. 

Abre parênteses.

O neto Ichiro, uma criança pequena, está brincando - do que parece ser - de super-herói. Quem ele está imitando? Um grande samurai da história do Japão, como Musashi? Não. Um cowboy. Seu pai, genro de Masuji Ono, acha melhor seu filho não conhecer os heróis/ samurais da história japonesa, pois não são boa influência. É melhor ele aprender com a cultura norte-americana. 

Depois, mais para frente, a criança enche a boca com espinafre - muito mais do que é capaz - e bate em seu próprio peito para imitar o Popeye. Aos olhos de Masuji Ono, a criança faz isso de modo besta. Tosco. Vergonhoso. 

O tempo passa e Masuji Ono, depois de conversar com seu neto sobre saquê, diz que o Ichiro está grande, tornando-se um homem e poderia experimentar um pouco da bebiba alcoolica. A filha Setsuko se nega a diluir um pouco de saquê na água para dar a seu filho, apesar da expectativa da criança. Mesmo aos protestos de Masuji Ono, dizendo que o momento que um menino experimenta o saquê é um ritual de passagem - uma ocasião importante para a formação do menino-homem e que ele se lembrará para sempre com carinho desse momento, Setsuko nega. O pai de Ichiro discordaria também. 

Fecha parênteses.

Masuji Ono ouve dos jovens adultos que o Japão tem muito a aprender com os EUA e com a "democracia". Ele vê a chegada dos costumes ocidentais ocupando todos os espaços do Japão: desde a "comodidade" dos novos conjuntos habitacionais sendo construídos (apartamentos que, segundo ele, são minúsculos), até os cartazes de cinema e pequenas intervenções de mau-gosto nas decorações para agradar os norte-americanos. 

Os outros de sua geração se suicidam - a fim de "ajudar" as novas gerações a superar a vergonha passada e poderem se voltar ao futuro. Masuji Ono vê a doença e a velhice atingir a geração daqueles que um dia lutaram pela grandiosidade de seu país e que paassaram a serem vistos como "traidores", responsáveis pela decadência, destruição e sujeição do país às forças externas. 

Certo momento, Masuji Ono nos conta que teve uma conversa com sua filha Setsuko e começa dizendo que "se irritou" porque ela estava errada em sua suposição. Para nós, Masuji Ono vai aos poucos recuperando lembranças, nos contando a partir de sua memória, vários momentos e detalhes de sua vida que justificam os motivos pelos quais sua filha estava errada. Em nenhum momento eles se confrontam, mas, no mesmo almoço do evento do saquê, o artista aposentado sugere uma afirmação que indicaria que a filha estava errada - e ele acredita que ela entendeu o recado. De qualquer maneira, ele nos mostra com convicção: ela estava errada. 

Já ouvi falar outras vezes sobre o "choque" de gerações entre os japoneses. O choque entre tradição versus modernidade. Kazuo Ishiguro coloca essas questões de modo sensível e profundo. A partir da personagem de Masuji Ono, o autor nos mostra a importância de uma revisão histórica, que os responsáveis assumam seus papeis na tragédia que assolou o Japão para que o futuro venha a ser, que os jovens e as futuras gerações tenham possibilidades e possam superar os desafios impostos pela guerra e continuar suas vidas e a vida do seu país.

Porém, existe também uma crítica severa contra estas novas gerações que - seja por vergonha, ou outros sentimentos de remorso - transformam esta reflexão em uma completa substituição de seu passado. Parece que não se trata mais de uma autocrítica, mas uma completa substituição de suas história e tradição. Uma hiper-valorização da cultura ocidental, as tentativas sutis de agradar os americanos e a ideia de que o Japão tanto tem a aprender com a democracia norte-americana vem a borrar todo a cultura, tradição e identidade japonesas. Borrar - não apagar - porque, como Masuji Ono mesmo diz ao reconhecer traços de seu filho no seu neto Ichiro, as novas gerações nunca deixam de carregar e levar adiante características herdadas de suas famílias e até mestres. 

"Na verdade, nesse dia, ao ver Ichiro com o rosto colado ao vidro para olhar a rua lá embaixo, percebi o quanto estava ficando parecido com o pai. Havia traços de Setsuko também, mas isso se via principalmente em seu jeito e nas pequenas expressões faciais. E claro, me surpreendeu também a semelhança de Ichiro com meu próprio filho, Kenji, quando tinha essa idade. Confesso que sinto uma estranha consolação ao observar as crianças herdarem essas semelhanças de outros membros da família, e minha esperança é que meu neto as mantenha em seus anos adultos. 

Claro, não é apenas na infância que estamos sujeitos a essas pequenas heranças; um professor ou mentor que admiramos muito no começo da vida adulta deixará sua marca e, de fato, mesmo muito depois que se reavalia, talvez até se rejeita, o grosso dos ensinamentos desse homem, certos traços tenderão a sobreviver, como alguma sombra dessa influência, para ficar com a pessoa pelo resto da vida."

Apesar do sentimento consolador de ver as heranças sendo transmitidas de geração em geração, também é presente o sofrimento. Uma dor tanto entre aqueles que viveram a guerra, foram responsáveis por ela e, se antes eram heróis, tornam-se excluídos e acusados, quanto entre os mais jovens, que tentam apagar o passado herdado. As tentativas de apagamento são frustrantes, pois, como aponta Masuji Ono, inevitalmente os traços e semelhanças são herdados: as tentativas de importação da cultura ocidental e apagamento da tradição são, portanto, dolorosas para todos - independente da geração e da idade. É a melancolia que os afasta e, contraditoriamente, também os une.

Esta foi minha última leitura de 2020 e, com certeza, uma das mais belas.

Senhor das Moscas: de uma primeira impressão morna para um dos livros mais legais que já li

O Senhor das Moscas mexeu comigo. Assim como assombrou Simon, me deixou também muito chocada.

