Expectativa versus realidade: breves comentários sobre O Talentoso Ripley

Novembro foi o mês dos clubes de leitura. Além de "Quinquilharias Nakano", sobre o qual falei no post anterior, li "O Talentoso Ripley" para a leitura coletiva do Querido Clássico. Foi um livro cheio de primeiras vezes. Eu não conhecia a autora, não conhecia o livro, tampouco o filme baseado na obra, muito menos o noir como um gênero literário. 

Gostei muito de tudo: do ritmo, dos personagens, da narrativa, etc. Li em apenas dois dias durante a mini viagens que fizemos para a Serra da Mantiqueira. Há um tempo não lia um thriller psicológico, um suspense ou uma investigação criminal. Tudo isso, ao lado do ritmo insano com a qual as coisas vão acontecendo, me lembrou um pouco de Sidney Sheldon. Eu tinha vergonha de dizer que adorava Sidney Sheldon, mas por muitos anos eu adorava e li vários. 

Enfim, o que mais gostei de O Talentoso Ripley, de Patricia Highsmith e publicado em 1955, é tudo o que é dito-não-dito. Ficam várias especulações no ar, mas todas podem ser óbvias - ou não. Li o livro no escuro, sem ler resenhas nem nada e a sugestão do homossexualismo já tinha me ocorrido, mas para mim foi um - ok, tranquilo, aham. Foi só ouvindo o podcast e aí sim me lembrando de situar o livro na data de sua publicação que percebi melhor a sutileza de como a questão é colocada e qual o seu papel na narrativa. 

Gostei tanto que depois assisti o filme de 1999 com o Allan e achei que foi uma boa adaptação. No livro, no entanto, a sutileza do dito-não-dito é melhor. Normal. 

Dois pequenos comentários que dialogam com o que foi dito no podcast e o que eu li na internet sobre a obra:

1. O deslocamento de Ripley, o incômodo, o não-lugar que ele ocupa socialmente, a marginalização, transparece de maneira muito interessante nos ambientes onde se passa a história. Eu que sou uma apaixonada por Nova York e Roma - já tive a oportunidade de visitar estes lugares - percebi como as cidades são pouquíssimo importantes e quase dispensáveis. Definitivamente, não são outros personagens no livro - como acontece com outras obras, onde o espaço é tão importante quanto todo o resto. Em Nova York, Ripley está a margem, sobrevivendo através de negócios ilegais. Ele não pensa duas vezes quando surge a oportunidade de sair de lá. Sua tentativa frustrada de se tornar ator na cidade da Broadway é como se a cidade, cheia de oportunidades, não cumprisse com suas promessas. 

Depois, na Itália. Primeiro em Mongibello, depois em Roma. Ele não se integra ao lugar, como Marge e Dickie. Ele apenas vive lá. Ele está lá como estava em Nova York. Suas interações com os habitantes são muito pontuais e suas relações com os outros americanos são, minimamente, problemáticas. 

Quando li a resenha e vi que o protagonista saia de Nova York e ia para Roma, achei incrível. Várias memórias sobre os dois lugares me vieram a mente. Mas a verdade é que O Talentoso Ripley poderia se passar em qualquer lugar do mundo. Desde São Paulo até Cochinchina, porque o protagonista não encontra seu lugar - ou, ao menos, não o deixam encontrar o seu lugar por conta de sua homessexualidade. Apesar de ele tentar - e bastante. 

2. Eu só fui situar a orientação sexual de Ripley na década de 50 quando ouvi o podcast. Até então, como uma péssima historiadora, li a obra sempre pensando no tempo e vida presentes. A grande sacada do livro é Ripley se passar por outra pessoa. É viver todo o privilégio e coisas boas que só é acessível ao outro, não a ele. Não lembro direito da história d'A Usurpadora, mas acho que a ideia era esta. Ou então O Príncipe e o Mendigo. Simplesmente a sugestão de trocar de papel e deixar sua vida e agouros para trás, para aproveitar a grama mais verde do vizinho. 

E Thomas Ripley faz isso com toda a habilidade e manipulação dos recursos que ele tem em mãos, falsificando assinatura, mudando seu comportamento, indo buscar as coisas no nome de Dickie na American Express, etc, mas tudo isso num mundo pré-internet e redes sociais.

As vezes ouvimos críticas e pensamos que as redes sociais são veículos de mentiras, que neles as pessoas mostram o que elas não são. Mas a verdade é que a culpa disso não é do Instagram, Facebook ou Twitter, etc. Na dimensão pública, todos sempre passamos pelo que não somos, sempre desejamos o que não podemos ou o que não nos é acessível. Isso desde que o homem tornou-se um ser sociável. Falei um pouco da dicotomia público e privado e a natureza humana quando escrevi sobre O Médico e o Monstro. Neste, Dr. Jekyll consegue fazer uma fórmula que transforma sua fisionomia, o torna irreconhecível, tranforma-o em Hyde e, por isso, o permite fazer tudo o que o reconhecido médico não poderia. Esta é uma versão fantástica. 

Em O Talentoso Ripley, Thomas Ripley falsifica assinatura, imita os gestos, a voz, aprende os gostos, estilo de escrita e absorve aos poucos vida de Dickie, até assumir seu nome. Uma versão muito mais realista, já que Ripley se transforma em Dickie de forma burocrática - oficial. Protocolar. 

Hoje, uma narrativa desse tipo não poderia ignorar o papel das redes sociais. A todo momento nós estamos divulgando uma vida que desejamos, enquadramos um momento numa única foto ou frase, e ela se torna maior ou mais importante do que é. O real e a ficção estão a todo momento brincando com a gente e acho que Patricia Highsmith faz isso também no livro: quem é Thomas, o que ele faz, o que ele é e o que ele acredita, finge e deseja ser. Um constante meme do embate "expectativa versus realidade". 

 

Leitura de férias. Manhã super fria, vista linda da Serra da Mantiqueira, por volta das 7:30 da manhã.

2 comentários:

  1. Esse post me fez refletir sobre o que somos e o que queremos que os outros pensem que somos!!! Valeu! 😘

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  2. Oi, Giovana!
    Eu não havia pensado muito na questão geográfica do livro, mas tu tens razão: poderia se passar em qualquer lugar porque a sensação de deslocamento é social e psicológica, não necessariamente pertencente a um espaço físico - embora tenha sua relação com o espaço temporal.

    Adorei teu texto e fico feliz por tu teres gostado do livro.

    Bjo!

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