Duas leituras de novembro que foram um pulinho para o outro lado do mundo

Os perfis literários no Instagram, blogs de resenhas de livros e clubes de leitura tem diversificado bastante o tipo de literatura que eu leio. Graças à Gabi Barbosa, este mês li dois autores japoneses que desconhecia: Ryu Murakami e Hiromi Kawakami. Duas leituras muito diferentes entre si e que me trouxeram experiências também antagônicas.

De literatura japonesa, só conheço talvez um dos mais famosos: Haruki Murakami, de quem sou muito fã. Kafka a Beira Mar, 1Q84 e Caçando Carneiros foram leituras que devorei. Adoro o universo fantasioso dos livros, os diálogos filosóficos e a sutileza com a qual traços ocidentais aparecem imbrincados no cotidiano dos personagens. Fora isso, a imagem que tenho do Japão é carregada de preconceitos e esteriótipos do universo de anime herdados da adolescência e alguns passeios na Liberdade. 

Vou falar brevemente sobre as duas leituras porque o intuito do blog é este: mapear minhas experiências literárias. Sinto que consigo mais falar sobre o processo da leitura do que sobre o conteúdo em si, porque é um universo muito novo, sobre o qual nunca estudei e nem vivenciei.

Quinquilharias Nakano - Hiromi Kawakami

"- Tenho uma notícia boa e uma notícia ruim, qual você quer primeiro?" O Allan vive fazendo essa pergunta e minha resposta é SEMPRE: - A notícia ruim. 

Por isso começo com Quinquilharias Nakano, porque eu desgostei demais. Que livro chato de ler! Se não fosse o encontro do clube de leitura e a vontade de dar uma chance ao final, eu acho que teria desistido. 


O microcosmo da loja "Quinquilharias Nakano" tem um "q" de inocência boba que me irritava. A relação dos empregados com o Sr. Nakano, dono da loja, me pareceu estúpida. Ele é, afinal, o patrão, mas aparece o livro inteiro como um amigo, talvez. Não sei. Mas o fato é que não existia uma relaçao patrão-empregado ali, eles apenas "estavam" lá o tempo todo.

Há claramente uma dificuldade de comunicação entre os personagens e pouco se mostra sobre suas vidas fora do universo da loja. Quando falam sobre o que ocorre fora das quatro paredes e com pessoas que não participam daquele microcosmo, é justamente através dos diálogos entre os quatro personagens principais: Sr. Nakano, o proprietário, sua irmã Masayo, a protagonista Hitomi, funcionária da loja e Takeo, o outro empregado. 

Existe uma tensão sexual que não passa. Seja entre o Sr. Nakano e sua amante, o namorado/parceiro sexual de Masayo, Hitomi e Takeo, ou fotografias de pessoas fazendo sexo. Há, inclusive, uma cena entre Hitomi e Masayo comendo torta de maçã cheia de metáforas e bastante interessante. No entanto, em todo o resto, essa tensão é sufocante e não desenrola. E quando desenrola, é incômoda, estranha. Hitomi e Takeo, o casal núcleo, são dois jovens que se sentem atraídos sexualmente um pelo outro, mas não compreendem isso. Ou talvez compreendem e tentam ignorar. Os diálogos são cheios de "- Ahn..." e frases inacabadas. Muitas vezes há um vácuo de silêncio e um constrangimento no ar. A sensação é que eles estavam todos presos, sufocados por um monte de quinquilharias e assim eu me senti em toda a leitura.

Hitomi, a protagonista, muitas vezes me lembrava aquelas personagens femininas bobas de anime, com brilhinhos nos olhos, bochechas rosadas e cabelo amarrado igual Chiquinha do Chaves. Enquanto seu colega de trabalho me lembrava aqueles personagens masculinos de anime, fechados, de poucas palavras, sempre com o semblante sério. Talvez fosse mea culpa, por carregar essa imagem esterotipada. Ou talvez fosse assim mesma a descrição. Não sei. 

