A figura do rei (divino) na Mesopotâmia

Este post, ao contrário dos outros que tem um teor bastante pedagógico e que eu escrevo para todo mundo, será mais particular. Esta semana fiz uma prova do curso de História Antiga cujo assunto é a Mesopotâmia. O professor esperava que no teste fizéssemos a articulação entre três elementos: as aulas expositivas, sete textos historiográficos que ele tinha separado e a documentação que trabalhávamos toda segunda parte da aula. Como eu já sabia disso, passei duas semanas me preparando e por isso meu sábado e meu dia das mães foi ler e reler meus textos e minhas anotações.

Mas, o que está me levando a transcrever meu rascunho de prova no meu blog é que foi o primeiro curso no 3° semestre de faculdade que eu vi uma evolução no meu modo de estudar e de articular o material que tinha em mãos. E isso, é claro, é "exportável" para outras matérias, já que em geral é esse o método que os professores esperam nas provas. Por isso, que o post de hoje terá este caráter mais particular que os outros, estou escrevendo mais para mim isso. Não que o leitor não vá entender o texto, mas as referências aos outros textos e aos documentos será confuso. Semana que vem, caso eu receba já o resultado da prova e minha nota seja apresentável, coloco aqui para dividir com todos.

Sobre a questão: a pergunta não era propriamente uma pergunta. Foram colocados na folha de questão três trechos historiográficos sobre determinado assunto e tínhamos que escolher e dissertar sobre um. O trecho que escolhi falava explicitamente da imagem que o rei mesopotâmico fazia de si mesmo e o que ele representava diante de seu povo.
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Os três primeiros quartos do III° milênio foi caracterizado pelo predomínio do modelo governamental da sociedade-templo, no qual o templo aparece como domínio das relações sociais e o centro de organização e distribuição de recursos. Na metade do III° milênio, porém, a etnia suméria vai perdendo espaço para os semitas e o modelo de sociedade-templo vai cedendo lugar a um novo modelo governamental: a cidade-reino, cuja transição já havia se consolidade por volta do ano de 2.300 a.C..

Neste novo modelo, o palácio assume o papel de eixo central das articulações de poder e deixa para o templo o caráter de centro religioso, como aponta Gwendolyn Leick quando identifica duas instituições que dominaram a Babilônia - o palácio e o templo. Porém, esse novo centro de poder fagocita discursos do poder anterior - o templário, e disso ocorre a divinização do poder real como meio de legitimação. Algo, no entanto, merece atenção. "Na Mesopotâmia, ao contrário do Egito, uns reis eram considerados deus e outros não", como aponta Philip Jones. Apesar de ter havido reis que tiveram seus nomes inscritos com a palavra deus, a personificação divina da realeza não finca raízes. O que há e o que pode explicar a história política na Mesopotâmia é a divinização da soberania.

Philip Jones nos explica muito bem qual era o papel real e como este se apresentava e se legitimava. Esta legitimação, como já foi indicado antes, se dava através de uma aproximação da realeza ao mundo divino em forma de descendência divina, favores divinos, casamento com uma deusa ou estrutura sobre-humana.

Este terceiro elemento se mostrava através do casamento sagrado associado a um ritual de fertilização, no qual o rei, substituindo a figura do deus Dumuzi, se une à deusa Inanna - a deusa do amor sexual. Assim, esse rei divino tinha que contribuir com a ordem cóscima, canalizando o potencial destrutivo da deusa Inanna para fins mais construtivos.

Ainda no texto de Philip Jones, ele enumera alguns aspectos que a figura do rei evocava, sendo elas: 1) evocar a ordem cósmica; 2) prevenir a provocação da ira divina; 3) garantir que as ações humanas não desagradariam os deuses e 4) garantir a existência de templos. Essas características completam as de Marc Van de Mieroop quando diz que, além de evitar a ira divina, o rei da Mesopotâmia tinha que garantir alimento e proteção contra os inimigos, garantir a fertilidade da terra construindo e mantendo canais de irrigação e prover justiça. Fica claro aqui para nós, a forte ligação que o rei mantinha com o mundo divino, ao tentar agradá-lo para evitar catástrofes causadas pela ira divina.

A figura de mantenedor da ordem cósmica e social veio com o surgimento e a difusão dos códigos legais. O rei assume para si o que antes era função divina - a de manter a justiça. Isso comporta ao rei uma enorme responsabilidade e assume a legitimação religiosa do seu poder.

"Os reis mesopotâmicos, desde o início do terceiro milênio a.C., entenderam a importância de capitalizar suas realizações e, então, inscreveram seus feitos heróicos (...) a fim de mostrar aos deuses (...) que estavam cumprindo seus mandatos divinos." Isso pode ser muito bem ilustrado no texto de Gwendolyn Leick quando este afirma que todos os anos o rei retornava sua insígnia ao deus e, depois de jurar que não tinha feito nenhum mal à Babilônia, se voltava para o seu posto. Neste mesmo texto ainda, Leick coloca que no festival anual o rei ainda era apresentado como o coroado e protegido pela lei divina.

No código de Hammu-rabi, nós encontramos a legitimação do poder quando o rei assume que sua posição real foi concedida pelos deuses. Neste mesmo discurso, encontramos o que já foi discutido anteriormente com mais detalhes - o rei assume o papel de traduzir a ordem, de ser provedor de justiça. Esta função traz imbutida a ideia de pastor, o que Marc Van de Mieroop chama de "a shepherd to his flock". Porém, neste texto, ao contrário do próximo que iremos ver, o rei ainda é humano e social apesar da capa divina que reina sobre ele. Na correspondência de Mari o rei não só diz que é criação divina, como também ousa uma comparação e assimila para si atributos divinos. Trata-se de registros de uma mesma dinastia de reis, mas que sob diferentes circunstâncias e necessidades, cada rei atribui para si características mais ou menos ousadas em relação ao mundo divino.