Eu li a resenha já fazia um bom tempo. Talvez ano passado, não sei com certeza, mas foi nesta Black Friday que eu comprei. Na versão e-book estava menos de 10 reais e nem considerei não comprar. Um grupo de crianças sobreviventes de uma queda de avião em uma ilha deserta? Eu achei "UAU", não tinha como ser ruim para uma fã de Lost. Escrito pelo escrito inglês William Golding e publicado em 1954, o livro traz múltiplas possibilidades de leituras e metáforas... Abaixo, segue um pouco sobre as minhas reflexões. (Trata-se de uma reflexão sobre todo o livro, inclusive o final. Não é uma resenha. Se você tem a intenção de ler este livro um dia e não quer spoiler, não continue.)

Antes de "O Jardim Secreto", o último livro que li com personagens infantis foi o de contos de Silvina Ocampo, chamado "A Fúria". Foi um livro incrível, nada infantil. Apesar dos personagens crianças, os contos são bastante obscuros, desconfortáveis. Há uma "maldade", uma "falta de inocência", talvez até um sadismo infantil que perpassa a vida cotidiana e nos deixa muito chocados. Quando comecei a ler Senhor das Moscas, pensei em encontrar algo do tipo. 

Por isso uma decepção enorme até a metade do livro. É muito parado, mas depois compreendi que é tudo a preparação de um terreno para o que vem a seguir.  E o que vem, vem com tudo. 

Na verdade, a falta de preocupação das crianças-sobreviventes numa ilha paradisíaca, sem adultos por perto, me lembrou muito eu mesma no começo da quarentena lá em março/abril: parecia férias! O livro começa com esse sentimento: apesar do desastre (afinal, um avião caiu e não temos comunicação com o mundo civilizado, estamos por nossa própria conta e risco), não está tão ruim assim. 

Mas é claro que as coisas começam a piorar e a ausência de organização social, autoridades e instituições começa a pesar nos mais simples atos da vida do grupo. Apesar do líder eleito na maior alegria e unanimidade entre as crianças nas primeiras páginas, decisões difíceis criam divergências, rivalidades e, em última instância, tragédia. O que se torna mais importante: manter uma fogueira acessa como sinal para um possível resgate, ou caçar carne para alimentar o grupo? 

E até mais ou menos 50% do livro, as dificuldades óbvias que vão pressionando as crianças pela sobrevivência os divide entre dois grupos. Uns são os mais "civilizados", aos quais a sujeira incomoda e cuja preocupação maior é manter a fogueira acessa com a esperança de um resgaste e retorno ao mundo que conhecem. Os outros são os caçadores, que têm uma relação diferente com a ilha: aprendem a ser predadores, caçar e matar javalis e tornam-se mais "primitivos", desenvolvem rituais e crenças e estão preocupados com o aqui e agora. Enquanto os primeiros aguardam o retorno e se vêem na ilha em situação momentânea, os demais adotam uma postura mais integrada e assimilativa ao ambiente.

Isso torna a leitura um pouco chata, como se fosse uma aula de sociologia de ensino médio na qual a gente discute "o que é democracia?" e Rousseau e o homem primitivo. Esta é minha leitura de 2020, claro. No contexto da década de 1950, as atrocidades da Segunda Guerra Mundial haviam colocado em nova perspectiva a civilização ocidental e questionava-se estes valores iluministas até então considerados irrefutáveis.

Porém, da metade em diante, eu fiquei muito mais agarrada ao livro. Assustada. Tensa. Chegou um pouco naquela "falta de inocência" que eu estava esperando. As crianças perdem toda a aura infantil e tornam-se autoritários, caçadores, briguentos, egoístas, egocêntricos e assassinos. Ao mesmo tempo que os mistérios e segredos da ilha também começam a ter mais espaço na narrativa, o que torna tudo mais interessante. 

Gostei muito. Mesmo! Achei o final incrível. Ficava me perguntando se todos morreriam, se seriam resgatados, se virariam selvagens ou cresceriam na ilha e formariam uma nova civilização, ou se seria uma espécie de "A Lagoa Azul" e eles viveriam lá de boas aproveitando o sol da praia, ou se seriam vítimas do monstro da ilha... Mas quando eles são resgatados e caem em prantos, sabendo que apesar de voltarem para casa nada será como antes, me lembrou Primo Levi e a libertação dos campos de concentração. As experiências na ilha não lhes tiraram apenas a inocência infantil, mas também consumiram a "humanidade" de seus corações. Essa desumanização é didaticamente apresentada na cenal final: um ato de caça animalizado entre presa e predadores, o mais fraco e o grupo mais forte, a disputa pelo espaço e dominância pelo macho alpha, o líder do bando. 

Finalmente, ano passado eu maratonei Lost, que se tornou uma das minhas séries favoritas de todos os tempos. Até então, eu não sabia de Senhor das Moscas e é impossível não fazer a relação entre eles. Depois, procurando na internet, vi que - além da referência óbvia - existem em alguns episódios da série menções claras ao livro. Agora, parece que será lançada na Netflix outra série com um enredo inspirado na obra de Golding, mas agora será um grupo de garotas adolescentes. 

Ler um clássico assim, que inspira tantas outras produções contemporâneas e tornou-se referência, é muito bacana.

Expectativa versus realidade: breves comentários sobre O Talentoso Ripley

Novembro foi o mês dos clubes de leitura. Além de "Quinquilharias Nakano", sobre o qual falei no post anterior, li "O Talentoso Ripley" para a leitura coletiva do Querido Clássico. Foi um livro cheio de primeiras vezes. Eu não conhecia a autora, não conhecia o livro, tampouco o filme baseado na obra, muito menos o noir como um gênero literário. 

Gostei muito de tudo: do ritmo, dos personagens, da narrativa, etc. Li em apenas dois dias durante a mini viagens que fizemos para a Serra da Mantiqueira. Há um tempo não lia um thriller psicológico, um suspense ou uma investigação criminal. Tudo isso, ao lado do ritmo insano com a qual as coisas vão acontecendo, me lembrou um pouco de Sidney Sheldon. Eu tinha vergonha de dizer que adorava Sidney Sheldon, mas por muitos anos eu adorava e li vários. 