Em geral, não gostei dos personagens, da relação entre eles, tampouco dos diálogos. O que me agradou e me chamou a atenção foi a relação das pessoas com os objetos da loja. Essa parte da materialidade, dos objetos antigos, velhos, a oposição entre o analógico e o digital, pôsteres, objetos valiosos e outros que não valem nada, o quanto estes objetos dizem sobre as pessoas e a história do próprio Japão, colecionismo, leilão, etc... Isso é bem interessante de observar.

Miso Soup - Ryu Murakami

Agora a notícia boa. Publicado em 1997 no Japão e em 2005 no Brasil, o livro me surpreendeu em vários sentidos. Eu li a resenha no site da Gabi e vi de cara que houve um match entre eu e o livro e logo comprei.  

Ele foi completamente o oposto da leitura anterior. Não há nada de inocente, nada de bonito. É um livro muito cru, de frases curtas, diretas. Há algumas cenas um tanto gore e até me lembrou um pouco o gênero Pulp e Tarantino. Nas duas primeiras partes do livro rola um mistério, uma tensão e, só na última e terceira parte, um pouco de suspiro. 

Kenji, o protagonista, é um "guia de turismo sexual" e leva seus clientes às ruas e atrações de Tokyo que, em oposição ao que a palavra "turismo" nos remete, o Japão gostaria de esconder. O que é colocado em jogo, durante toda a narrativa, é justamente a oposição entre progresso e decadência. Apesar de ser uma das maiores economias do mundo, a sociedade japonesa do pós-segunda guerra é marcada por muitas contradições internas que, aos olhos dos estrangeiros, tornam-se estranhas e, portanto, escancaradas.

Ryu Murakami coloca a tensão entre o capitalismo ocidental e a cultura tradicional japonesa num espaço justamente onde não há meio termos: no sexo. Diria que, ainda mais, no sexo capitalista, como mercadoria, oferecido pelo Japão e consumido pelo estrangeiro (aqui representado pelos Estados Unidos). Por isso, as contradições ficam tão evidentes, desconfortáveis e sem explicações. Elas são jogadas. A começar pelo próprio jogo de palavras entre turismo e sexo. Não é um turismo que se mostra. Os turistas que procuram sexo não tiram fotos e exibem no Instagram ou fazem álbuns de viagem. Não há propagandas e campanhas de política nacional para atrair este tipo de turista. É um turismo sim, mas do submundo. Escondido. Disfarçado. Um turismo que faz-de-conta-que-não-existe. 

A partir daqui eu queria falar um pouquinho sobre uma cena que se passa na segunda metade do livro, a partir da página 100 mais ou menos. Então, se tiver alguém lendo este texto e não quiser saber spoiler, pare por aqui. 

 

Fiquei pensando muito no quanto a cena na qual Frank hipnotiza algumas de suas vítimas, depois as ataca de modo brutal e, inclusive, queima aos poucos o rosto de uma delas, não é uma metáfora da própria Segunda Guerra. As bombas incendiárias e as bombas atômicas, matando sistematicamente civis a fim de que? Uma causa nobre entre o bem e o mal? A fim de mostrar quem é a maior potência mundial e, portanto, detentora da moral?

Nem sabemos se Frank é o nome verdadeiro deste americano assassino. Ele pode ser qualquer norte-americano estadunidense. O quanto Frank hipnotizando e sabendo como cortar uma garganta sem esguichar muito sangue não é o próprio Robert McNamara analisando friamente a eficiência dos bombardeamentos aéreos na Segunda Guerra Mundial? 

