Hamnet, de Maggie O'Ferrell: breves comentários sobre mulheres, heroínas, espaço doméstico

Não sei porque essa mania de ficar se justificando, mas decidi mudar de ideia e escrever sim sobre Hamnet, minha última leitura, já que aparentemente eu estou com dificuldade de começar um novo livro. Criei um vício bobo de precisar fechar um ciclo de leitura com alguns apontamentos para começar outro? Seria poético. 

O Instagram esses dias me sugeriu a página Literatura Inglesa Brasil e o post de chamada era o do Clube do Livro, que estava lendo Hamnet, de Maggie O'Ferrell e publicado em 2020. Eu nunca tinha ouvido falar do título, tampouco da autora. Só conhecia a história de Hamlet e sabia que Shakespeare tinha tido de fato um filho chamado Hamnet que morreu anos antes que o autor escrevesse a peça Hamnlet. Achei tudo isso interessante e resolvi dar uma chance. 

Foi amor a primeira vista. Que livro magnífico!


Apesar do título e de Hamnet ser um personagem importante, a protagonista é Agnes. As mulheres ocupam um lugar tão importante na narrativa que o marido de Agnes, o famoso Shakespeare, não é uma única vez nomeado em todo o livro. O professor, o marido, o pai, o tutor, etc. Ele é sempre referido de outros jeitos, menos de Shakespeare. Imagina o quanto o poder de Agnes seria diminuído só pelo famoso nome, Shakespeare. 

O livro intercala dois momentos: quando Agnes e o Shakespeare se conhecem, se casam e têm seus filhos, e quando Hamnet e sua irmã gêmea Judith ficam doentes e todos os esforços de Agnes para curá-los. 

Sob o ponto de vista de Agnes, acompanhamos o dia a dia das atividades domésticas, sua conexão com a natureza. Ela gosta de cuidar do jardim, das abelhas, de sua águia de estimação. Ela conhece as plantas e faz remédios caseiros, sendo procurada por toda a vizinhança pelos suas habilidades medicinais. Ela também tem um passado meio curioso: sua mãe, morta quando ela ainda era pequena, veio da floresta, diziam. Agnes é meio selvagem, meio bruxa. Ela tem sonhos premonitórios e ao segurar a mão de alguém e pressionar suas mãos, ela consegue "ver" suas almas e o futuro. Ela causa admiração e ao mesmo tempo medo aos vizinhos. 

Agnes me lembrou muito Morgana, de As Brumas de Avalon. Me lembrou da formação da Inglaterra entre os saxões e os bretões, os bárbaros e os civilizados. Shakespeare era da cidade, urbano, ligado ao comércio e às artes. Agnes era do campo, do meio rural, da terra e da casa. Juntos eles formam um novo povo. 

A lembrança de As Brumas de Avalon também veio pela relação entre as mulheres e suas habilidades com as plantas e os animais, ligando-as aos pagãos e condenando-as como bruxas. Finalmente pela centralidade da mulher na história, colocando os homens, o Rei Arthur e o grande Shakespeare, como coadjuvantes numa história na qual as mulheres, escondidas atrás da cortina do teatro, manipularam situações para que estes homens chegassem onde chegaram. 

Agnes não sabe ler. Durante os longos meses de ausência de Shakespeare, que trabalhava na capital, é sua filha mais velha que lê as cartas recebidas e redige as missivas ao pai. Agnes nem sempre entende o que vem escrito: comédia? atores? teatro? Porém, algo une o casal: ambos entendem a alma humana, mesmo que seja cada um do seu jeito. 

Assim como as peças de Shakespeare conversam até hoje, séculos depois, com a natureza humana, Agnes lia a alma daqueles ao seu redor. Ela entendia suas necessidades, compreendia seus medos, sabia como convencê-los. Agnes é uma ótima esposa, ótima mãe, uma filha que guarda a memória da sua mãe com carinho. Acompanhamos a história dessa mulher no casamento, nos partos e na cama de seus filhos doentes, fazendo de tudo para salvá-los da peste. Depois, acompanhamos o seu luto e o sentimento de que, como mãe, ela havia falhado. 

A autora mistura ficção e história, portanto não podemos acreditar que tudo ali tenha acontecido. O único fato histórico do qual realmente temos certeza é que Shakespeare teve um filho chamado Hamnet que morreu ainda criança. Ele ter sido vítima da peste negra é uma teoria da autora, e ela faz isso de maneira fenomenal, conversando com nossa realidade pandêmica Covid-19. (Lembrando que o livro foi lançado em março de 2020!!) O capítulo no qual acompanhamos a pulga que causou o adoecimento de Judith e Hamnet, saindo de Alexandria, Egito, embarcando em um navio e passando meses em alto mar e atravessando continentes, até chegar numa pequena vila rural da Inglaterra, é fenomenal. 

Enfim, Agnes me fez perceber que em minhas últimas leituras tenho procurado a heroína que não luta pelo seu espaço no mundo masculino. Pelo contrário. Minhas heroínas reafirmam seus papeis dentro do ambiente doméstico e familiar. Como as donas de casa dos contos de Lucia Berlin, as esposas dos contos de Silvana Ocampo, mesmo a personagem Phoebe de A Casa das 7 Torres, e a própria Morgana de As Brumas. São mulheres que na rotina e no cotidiano transformam a vida doméstica daqueles que com elas habitam. Suas grandes habilidades são a arrumação, a cozinha, o olhar atencioso e cuidadoso e às vezes maléfico. As mulheres de Silvana Ocampo, em suas habilidades femininas, são manipuladoras e vingativas. 

Livro recomendadíssimo. Chorei bastante nos capítulos de morte e luto. A leitura é envolvente, bastante visual, e coloca em evidência uma coisa que as vezes é deixada de lado: quando lembramos das mulheres "apagadas" e "esquecidas" da história, não podemos nomear apenas artistas, poetisas, musicistas, cientistas e descobridoras. Se começamos, como sociedade, a falar da "economia do cuidado", então temos também que lembrar de multidões de mulheres que nunca saíram do espaço doméstico e familiar e, nem por isso, não deixaram de ter um impacto enorme nos rumos e na vida daqueles que - de fato - deixaram seus nomes impressos na história.