Enfim, o que mais gostei de O Talentoso Ripley, de Patricia Highsmith e publicado em 1955, é tudo o que é dito-não-dito. Ficam várias especulações no ar, mas todas podem ser óbvias - ou não. Li o livro no escuro, sem ler resenhas nem nada e a sugestão do homossexualismo já tinha me ocorrido, mas para mim foi um - ok, tranquilo, aham. Foi só ouvindo o podcast e aí sim me lembrando de situar o livro na data de sua publicação que percebi melhor a sutileza de como a questão é colocada e qual o seu papel na narrativa. 

Gostei tanto que depois assisti o filme de 1999 com o Allan e achei que foi uma boa adaptação. No livro, no entanto, a sutileza do dito-não-dito é melhor. Normal. 

Dois pequenos comentários que dialogam com o que foi dito no podcast e o que eu li na internet sobre a obra:

1. O deslocamento de Ripley, o incômodo, o não-lugar que ele ocupa socialmente, a marginalização, transparece de maneira muito interessante nos ambientes onde se passa a história. Eu que sou uma apaixonada por Nova York e Roma - já tive a oportunidade de visitar estes lugares - percebi como as cidades são pouquíssimo importantes e quase dispensáveis. Definitivamente, não são outros personagens no livro - como acontece com outras obras, onde o espaço é tão importante quanto todo o resto. Em Nova York, Ripley está a margem, sobrevivendo através de negócios ilegais. Ele não pensa duas vezes quando surge a oportunidade de sair de lá. Sua tentativa frustrada de se tornar ator na cidade da Broadway é como se a cidade, cheia de oportunidades, não cumprisse com suas promessas. 

Depois, na Itália. Primeiro em Mongibello, depois em Roma. Ele não se integra ao lugar, como Marge e Dickie. Ele apenas vive lá. Ele está lá como estava em Nova York. Suas interações com os habitantes são muito pontuais e suas relações com os outros americanos são, minimamente, problemáticas. 

Quando li a resenha e vi que o protagonista saia de Nova York e ia para Roma, achei incrível. Várias memórias sobre os dois lugares me vieram a mente. Mas a verdade é que O Talentoso Ripley poderia se passar em qualquer lugar do mundo. Desde São Paulo até Cochinchina, porque o protagonista não encontra seu lugar - ou, ao menos, não o deixam encontrar o seu lugar por conta de sua homessexualidade. Apesar de ele tentar - e bastante. 

2. Eu só fui situar a orientação sexual de Ripley na década de 50 quando ouvi o podcast. Até então, como uma péssima historiadora, li a obra sempre pensando no tempo e vida presentes. A grande sacada do livro é Ripley se passar por outra pessoa. É viver todo o privilégio e coisas boas que só é acessível ao outro, não a ele. Não lembro direito da história d'A Usurpadora, mas acho que a ideia era esta. Ou então O Príncipe e o Mendigo. Simplesmente a sugestão de trocar de papel e deixar sua vida e agouros para trás, para aproveitar a grama mais verde do vizinho. 

E Thomas Ripley faz isso com toda a habilidade e manipulação dos recursos que ele tem em mãos, falsificando assinatura, mudando seu comportamento, indo buscar as coisas no nome de Dickie na American Express, etc, mas tudo isso num mundo pré-internet e redes sociais.

As vezes ouvimos críticas e pensamos que as redes sociais são veículos de mentiras, que neles as pessoas mostram o que elas não são. Mas a verdade é que a culpa disso não é do Instagram, Facebook ou Twitter, etc. Na dimensão pública, todos sempre passamos pelo que não somos, sempre desejamos o que não podemos ou o que não nos é acessível. Isso desde que o homem tornou-se um ser sociável. Falei um pouco da dicotomia público e privado e a natureza humana quando escrevi sobre O Médico e o Monstro. Neste, Dr. Jekyll consegue fazer uma fórmula que transforma sua fisionomia, o torna irreconhecível, tranforma-o em Hyde e, por isso, o permite fazer tudo o que o reconhecido médico não poderia. Esta é uma versão fantástica. 

Em O Talentoso Ripley, Thomas Ripley falsifica assinatura, imita os gestos, a voz, aprende os gostos, estilo de escrita e absorve aos poucos vida de Dickie, até assumir seu nome. Uma versão muito mais realista, já que Ripley se transforma em Dickie de forma burocrática - oficial. Protocolar. 

Hoje, uma narrativa desse tipo não poderia ignorar o papel das redes sociais. A todo momento nós estamos divulgando uma vida que desejamos, enquadramos um momento numa única foto ou frase, e ela se torna maior ou mais importante do que é. O real e a ficção estão a todo momento brincando com a gente e acho que Patricia Highsmith faz isso também no livro: quem é Thomas, o que ele faz, o que ele é e o que ele acredita, finge e deseja ser. Um constante meme do embate "expectativa versus realidade". 

 

Leitura de férias. Manhã super fria, vista linda da Serra da Mantiqueira, por volta das 7:30 da manhã.

Duas leituras de novembro que foram um pulinho para o outro lado do mundo

Os perfis literários no Instagram, blogs de resenhas de livros e clubes de leitura tem diversificado bastante o tipo de literatura que eu leio. Graças à Gabi Barbosa, este mês li dois autores japoneses que desconhecia: Ryu Murakami e Hiromi Kawakami. Duas leituras muito diferentes entre si e que me trouxeram experiências também antagônicas.

De literatura japonesa, só conheço talvez um dos mais famosos: Haruki Murakami, de quem sou muito fã. Kafka a Beira Mar, 1Q84 e Caçando Carneiros foram leituras que devorei. Adoro o universo fantasioso dos livros, os diálogos filosóficos e a sutileza com a qual traços ocidentais aparecem imbrincados no cotidiano dos personagens. Fora isso, a imagem que tenho do Japão é carregada de preconceitos e esteriótipos do universo de anime herdados da adolescência e alguns passeios na Liberdade. 