E também o espaço. A geografia onde ocorreu o massacre e quem foram as vítimas. No livro, o omiai pub é duplamente parte do submundo. Além de situar-se numa região periférica de Tokyo, era também um espaço menos procurado pelos consumidores da região. Era um estabelecimento "menor" que os demais, onde frequentavam prostitutas menos interessantes e consumidores menos exigentes. Por isso, com as portas fechadas, as vítimas demorariam a ser encontradas. Num contexto geopolítico, onde ficam o Japão e os demais países do leste asiático? Nossa cultura ocidental importa a superficialidade da cultura de entretenimento desses países, tecnologias, mas o que conhecemos e o quão relevante é o Japão para o mundo? Fico pensando na gravidade desta questão durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. O Japão perdeu a guerra e, pior, não situava-se na Europa. Na geopolítica eurocêntrica e ocidental, o Japão é periferia do mundo. Assim como o omiai pub palco da clímax da narrativa.

Com certeza Miso Soup foi um dos melhores livros que li este ano. Outra parte que me deixou a refletir foi a história de Frank e a lobotomia. Me lembrou vagamente "Um estranho no ninho". Ele é um sintoma da sociedade capitalista ocidental e seus problemas em lidar com a ordem. Onde chegou-se com a civilização ocidental e a ausência total de tradições? Em tirar pedaços de cérebros fora? Sobre isso, não me sinto preparada para discorrer, mas é interessante refletir um pouco. 

#estacaoblogagem - Se existiu um livro que eu amei e desprezei, este livro foi O Jardim Secreto

 

Semana passada, eu estava em outro tempo e espaço e por isso perdi o tema Ouros da Estação Blogagem. Eu e meu marido tiramos uma mini-férias e fomos viajar para uma cidadezinha maravilhosa na Serra da Mantiqueira. Lá, não ligamos a TV e tampouco abri o notebook. Ficamos recolhidos e isolados com os passarinhos. Não me senti inspirada a escrever, mas quis ler bastante, tomar sol, observar a paisagem, comer bem e dormir. Por isso, vou fazer esse pulinho e partir logo para o tema desta semana: Copas. 

 

Um dia antes de partir para as mini-férias, terminei O Jardim Secreto. Baixei no Kindle quando vi uma promoção que me parecia imperdível. É uma história que me lembra muito as tardes que eu passava sozinha quando era criança. Eu tinha uma fita VHS da coleção Videoteca Criança, da Folha de São Paulo, e assisti o desenho baseado no livro incontáveis vezes. Uma vez ou outra também vi o filme na Sessão da Tarde, mas eu não sabia, na época, que era baseado num livro de 1911. 

Para mim, leitura não tem compromisso. É uma experiência de sentimentos e O Jardim Secreto brincou muito com as minhas emoções. Acho até curioso a coincidência com o tema da semana. 

Minha relação com a obra de Frances Hodgson Burnett foi levemente esquizofrênica. Em certos momentos eu amei e me senti inpirada. Em outros, detestei e achei até nocivo. A verdade é que, apesar de alguns pontos bastante datados da narrativa - e que envelheceram muito mal, é um livro leve, fácil de ler e que me trouxe um suspiro no meio de leituras mais densas. 

É muito forte o tom colonialista. Mesmo não sendo o ponto central da narrativa, a relação de Mary com a Índia é lamentável para quem lê o livro 110 anos depois e do Brasil. O conservadorismo também se mostra presente na hiper idealização da pobreza rural. Ao mesmo tempo que Dickon, Martha e sua mãe e irmãos vivem em situação miserável, são também apresentados como personagens mais puros, mais sensíveis, mais "humanos", em contraste com a rudeza e insensibilidade daqueles da cidade grande - ou "mais civilizados". Eu sei que são características de um estilo muito datado, mas não estamos aqui para fazer uma análise de documento histórico, né? 

Ao lado oposto destes pontos que me deixavam desgostosa e incomodada, as brincadeiras de Mary, sua curiosidade infantil e seu interesse pelas plantas e animais são gostosos de ler e imaginar. Quem não gosta de um jardim? De um verde? Uma brisa e um passarinho cantando? A cada botãozinho de flor que abre no meu vasinho de violeta e orquídea, eu pulo de alegria. (Eu, uma adulta de 30 anos, sempre levo os vasinhos para o Allan para mostrar para ele os novos botãozinhos e florzinhas.) Apesar da enorme distância dos quase 110 anos de diferença entre a publicação do livro e a minha leitura, essa parte me aproximou de Mary, do Jardim e da narrativa.

Ele me inspirou a olhar com mais atenção às minhas plantinhas dentro de casa e, como Dickon e Mary que arrancavam as folhas e raízes mortas para deixar os brotos respirarem, cortei com tesourinha as folhinhas já amarelas e murchas dos meus vasos. 

 




Depois, por coincidência, partimos para a Serra da Mantiqueira nas nossas mini-férias e eu vi a beleza que Mary via no Jardim Secreto em vários cantinhos por onde olhava. Fosse no centrinho da cidade, fosse no jardim em volta da casa avarandada onde estávamos. E eu lembrava do pisco que conversava com a Mary e o Dickon toda vez que observava os passarinhos ciscando a grama em frente a janela da cozinha. 

 

Uma tarde, entrou um passarinho dentro da casa. Ele não conseguia sair e se debatia na parede. O Allan com calma foi até ele, o pegou com tanto carinho e, ao soltá-lo no lado de fora, o passarinho ficou lá no dedo dele. E eu pensei o quanto o Allan era o meu Dickon - o encantador de animais - naquele momento. Foi uma beleza muito grande. 


 

Talvez, uma reflexão que eu gostaria de fazer - quem sabe um outro dia - é a relação do homem com a natureza controlada, organizada, manipulada. A natureza enfeitada em um espaço delimitado e completamente sujeita ao homem. O quanto esta é uma natureza - que não deixa de ser "civilizada" - que nos agrada. Algo completamente aposto, por exemplo, à natureza de Moby Dick, de 1851, que li no começo do ano. A natureza que desconhecemos e não controlamos é ameaçadora, não bonita. Tampouco desejável. (Eu falei um pouco disso aqui.) Daí, poderíamos pensar um pouco sobre outros livros que li este ano sobre a relação do ser humano com a natureza e que partem para outro prisma. Livros contemporâneos, como os da Ana Paula Maia e Olga Tokarczuk falam sobre esta relação conflituosa não a partir do dominar ou ser dominado, mas do integrar-se. (Falei um pouco disso aqui.)

Enfim, a leitura d'O Jardim Secreto foi marcada por altos e baixos. Mexeu com emoções boas e ruins. Apesar dos momentos de revolta e xingamentos durante a leitura, não desgrudei do livro. Só precisei depois de um corte no espaço e tempo - um momento de férias e pausa, no meio da Serra da Mantiqueira, para perceber as partes boas e as belezas do que eu tinha lido.

#estacaoblogagem - Apesar das melhores das intenções, admito: não consegui, falhei. E está tudo bem.

 

 

Eu fiquei pensando por muito tempo sobre o que eu poderia escrever para o tema desta semana da #estacaoblogagem. Racionalidade, ideologia, verdade, conflitos internos, problemas que só existem na minha cabeça... Por uma semana eu pensei, pensei e pensei mais um pouco. Esta é a terceira tentativa de produção de um texto. Decidi que ou eu ficava só no plano mental pensando ou eu vinha aqui e agia - de uma forma ou de outra.

 


A verdade é que este blog foi retomado justamente na tentativa de organizar um pouco os pensamentos, que estão uma zona. A vida neste 2020 está sendo adaptada e a minha mente ainda está se acostumando. Então, estou aqui de coração aberto, aos 45 minutos do segundo tempo, para admitir: não consegui. Não consegui materializar em palavras qualquer assunto que se relacionasse ao tema da semana. 