Vou falar brevemente sobre as duas leituras porque o intuito do blog é este: mapear minhas experiências literárias. Sinto que consigo mais falar sobre o processo da leitura do que sobre o conteúdo em si, porque é um universo muito novo, sobre o qual nunca estudei e nem vivenciei.

Quinquilharias Nakano - Hiromi Kawakami

"- Tenho uma notícia boa e uma notícia ruim, qual você quer primeiro?" O Allan vive fazendo essa pergunta e minha resposta é SEMPRE: - A notícia ruim. 

Por isso começo com Quinquilharias Nakano, porque eu desgostei demais. Que livro chato de ler! Se não fosse o encontro do clube de leitura e a vontade de dar uma chance ao final, eu acho que teria desistido. 


O microcosmo da loja "Quinquilharias Nakano" tem um "q" de inocência boba que me irritava. A relação dos empregados com o Sr. Nakano, dono da loja, me pareceu estúpida. Ele é, afinal, o patrão, mas aparece o livro inteiro como um amigo, talvez. Não sei. Mas o fato é que não existia uma relaçao patrão-empregado ali, eles apenas "estavam" lá o tempo todo.

Há claramente uma dificuldade de comunicação entre os personagens e pouco se mostra sobre suas vidas fora do universo da loja. Quando falam sobre o que ocorre fora das quatro paredes e com pessoas que não participam daquele microcosmo, é justamente através dos diálogos entre os quatro personagens principais: Sr. Nakano, o proprietário, sua irmã Masayo, a protagonista Hitomi, funcionária da loja e Takeo, o outro empregado. 

Existe uma tensão sexual que não passa. Seja entre o Sr. Nakano e sua amante, o namorado/parceiro sexual de Masayo, Hitomi e Takeo, ou fotografias de pessoas fazendo sexo. Há, inclusive, uma cena entre Hitomi e Masayo comendo torta de maçã cheia de metáforas e bastante interessante. No entanto, em todo o resto, essa tensão é sufocante e não desenrola. E quando desenrola, é incômoda, estranha. Hitomi e Takeo, o casal núcleo, são dois jovens que se sentem atraídos sexualmente um pelo outro, mas não compreendem isso. Ou talvez compreendem e tentam ignorar. Os diálogos são cheios de "- Ahn..." e frases inacabadas. Muitas vezes há um vácuo de silêncio e um constrangimento no ar. A sensação é que eles estavam todos presos, sufocados por um monte de quinquilharias e assim eu me senti em toda a leitura.

Hitomi, a protagonista, muitas vezes me lembrava aquelas personagens femininas bobas de anime, com brilhinhos nos olhos, bochechas rosadas e cabelo amarrado igual Chiquinha do Chaves. Enquanto seu colega de trabalho me lembrava aqueles personagens masculinos de anime, fechados, de poucas palavras, sempre com o semblante sério. Talvez fosse mea culpa, por carregar essa imagem esterotipada. Ou talvez fosse assim mesma a descrição. Não sei. 

Em geral, não gostei dos personagens, da relação entre eles, tampouco dos diálogos. O que me agradou e me chamou a atenção foi a relação das pessoas com os objetos da loja. Essa parte da materialidade, dos objetos antigos, velhos, a oposição entre o analógico e o digital, pôsteres, objetos valiosos e outros que não valem nada, o quanto estes objetos dizem sobre as pessoas e a história do próprio Japão, colecionismo, leilão, etc... Isso é bem interessante de observar.

Miso Soup - Ryu Murakami

Agora a notícia boa. Publicado em 1997 no Japão e em 2005 no Brasil, o livro me surpreendeu em vários sentidos. Eu li a resenha no site da Gabi e vi de cara que houve um match entre eu e o livro e logo comprei.  

Ele foi completamente o oposto da leitura anterior. Não há nada de inocente, nada de bonito. É um livro muito cru, de frases curtas, diretas. Há algumas cenas um tanto gore e até me lembrou um pouco o gênero Pulp e Tarantino. Nas duas primeiras partes do livro rola um mistério, uma tensão e, só na última e terceira parte, um pouco de suspiro. 

Kenji, o protagonista, é um "guia de turismo sexual" e leva seus clientes às ruas e atrações de Tokyo que, em oposição ao que a palavra "turismo" nos remete, o Japão gostaria de esconder. O que é colocado em jogo, durante toda a narrativa, é justamente a oposição entre progresso e decadência. Apesar de ser uma das maiores economias do mundo, a sociedade japonesa do pós-segunda guerra é marcada por muitas contradições internas que, aos olhos dos estrangeiros, tornam-se estranhas e, portanto, escancaradas.

Ryu Murakami coloca a tensão entre o capitalismo ocidental e a cultura tradicional japonesa num espaço justamente onde não há meio termos: no sexo. Diria que, ainda mais, no sexo capitalista, como mercadoria, oferecido pelo Japão e consumido pelo estrangeiro (aqui representado pelos Estados Unidos). Por isso, as contradições ficam tão evidentes, desconfortáveis e sem explicações. Elas são jogadas. A começar pelo próprio jogo de palavras entre turismo e sexo. Não é um turismo que se mostra. Os turistas que procuram sexo não tiram fotos e exibem no Instagram ou fazem álbuns de viagem. Não há propagandas e campanhas de política nacional para atrair este tipo de turista. É um turismo sim, mas do submundo. Escondido. Disfarçado. Um turismo que faz-de-conta-que-não-existe. 

A partir daqui eu queria falar um pouquinho sobre uma cena que se passa na segunda metade do livro, a partir da página 100 mais ou menos. Então, se tiver alguém lendo este texto e não quiser saber spoiler, pare por aqui. 

 

Fiquei pensando muito no quanto a cena na qual Frank hipnotiza algumas de suas vítimas, depois as ataca de modo brutal e, inclusive, queima aos poucos o rosto de uma delas, não é uma metáfora da própria Segunda Guerra. As bombas incendiárias e as bombas atômicas, matando sistematicamente civis a fim de que? Uma causa nobre entre o bem e o mal? A fim de mostrar quem é a maior potência mundial e, portanto, detentora da moral?