Isso me lembra um pouco quando comecei a escrever minha dissertação de mestrado. Foram anos de pesquisa e leituras. Eu tinha uma ideia vaga do que eu queria dizer, mas não sabia como organizar os argumentos a favor desta ideia, dialogar contra as visões opostas e, muito menos, sintetizar em um parágrafo sobre o que era meu trabalho. Esta foi a parte mais difícil, custosa e demorada: materializar em palavras, frases, parágrafos e capítulos o que se passava na minha cabeça. O que eu via e o que eu pensava com toda aquela documentação era muito mais difícil de explicar do que as horas e horas passadas no arquivo, as discussões e conversas infinitas com a orientadora, as leituras teóricas chatíssimas, o sono na sala de estudos sem ar condicionado no verão, etc.

Neste novembro de 2020, perto de uma segunda onda de covid, meu plano racional luta a todo momento contra o irracional. Sabe aquelas cenas de desenho de anime, nas quais dois personagens estão lutando e jogam um contra o outro colunas de energia, cada uma de uma cor, e vence quem resiste por mais tempo e supera à do adversário? Então, esta sou eu: as duas forças antagônicas do "calma, pense, seja paciente e cuidadosa, controle o que está ao seu controle" está disputando com um medo de "vamos todos mooooooooooorrer" o tempo todo. (Goku e Cell na imagem abaixo, soltando cada um seu ka-me-ha-me-há exemplificam o que quero dizer.)

Hoje o texto é curtíssimo porque é mais uma campanha - uma demonstração de desejo - que essa energia racional, apesar de bagunçada e caótica pelo contexto, sobreviva. Que ela continue resistindo à batalha é o mais importante. O que eu não queria também era perder o prazo e deixar apenas no plano mental a intenção e vontade de participar da #estacaoblogagem. Isso consegui concretizar.

#estacaoblogagem - O naipe de paus que habita comigo

Com a dissertação de mestrado recém entregue, retomei este espaço para a prática da escrita em maio, no auge do meu isolamento social, medo e paranóia com a pandemia. De manhã eu estava higienizando com álcool em gel o novo frasco de álcool em gel e a tarde estava com a plataforma do blogger aberta escrevendo. 

Como tenho lido mais literatura e me interessado mais por outros blogs, encontrei alguns perfis literários que tem incentivado a volta da blogagem - pois a verdade é que todo mundo se cansou já das redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram... Estão todos vivinhos da silva (eu sou uma viciada), mas já deu um pouco, né? Nos saturamos tanto destas redes e plataformas que estamos nostálgicos. (Imagina o retorno do fotolog? #saudades #SQN)

 

Por isso, vou participar da #estacaoblogagem. Isso é irônico demais, porque nas redes sociais eu nunca participei de nenhuma hashtag. Nem daquelas com as quais me identificava ideologicamente. Primeiro pensamento que me incentivou a escrever esta semana para este tema foi: pare de ser tão autocrítica, Giovana. Não vale nota e tampouco um prêmio. Não se trata de uma avaliação de conhecimento ou competição de escrita. Simplesmente escreva sem medo de não ter um texto ótimo. É seu blog. O máximo de ruim que pode acontecer é: 1) ninguém entrar e ver e 2) a pessoa ler, achar ruim, sair e nunca mais voltar. O resto continua igual. 

O segundo pensamento decisivo foi a identificação com o tema. Quando olhei a proposta da primeira semana, não foi difícil pensar sobre o que eu escreveria:

 

É curioso, mas na minha cabeça fogo está sempre associado ao signo de áries que, por sua vez, me remete ao Allan. Os arianos sempre foram muito presentes em minha vida. Posso dizer que sempre habitei com um. Minha mãe, de 24 de março, e meu marido, de 4 de abril, são, cada um do seu jeitinho, típicos arianos que, ao mesmo tempo que me deixam louca (!!!) me tiram da zona do conforto e me jogam sempre para frente. Eu, uma virginiana que tudo o que procura é um lugar quentinho e confortável, para fincar raízes e nunca mais ser incomodada. Se não fosse o Allan, eu com certeza teria ficado parada há muito tempo num lugar só e, aos poucos, iria secando, definhando e virando uma árvore triste e feia. 

As vezes, neste blog, eu me perco um pouco na melancolia. Acho que as palavras são bonitas quando são melancólicas. Quando terminei "De Amor e Trevas", Amos Oz, eu dizia chorando que este tinha sido o livro mais lindo que havia lido em toda a minha vida. Depois, senti o mesmo com "Talvez Esther", Katya Petrovskaya, Primo Levi e todos da Svetlana Aleksiévitch. O Allan diz que sou aficionada pelo século XX. Sou mesmo uma apaixonada. Há, ao mesmo tempo, muita tristeza e beleza num espaço curtíssimo de tempo. 

A minha sorte é que, apesar de eu ser um naipe sem graça, ao meu lado eu tenho um "naipe impulsionador e dinâmico" o tempo todo. As vezes a gente briga e se estranha, mas a verdade é que se não fosse esse amor que começou como um namoro de adolescentes e se transformou em um enorme companheirismo, eu não teria chegando onde cheguei. Não teria, aliás, me transformado na mulher que sou.

Porque essa energia do fogo, ela não é sempre igual. As chamas têm, a cada momento, formas diferentes. O impulso não é apenas para frente - evolutivo, mas é também transformador. Ao mesmo tempo que temos um papel ativo nas chamas de uma fogueira - ora alimentamos ela com mais carvão e ela cresce, ora deixamos de lado e ela diminui - temos também um papel passivo e nos sentimos mais ou menos aquecidos. E nesses processos constantes - diário - eu fui me transformando numa mulher de 30 anos completamente diferente do que eu imaginava aos 16. 

E a verdade? Eu tenho muito orgulho do que me tornei. Acho que o que a Giovana adolescente pensava da Giovana dos 30 era justamente uma mulher-árvore triste, definhando, menos enraizada e mais presa ao solo. Meu naipe de paus, com sua energia e seu impulso, me mostrou mundos e possibilidades que a Giovana-medrosa-dos-16 nunca imaginaria. Hoje eu penso sim que criei raízes - como toda boa virginiana - mas que, com ajuda do Allan, elas são como as raízes das árvores que andam do Senhor dos Anéis. Minhas raízes estão mais nas convicções e nos sentimentos do que em um lugar físico e devo isso graças à vontade de desbravamento, do novo e da energia do naipe de paus que habita comigo.

Em Imunidade, Eula Biss explora o poder da metáfora e eu reflito um pouco sobre a perda de espaços na pandemia

A última vez que busquei este blog nos cafundós da estante - como um caderno de anotação que existe e está lá ao nosso socorro, mas não é sempre usado – foi no auge do meu isolamento social durante a pandemia. Em São Paulo, a quarentena começou na segunda metade de março e o medo (e eu estava com muito medo!) me levou ao total isolamento até o dia 1 de Julho, quando não aguentei mais.

Em março, no mesmo período que se discutia o início do isolamento social, eu depositei minha dissertação de mestrado, que passei os últimos meses em uma intensa rotina de escrita, revisão, leituras e releituras. E também em março, no meio desse caos social, sanitário, político e econômico, a editora Todavia disponibilizou de graça a obra da Eula Biss publicado em 2017, Imunidade, para download no Kindle. Durante todo esse tempo de sete meses eu não toquei no livro. Ele estava lá, mas eu o ignorei. Deliberadamente. Mas nas últimas semanas tenho refletido sobre esse “fim” do isolamento, a existência de uma pandemia que está sendo – devagar e constante – tornando-se menos definitiva em nossas vidas. 

 

Antes, justamente porque COVID, pandemia, coronavírus e todo esse vocabulário e assunto ocupavam todas as horas do meu dia, todos os meus pensamentos, todas as notícias que eu lia, todos os feeds das minhas redes sociais, todas as minhas tomadas de decisões, etc, não havia mais espaço disponível para ler o livro da Eula Biss com a atenção merecida. Teria sido uma leitura contaminada pelo medo, pela paranóia, e não pelo valor da própria palavra escrita. Agora, que estou respirando outros ares, outros assuntos, outros problemas, deu para ler com carinho os ensaios da autora.