Nem sabemos se Frank é o nome verdadeiro deste americano assassino. Ele pode ser qualquer norte-americano estadunidense. O quanto Frank hipnotizando e sabendo como cortar uma garganta sem esguichar muito sangue não é o próprio Robert McNamara analisando friamente a eficiência dos bombardeamentos aéreos na Segunda Guerra Mundial? 

E também o espaço. A geografia onde ocorreu o massacre e quem foram as vítimas. No livro, o omiai pub é duplamente parte do submundo. Além de situar-se numa região periférica de Tokyo, era também um espaço menos procurado pelos consumidores da região. Era um estabelecimento "menor" que os demais, onde frequentavam prostitutas menos interessantes e consumidores menos exigentes. Por isso, com as portas fechadas, as vítimas demorariam a ser encontradas. Num contexto geopolítico, onde ficam o Japão e os demais países do leste asiático? Nossa cultura ocidental importa a superficialidade da cultura de entretenimento desses países, tecnologias, mas o que conhecemos e o quão relevante é o Japão para o mundo? Fico pensando na gravidade desta questão durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. O Japão perdeu a guerra e, pior, não situava-se na Europa. Na geopolítica eurocêntrica e ocidental, o Japão é periferia do mundo. Assim como o omiai pub palco da clímax da narrativa.

Com certeza Miso Soup foi um dos melhores livros que li este ano. Outra parte que me deixou a refletir foi a história de Frank e a lobotomia. Me lembrou vagamente "Um estranho no ninho". Ele é um sintoma da sociedade capitalista ocidental e seus problemas em lidar com a ordem. Onde chegou-se com a civilização ocidental e a ausência total de tradições? Em tirar pedaços de cérebros fora? Sobre isso, não me sinto preparada para discorrer, mas é interessante refletir um pouco. 

#estacaoblogagem - Se existiu um livro que eu amei e desprezei, este livro foi O Jardim Secreto

 

Semana passada, eu estava em outro tempo e espaço e por isso perdi o tema Ouros da Estação Blogagem. Eu e meu marido tiramos uma mini-férias e fomos viajar para uma cidadezinha maravilhosa na Serra da Mantiqueira. Lá, não ligamos a TV e tampouco abri o notebook. Ficamos recolhidos e isolados com os passarinhos. Não me senti inspirada a escrever, mas quis ler bastante, tomar sol, observar a paisagem, comer bem e dormir. Por isso, vou fazer esse pulinho e partir logo para o tema desta semana: Copas. 

 

Um dia antes de partir para as mini-férias, terminei O Jardim Secreto. Baixei no Kindle quando vi uma promoção que me parecia imperdível. É uma história que me lembra muito as tardes que eu passava sozinha quando era criança. Eu tinha uma fita VHS da coleção Videoteca Criança, da Folha de São Paulo, e assisti o desenho baseado no livro incontáveis vezes. Uma vez ou outra também vi o filme na Sessão da Tarde, mas eu não sabia, na época, que era baseado num livro de 1911. 

Para mim, leitura não tem compromisso. É uma experiência de sentimentos e O Jardim Secreto brincou muito com as minhas emoções. Acho até curioso a coincidência com o tema da semana. 

Minha relação com a obra de Frances Hodgson Burnett foi levemente esquizofrênica. Em certos momentos eu amei e me senti inpirada. Em outros, detestei e achei até nocivo. A verdade é que, apesar de alguns pontos bastante datados da narrativa - e que envelheceram muito mal, é um livro leve, fácil de ler e que me trouxe um suspiro no meio de leituras mais densas. 

É muito forte o tom colonialista. Mesmo não sendo o ponto central da narrativa, a relação de Mary com a Índia é lamentável para quem lê o livro 110 anos depois e do Brasil. O conservadorismo também se mostra presente na hiper idealização da pobreza rural. Ao mesmo tempo que Dickon, Martha e sua mãe e irmãos vivem em situação miserável, são também apresentados como personagens mais puros, mais sensíveis, mais "humanos", em contraste com a rudeza e insensibilidade daqueles da cidade grande - ou "mais civilizados". Eu sei que são características de um estilo muito datado, mas não estamos aqui para fazer uma análise de documento histórico, né? 

Ao lado oposto destes pontos que me deixavam desgostosa e incomodada, as brincadeiras de Mary, sua curiosidade infantil e seu interesse pelas plantas e animais são gostosos de ler e imaginar. Quem não gosta de um jardim? De um verde? Uma brisa e um passarinho cantando? A cada botãozinho de flor que abre no meu vasinho de violeta e orquídea, eu pulo de alegria. (Eu, uma adulta de 30 anos, sempre levo os vasinhos para o Allan para mostrar para ele os novos botãozinhos e florzinhas.) Apesar da enorme distância dos quase 110 anos de diferença entre a publicação do livro e a minha leitura, essa parte me aproximou de Mary, do Jardim e da narrativa.

Ele me inspirou a olhar com mais atenção às minhas plantinhas dentro de casa e, como Dickon e Mary que arrancavam as folhas e raízes mortas para deixar os brotos respirarem, cortei com tesourinha as folhinhas já amarelas e murchas dos meus vasos. 

 




Depois, por coincidência, partimos para a Serra da Mantiqueira nas nossas mini-férias e eu vi a beleza que Mary via no Jardim Secreto em vários cantinhos por onde olhava. Fosse no centrinho da cidade, fosse no jardim em volta da casa avarandada onde estávamos. E eu lembrava do pisco que conversava com a Mary e o Dickon toda vez que observava os passarinhos ciscando a grama em frente a janela da cozinha. 

 

Uma tarde, entrou um passarinho dentro da casa. Ele não conseguia sair e se debatia na parede. O Allan com calma foi até ele, o pegou com tanto carinho e, ao soltá-lo no lado de fora, o passarinho ficou lá no dedo dele. E eu pensei o quanto o Allan era o meu Dickon - o encantador de animais - naquele momento. Foi uma beleza muito grande. 