Sim, foi assim que o li. Como uma coletânea de curtos ensaios que refletem – a partir de experiências pessoais e outras leituras - sobre saúde, imunidade, epidemia, vacina, maternidade, gripe, contaminação, etc. Onde começa e onde termina nossos corpos como indivíduos dentro de um sistema social dividido por classe, preconceitos, crenças e fronteiras históricas e geográficas. Apesar do assunto pesado, Eula Biss traz de forma muito leve e didática, instigante, o histórico das epidemias e das vacinas: varíola, H1N1, aids e outras doenças infecciosas. E também destrincha em vários pedacinhos o pensamento anti-vacina: desde a desconfiança causada pela falta de assepsia nos primórdios da medicina e vacinação, até o discurso “naturalista” que condena como nocivos à saúde humana substâncias criadas pelo desenvolvimento industrial e que incluem tanto inseticidas como o DDT como polímeros tóxicos que revestem colchões e travesseiros infantis. 

Porém, para além dos dados científicos e históricos que a autora traz, o que mais me chamou atenção são as observações em relação a linguagem: o uso de metáforas para a compreensão do universo científico. Pensamos, por exemplo, em termos bélicos a questão da imunidade: nosso corpo é um cenário de guerra cujas células protetoras do sistema imunológico procuram, perseguem, sufocam e eliminam unidades exógenas e nocivas. Uma batalha sem fim para nos proteger de doenças infecciosas. 

Ou então, a infeliz metáfora (tão em voga nos últimos meses) da imunidade de rebanho. Trata-se de imunidade de grupo, um dos objetivos das campanhas de vacinação: quando muitos já estão protegidos, não há desenvolvimento da doença e, portanto, não há transmissão àqueles que não estão imunizados. O discurso anti-vacina - alimentado pelo extremo individualismo que vê os corpos como unidades autônomas e desconectados dos outros corpos - se favorece desta ideia que sugere que somos gado. Efeito rebanho, mentalidade de rebanho, corpos de animais sendo direcionados ao abate e também uma ideia de fronteira de fazendas: a saúde da propriedade vizinha não é meu problema. 

"Se trocássemos a metáfora do rebanho pela da colméia, talvez o conceito de imunidade compartilhada fosse mais atraente. As abelhas são matriarcais, fazem bem ao meio ambiente e são inteiramente interdependentes. A saúde de qualquer abelha individual, como sabemos a partir da recente epidemia de colapso das colônias, depende da saúde da colmeia." 

Mas talvez a metáfora mais interessante exposta pela autora seja a do Drácula, de Bram Stroker. (Graças também ao fato de que estou influenciadíssima por tudo que li em sites de literatura e clubes de leitura sobre o gótico nesse mês de Halloween) A comparação é sugerida logo nas primeiras páginas e nos acompanha por toda a leitura. A desconfiança em relação à vacinação vem desde o seu surgimento, mas se hoje as acusações antivax são relacionadas à ganância pelo lucro, capitalismo e poluição, antes a resistência e o medo se confundiam com o pensamento fantástico. 

"Um folheto de 1881 intitulado 'O vampiro da vacinação' adverte sobre a 'poluição universal' transferida pelo vacinador ao 'bebê puro'. Conhecidos por se alimentarem do sangue de bebês, os vampiros daquela época se tornaram uma metáfora pronta para os vacinadores que infligiram ferimentos às crianças. [...] De todas as metáforas sugeridas nas abundantes páginas de Drácula, a doença é uma das mais óbvias. O conde chega à Inglaterra exatamente como uma doença nova podia chegar: de navio. Ele invoca hordas de ratos e seu mal infeccioso se espalha da primeira mulher que ele morde às crianças que ela alimenta à noite, sem saber o mal que está causando. O que torna Drácula particularmente aterrorizante e o que faz sua trama levar tanto tempo para se resolver é que ele é um monstro cuja monstruosidade é contagiosa."