 

Talvez, uma reflexão que eu gostaria de fazer - quem sabe um outro dia - é a relação do homem com a natureza controlada, organizada, manipulada. A natureza enfeitada em um espaço delimitado e completamente sujeita ao homem. O quanto esta é uma natureza - que não deixa de ser "civilizada" - que nos agrada. Algo completamente aposto, por exemplo, à natureza de Moby Dick, de 1851, que li no começo do ano. A natureza que desconhecemos e não controlamos é ameaçadora, não bonita. Tampouco desejável. (Eu falei um pouco disso aqui.) Daí, poderíamos pensar um pouco sobre outros livros que li este ano sobre a relação do ser humano com a natureza e que partem para outro prisma. Livros contemporâneos, como os da Ana Paula Maia e Olga Tokarczuk falam sobre esta relação conflituosa não a partir do dominar ou ser dominado, mas do integrar-se. (Falei um pouco disso aqui.)

Enfim, a leitura d'O Jardim Secreto foi marcada por altos e baixos. Mexeu com emoções boas e ruins. Apesar dos momentos de revolta e xingamentos durante a leitura, não desgrudei do livro. Só precisei depois de um corte no espaço e tempo - um momento de férias e pausa, no meio da Serra da Mantiqueira, para perceber as partes boas e as belezas do que eu tinha lido.

#estacaoblogagem - Apesar das melhores das intenções, admito: não consegui, falhei. E está tudo bem.

 

 

Eu fiquei pensando por muito tempo sobre o que eu poderia escrever para o tema desta semana da #estacaoblogagem. Racionalidade, ideologia, verdade, conflitos internos, problemas que só existem na minha cabeça... Por uma semana eu pensei, pensei e pensei mais um pouco. Esta é a terceira tentativa de produção de um texto. Decidi que ou eu ficava só no plano mental pensando ou eu vinha aqui e agia - de uma forma ou de outra.

 


A verdade é que este blog foi retomado justamente na tentativa de organizar um pouco os pensamentos, que estão uma zona. A vida neste 2020 está sendo adaptada e a minha mente ainda está se acostumando. Então, estou aqui de coração aberto, aos 45 minutos do segundo tempo, para admitir: não consegui. Não consegui materializar em palavras qualquer assunto que se relacionasse ao tema da semana. 

Isso me lembra um pouco quando comecei a escrever minha dissertação de mestrado. Foram anos de pesquisa e leituras. Eu tinha uma ideia vaga do que eu queria dizer, mas não sabia como organizar os argumentos a favor desta ideia, dialogar contra as visões opostas e, muito menos, sintetizar em um parágrafo sobre o que era meu trabalho. Esta foi a parte mais difícil, custosa e demorada: materializar em palavras, frases, parágrafos e capítulos o que se passava na minha cabeça. O que eu via e o que eu pensava com toda aquela documentação era muito mais difícil de explicar do que as horas e horas passadas no arquivo, as discussões e conversas infinitas com a orientadora, as leituras teóricas chatíssimas, o sono na sala de estudos sem ar condicionado no verão, etc.

Neste novembro de 2020, perto de uma segunda onda de covid, meu plano racional luta a todo momento contra o irracional. Sabe aquelas cenas de desenho de anime, nas quais dois personagens estão lutando e jogam um contra o outro colunas de energia, cada uma de uma cor, e vence quem resiste por mais tempo e supera à do adversário? Então, esta sou eu: as duas forças antagônicas do "calma, pense, seja paciente e cuidadosa, controle o que está ao seu controle" está disputando com um medo de "vamos todos mooooooooooorrer" o tempo todo. (Goku e Cell na imagem abaixo, soltando cada um seu ka-me-ha-me-há exemplificam o que quero dizer.)

Hoje o texto é curtíssimo porque é mais uma campanha - uma demonstração de desejo - que essa energia racional, apesar de bagunçada e caótica pelo contexto, sobreviva. Que ela continue resistindo à batalha é o mais importante. O que eu não queria também era perder o prazo e deixar apenas no plano mental a intenção e vontade de participar da #estacaoblogagem. Isso consegui concretizar.

#estacaoblogagem - O naipe de paus que habita comigo

Com a dissertação de mestrado recém entregue, retomei este espaço para a prática da escrita em maio, no auge do meu isolamento social, medo e paranóia com a pandemia. De manhã eu estava higienizando com álcool em gel o novo frasco de álcool em gel e a tarde estava com a plataforma do blogger aberta escrevendo. 

Como tenho lido mais literatura e me interessado mais por outros blogs, encontrei alguns perfis literários que tem incentivado a volta da blogagem - pois a verdade é que todo mundo se cansou já das redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram... Estão todos vivinhos da silva (eu sou uma viciada), mas já deu um pouco, né? Nos saturamos tanto destas redes e plataformas que estamos nostálgicos. (Imagina o retorno do fotolog? #saudades #SQN)

 

Por isso, vou participar da #estacaoblogagem. Isso é irônico demais, porque nas redes sociais eu nunca participei de nenhuma hashtag. Nem daquelas com as quais me identificava ideologicamente. Primeiro pensamento que me incentivou a escrever esta semana para este tema foi: pare de ser tão autocrítica, Giovana. Não vale nota e tampouco um prêmio. Não se trata de uma avaliação de conhecimento ou competição de escrita. Simplesmente escreva sem medo de não ter um texto ótimo. É seu blog. O máximo de ruim que pode acontecer é: 1) ninguém entrar e ver e 2) a pessoa ler, achar ruim, sair e nunca mais voltar. O resto continua igual. 

O segundo pensamento decisivo foi a identificação com o tema. Quando olhei a proposta da primeira semana, não foi difícil pensar sobre o que eu escreveria:

 

É curioso, mas na minha cabeça fogo está sempre associado ao signo de áries que, por sua vez, me remete ao Allan. Os arianos sempre foram muito presentes em minha vida. Posso dizer que sempre habitei com um. Minha mãe, de 24 de março, e meu marido, de 4 de abril, são, cada um do seu jeitinho, típicos arianos que, ao mesmo tempo que me deixam louca (!!!) me tiram da zona do conforto e me jogam sempre para frente. Eu, uma virginiana que tudo o que procura é um lugar quentinho e confortável, para fincar raízes e nunca mais ser incomodada. Se não fosse o Allan, eu com certeza teria ficado parada há muito tempo num lugar só e, aos poucos, iria secando, definhando e virando uma árvore triste e feia. 

As vezes, neste blog, eu me perco um pouco na melancolia. Acho que as palavras são bonitas quando são melancólicas. Quando terminei "De Amor e Trevas", Amos Oz, eu dizia chorando que este tinha sido o livro mais lindo que havia lido em toda a minha vida. Depois, senti o mesmo com "Talvez Esther", Katya Petrovskaya, Primo Levi e todos da Svetlana Aleksiévitch. O Allan diz que sou aficionada pelo século XX. Sou mesmo uma apaixonada. Há, ao mesmo tempo, muita tristeza e beleza num espaço curtíssimo de tempo. 

A minha sorte é que, apesar de eu ser um naipe sem graça, ao meu lado eu tenho um "naipe impulsionador e dinâmico" o tempo todo. As vezes a gente briga e se estranha, mas a verdade é que se não fosse esse amor que começou como um namoro de adolescentes e se transformou em um enorme companheirismo, eu não teria chegando onde cheguei. Não teria, aliás, me transformado na mulher que sou.

Porque essa energia do fogo, ela não é sempre igual. As chamas têm, a cada momento, formas diferentes. O impulso não é apenas para frente - evolutivo, mas é também transformador. Ao mesmo tempo que temos um papel ativo nas chamas de uma fogueira - ora alimentamos ela com mais carvão e ela cresce, ora deixamos de lado e ela diminui - temos também um papel passivo e nos sentimos mais ou menos aquecidos. E nesses processos constantes - diário - eu fui me transformando numa mulher de 30 anos completamente diferente do que eu imaginava aos 16. 

E a verdade? Eu tenho muito orgulho do que me tornei. Acho que o que a Giovana adolescente pensava da Giovana dos 30 era justamente uma mulher-árvore triste, definhando, menos enraizada e mais presa ao solo. Meu naipe de paus, com sua energia e seu impulso, me mostrou mundos e possibilidades que a Giovana-medrosa-dos-16 nunca imaginaria. Hoje eu penso sim que criei raízes - como toda boa virginiana - mas que, com ajuda do Allan, elas são como as raízes das árvores que andam do Senhor dos Anéis. Minhas raízes estão mais nas convicções e nos sentimentos do que em um lugar físico e devo isso graças à vontade de desbravamento, do novo e da energia do naipe de paus que habita comigo.

Em Imunidade, Eula Biss explora o poder da metáfora e eu reflito um pouco sobre a perda de espaços na pandemia

A última vez que busquei este blog nos cafundós da estante - como um caderno de anotação que existe e está lá ao nosso socorro, mas não é sempre usado – foi no auge do meu isolamento social durante a pandemia. Em São Paulo, a quarentena começou na segunda metade de março e o medo (e eu estava com muito medo!) me levou ao total isolamento até o dia 1 de Julho, quando não aguentei mais.

Em março, no mesmo período que se discutia o início do isolamento social, eu depositei minha dissertação de mestrado, que passei os últimos meses em uma intensa rotina de escrita, revisão, leituras e releituras. E também em março, no meio desse caos social, sanitário, político e econômico, a editora Todavia disponibilizou de graça a obra da Eula Biss publicado em 2017, Imunidade, para download no Kindle. Durante todo esse tempo de sete meses eu não toquei no livro. Ele estava lá, mas eu o ignorei. Deliberadamente. Mas nas últimas semanas tenho refletido sobre esse “fim” do isolamento, a existência de uma pandemia que está sendo – devagar e constante – tornando-se menos definitiva em nossas vidas. 

 

Antes, justamente porque COVID, pandemia, coronavírus e todo esse vocabulário e assunto ocupavam todas as horas do meu dia, todos os meus pensamentos, todas as notícias que eu lia, todos os feeds das minhas redes sociais, todas as minhas tomadas de decisões, etc, não havia mais espaço disponível para ler o livro da Eula Biss com a atenção merecida. Teria sido uma leitura contaminada pelo medo, pela paranóia, e não pelo valor da própria palavra escrita. Agora, que estou respirando outros ares, outros assuntos, outros problemas, deu para ler com carinho os ensaios da autora.

Sim, foi assim que o li. Como uma coletânea de curtos ensaios que refletem – a partir de experiências pessoais e outras leituras - sobre saúde, imunidade, epidemia, vacina, maternidade, gripe, contaminação, etc. Onde começa e onde termina nossos corpos como indivíduos dentro de um sistema social dividido por classe, preconceitos, crenças e fronteiras históricas e geográficas. Apesar do assunto pesado, Eula Biss traz de forma muito leve e didática, instigante, o histórico das epidemias e das vacinas: varíola, H1N1, aids e outras doenças infecciosas. E também destrincha em vários pedacinhos o pensamento anti-vacina: desde a desconfiança causada pela falta de assepsia nos primórdios da medicina e vacinação, até o discurso “naturalista” que condena como nocivos à saúde humana substâncias criadas pelo desenvolvimento industrial e que incluem tanto inseticidas como o DDT como polímeros tóxicos que revestem colchões e travesseiros infantis. 

Porém, para além dos dados científicos e históricos que a autora traz, o que mais me chamou atenção são as observações em relação a linguagem: o uso de metáforas para a compreensão do universo científico. Pensamos, por exemplo, em termos bélicos a questão da imunidade: nosso corpo é um cenário de guerra cujas células protetoras do sistema imunológico procuram, perseguem, sufocam e eliminam unidades exógenas e nocivas. Uma batalha sem fim para nos proteger de doenças infecciosas. 