Ao publicar Imunidade, Eula Biss menciona a previsão feita, em 2004, pelo então diretor da OMS de que uma pandemia num futuro próximo era inevitável. Ainda que ela não fale de coronavírus, COVID, síndrome respiratória, isolamento social e quarentena, todo o resto dialoga o tempo todo e diretamente com o que estamos vivendo com nossos corpos no individual e no coletivo. 

Quando finalizei a leitura, fiquei pensando na questão do espaço. Como antes, apesar da disponibilidade de tempo e interesse em ler o livro, o assunto pandemia estava ocupando todos os espaços: minha cabeça, minha casa, meus pulmões.. Eu estava me afogando e, às vezes, no desespero, me agarrava ao meu marido tentando me salvar, o que deixava ele também mais sufocado.

Falo de espaços físicos e metafísicos. Não são apenas os sonhos, as tomadas de decisão, os pensamentos e o medo do futuro, foi também a minha casa que se transformou. Eu perdi meu escritório, minha escrivaninha. Todo o espaço físico onde eu passei os últimos meses estudando e escrevendo minha dissertação de mestrado tornou-se home office do marido. Perdi meu sofá e minha TV para uma sala de jogos. Perdi a sala de jantar, pois a mesa virou uma escrivaninha adaptada para o meu computador e livros, enquanto o chão tinha um step, pesinhos e uma bicicleta ergométrica alugada, que me lembravam todos os dias que eu não podia deixar de me exercitar (nem que fosse um pouquinho).

E nesse sufoco, onde todos os espaços foram metamorfoseados, eu não consegui mais estudar e trabalhar. Não consegui mais escrever. Meu objetivo de escrever artigos para publicação e o projeto de doutorado também se afogou. Além do meu escritório, eu não tinha mais o arquivo e a biblioteca da universidade. Quanto mais eu me cobrava de produzir, pior eu me sentia. Eu acho que esse foi um dos motivos pelo qual eu retornei ao espaço deste blog - ele estava lá disponível. Sem pressão. Sem objetivos. Ele continuava igualzinho ao que era antes da pandemia. Me pareceu mais convidativo e menos sufocante. Menos contaminado.

Procurando depois outros blogs para seguir e ler, percebi que está havendo este movimento para retomada da blogosfera. Tantos espaços nos foram retirados, doméstica e socialmente, que os blogs têm sido esse espaço em branco - como cadernos novos - que podem ser preenchidos do zero. 

A pandemia não acabou - e não me arrisco a dizer o contrário. Sei dos perigos. A vida não voltou ao que era antes e não há previsão de quando isso irá acontecer. Eula Biss diz que, quando se tornou mãe, o medo de que algo acontecesse ao seu filho lhe dominou. O sentimento de impotência, ela afirma, vem desde o mito de Aquiles: apesar da tentativa de sua mãe de torná-lo imortal, seu calcanhar, onde sua mãe o segurou, não fora banhado pelas águas mágicas. Por mais que ela fizesse tudo o que lhe fosse possível, ainda sim não seria suficiente para proteger seu filho de todos os riscos existentes. Aos poucos, vamos compreendendo nossos alcances e nossos limites. 

Minha sala de estar e de jantar voltaram às suas funções originais. Outros espaços reapareceram, como academia, parque, restaurantes. Mais recentemente os museus e cinemas. Na minha mente e no meu coração, também pela demanda da continuidade da vida, alegrias e outros problemas dividem espaço com a pandemia. Meu escritório e minha escrivaninha ainda não voltaram, mas sei que voltarão. E já prevendo meus retornos e abandonos a este espaço/caderno, possivelmente quando voltar as práticas de escrita e leitura da vida acadêmica, este blog volte para a estante. Será? Talvez. Não sei. Apesar de não estar mais me afogando e ter recuperado certo controle, não sei como sairei deste mar pandêmico onde ainda estamos todos mergulhados.