Ou então, a infeliz metáfora (tão em voga nos últimos meses) da imunidade de rebanho. Trata-se de imunidade de grupo, um dos objetivos das campanhas de vacinação: quando muitos já estão protegidos, não há desenvolvimento da doença e, portanto, não há transmissão àqueles que não estão imunizados. O discurso anti-vacina - alimentado pelo extremo individualismo que vê os corpos como unidades autônomas e desconectados dos outros corpos - se favorece desta ideia que sugere que somos gado. Efeito rebanho, mentalidade de rebanho, corpos de animais sendo direcionados ao abate e também uma ideia de fronteira de fazendas: a saúde da propriedade vizinha não é meu problema. 

"Se trocássemos a metáfora do rebanho pela da colméia, talvez o conceito de imunidade compartilhada fosse mais atraente. As abelhas são matriarcais, fazem bem ao meio ambiente e são inteiramente interdependentes. A saúde de qualquer abelha individual, como sabemos a partir da recente epidemia de colapso das colônias, depende da saúde da colmeia." 

Mas talvez a metáfora mais interessante exposta pela autora seja a do Drácula, de Bram Stroker. (Graças também ao fato de que estou influenciadíssima por tudo que li em sites de literatura e clubes de leitura sobre o gótico nesse mês de Halloween) A comparação é sugerida logo nas primeiras páginas e nos acompanha por toda a leitura. A desconfiança em relação à vacinação vem desde o seu surgimento, mas se hoje as acusações antivax são relacionadas à ganância pelo lucro, capitalismo e poluição, antes a resistência e o medo se confundiam com o pensamento fantástico. 

"Um folheto de 1881 intitulado 'O vampiro da vacinação' adverte sobre a 'poluição universal' transferida pelo vacinador ao 'bebê puro'. Conhecidos por se alimentarem do sangue de bebês, os vampiros daquela época se tornaram uma metáfora pronta para os vacinadores que infligiram ferimentos às crianças. [...] De todas as metáforas sugeridas nas abundantes páginas de Drácula, a doença é uma das mais óbvias. O conde chega à Inglaterra exatamente como uma doença nova podia chegar: de navio. Ele invoca hordas de ratos e seu mal infeccioso se espalha da primeira mulher que ele morde às crianças que ela alimenta à noite, sem saber o mal que está causando. O que torna Drácula particularmente aterrorizante e o que faz sua trama levar tanto tempo para se resolver é que ele é um monstro cuja monstruosidade é contagiosa."

Ao publicar Imunidade, Eula Biss menciona a previsão feita, em 2004, pelo então diretor da OMS de que uma pandemia num futuro próximo era inevitável. Ainda que ela não fale de coronavírus, COVID, síndrome respiratória, isolamento social e quarentena, todo o resto dialoga o tempo todo e diretamente com o que estamos vivendo com nossos corpos no individual e no coletivo. 

Quando finalizei a leitura, fiquei pensando na questão do espaço. Como antes, apesar da disponibilidade de tempo e interesse em ler o livro, o assunto pandemia estava ocupando todos os espaços: minha cabeça, minha casa, meus pulmões.. Eu estava me afogando e, às vezes, no desespero, me agarrava ao meu marido tentando me salvar, o que deixava ele também mais sufocado.

Falo de espaços físicos e metafísicos. Não são apenas os sonhos, as tomadas de decisão, os pensamentos e o medo do futuro, foi também a minha casa que se transformou. Eu perdi meu escritório, minha escrivaninha. Todo o espaço físico onde eu passei os últimos meses estudando e escrevendo minha dissertação de mestrado tornou-se home office do marido. Perdi meu sofá e minha TV para uma sala de jogos. Perdi a sala de jantar, pois a mesa virou uma escrivaninha adaptada para o meu computador e livros, enquanto o chão tinha um step, pesinhos e uma bicicleta ergométrica alugada, que me lembravam todos os dias que eu não podia deixar de me exercitar (nem que fosse um pouquinho).

E nesse sufoco, onde todos os espaços foram metamorfoseados, eu não consegui mais estudar e trabalhar. Não consegui mais escrever. Meu objetivo de escrever artigos para publicação e o projeto de doutorado também se afogou. Além do meu escritório, eu não tinha mais o arquivo e a biblioteca da universidade. Quanto mais eu me cobrava de produzir, pior eu me sentia. Eu acho que esse foi um dos motivos pelo qual eu retornei ao espaço deste blog - ele estava lá disponível. Sem pressão. Sem objetivos. Ele continuava igualzinho ao que era antes da pandemia. Me pareceu mais convidativo e menos sufocante. Menos contaminado.

Procurando depois outros blogs para seguir e ler, percebi que está havendo este movimento para retomada da blogosfera. Tantos espaços nos foram retirados, doméstica e socialmente, que os blogs têm sido esse espaço em branco - como cadernos novos - que podem ser preenchidos do zero. 

A pandemia não acabou - e não me arrisco a dizer o contrário. Sei dos perigos. A vida não voltou ao que era antes e não há previsão de quando isso irá acontecer. Eula Biss diz que, quando se tornou mãe, o medo de que algo acontecesse ao seu filho lhe dominou. O sentimento de impotência, ela afirma, vem desde o mito de Aquiles: apesar da tentativa de sua mãe de torná-lo imortal, seu calcanhar, onde sua mãe o segurou, não fora banhado pelas águas mágicas. Por mais que ela fizesse tudo o que lhe fosse possível, ainda sim não seria suficiente para proteger seu filho de todos os riscos existentes. Aos poucos, vamos compreendendo nossos alcances e nossos limites. 

Minha sala de estar e de jantar voltaram às suas funções originais. Outros espaços reapareceram, como academia, parque, restaurantes. Mais recentemente os museus e cinemas. Na minha mente e no meu coração, também pela demanda da continuidade da vida, alegrias e outros problemas dividem espaço com a pandemia. Meu escritório e minha escrivaninha ainda não voltaram, mas sei que voltarão. E já prevendo meus retornos e abandonos a este espaço/caderno, possivelmente quando voltar as práticas de escrita e leitura da vida acadêmica, este blog volte para a estante. Será? Talvez. Não sei. Apesar de não estar mais me afogando e ter recuperado certo controle, não sei como sairei deste mar pandêmico onde ainda estamos todos mergulhados.