Duas leituras de novembro que foram um pulinho para o outro lado do mundo

Os perfis literários no Instagram, blogs de resenhas de livros e clubes de leitura tem diversificado bastante o tipo de literatura que eu leio. Graças à Gabi Barbosa, este mês li dois autores japoneses que desconhecia: Ryu Murakami e Hiromi Kawakami. Duas leituras muito diferentes entre si e que me trouxeram experiências também antagônicas.

De literatura japonesa, só conheço talvez um dos mais famosos: Haruki Murakami, de quem sou muito fã. Kafka a Beira Mar, 1Q84 e Caçando Carneiros foram leituras que devorei. Adoro o universo fantasioso dos livros, os diálogos filosóficos e a sutileza com a qual traços ocidentais aparecem imbrincados no cotidiano dos personagens. Fora isso, a imagem que tenho do Japão é carregada de preconceitos e esteriótipos do universo de anime herdados da adolescência e alguns passeios na Liberdade. 

Vou falar brevemente sobre as duas leituras porque o intuito do blog é este: mapear minhas experiências literárias. Sinto que consigo mais falar sobre o processo da leitura do que sobre o conteúdo em si, porque é um universo muito novo, sobre o qual nunca estudei e nem vivenciei.

Quinquilharias Nakano - Hiromi Kawakami

"- Tenho uma notícia boa e uma notícia ruim, qual você quer primeiro?" O Allan vive fazendo essa pergunta e minha resposta é SEMPRE: - A notícia ruim. 

Por isso começo com Quinquilharias Nakano, porque eu desgostei demais. Que livro chato de ler! Se não fosse o encontro do clube de leitura e a vontade de dar uma chance ao final, eu acho que teria desistido. 


O microcosmo da loja "Quinquilharias Nakano" tem um "q" de inocência boba que me irritava. A relação dos empregados com o Sr. Nakano, dono da loja, me pareceu estúpida. Ele é, afinal, o patrão, mas aparece o livro inteiro como um amigo, talvez. Não sei. Mas o fato é que não existia uma relaçao patrão-empregado ali, eles apenas "estavam" lá o tempo todo.

Há claramente uma dificuldade de comunicação entre os personagens e pouco se mostra sobre suas vidas fora do universo da loja. Quando falam sobre o que ocorre fora das quatro paredes e com pessoas que não participam daquele microcosmo, é justamente através dos diálogos entre os quatro personagens principais: Sr. Nakano, o proprietário, sua irmã Masayo, a protagonista Hitomi, funcionária da loja e Takeo, o outro empregado. 

Existe uma tensão sexual que não passa. Seja entre o Sr. Nakano e sua amante, o namorado/parceiro sexual de Masayo, Hitomi e Takeo, ou fotografias de pessoas fazendo sexo. Há, inclusive, uma cena entre Hitomi e Masayo comendo torta de maçã cheia de metáforas e bastante interessante. No entanto, em todo o resto, essa tensão é sufocante e não desenrola. E quando desenrola, é incômoda, estranha. Hitomi e Takeo, o casal núcleo, são dois jovens que se sentem atraídos sexualmente um pelo outro, mas não compreendem isso. Ou talvez compreendem e tentam ignorar. Os diálogos são cheios de "- Ahn..." e frases inacabadas. Muitas vezes há um vácuo de silêncio e um constrangimento no ar. A sensação é que eles estavam todos presos, sufocados por um monte de quinquilharias e assim eu me senti em toda a leitura.

Hitomi, a protagonista, muitas vezes me lembrava aquelas personagens femininas bobas de anime, com brilhinhos nos olhos, bochechas rosadas e cabelo amarrado igual Chiquinha do Chaves. Enquanto seu colega de trabalho me lembrava aqueles personagens masculinos de anime, fechados, de poucas palavras, sempre com o semblante sério. Talvez fosse mea culpa, por carregar essa imagem esterotipada. Ou talvez fosse assim mesma a descrição. Não sei. 

Em geral, não gostei dos personagens, da relação entre eles, tampouco dos diálogos. O que me agradou e me chamou a atenção foi a relação das pessoas com os objetos da loja. Essa parte da materialidade, dos objetos antigos, velhos, a oposição entre o analógico e o digital, pôsteres, objetos valiosos e outros que não valem nada, o quanto estes objetos dizem sobre as pessoas e a história do próprio Japão, colecionismo, leilão, etc... Isso é bem interessante de observar.

Miso Soup - Ryu Murakami

Agora a notícia boa. Publicado em 1997 no Japão e em 2005 no Brasil, o livro me surpreendeu em vários sentidos. Eu li a resenha no site da Gabi e vi de cara que houve um match entre eu e o livro e logo comprei.  

Ele foi completamente o oposto da leitura anterior. Não há nada de inocente, nada de bonito. É um livro muito cru, de frases curtas, diretas. Há algumas cenas um tanto gore e até me lembrou um pouco o gênero Pulp e Tarantino. Nas duas primeiras partes do livro rola um mistério, uma tensão e, só na última e terceira parte, um pouco de suspiro. 

Kenji, o protagonista, é um "guia de turismo sexual" e leva seus clientes às ruas e atrações de Tokyo que, em oposição ao que a palavra "turismo" nos remete, o Japão gostaria de esconder. O que é colocado em jogo, durante toda a narrativa, é justamente a oposição entre progresso e decadência. Apesar de ser uma das maiores economias do mundo, a sociedade japonesa do pós-segunda guerra é marcada por muitas contradições internas que, aos olhos dos estrangeiros, tornam-se estranhas e, portanto, escancaradas.

Ryu Murakami coloca a tensão entre o capitalismo ocidental e a cultura tradicional japonesa num espaço justamente onde não há meio termos: no sexo. Diria que, ainda mais, no sexo capitalista, como mercadoria, oferecido pelo Japão e consumido pelo estrangeiro (aqui representado pelos Estados Unidos). Por isso, as contradições ficam tão evidentes, desconfortáveis e sem explicações. Elas são jogadas. A começar pelo próprio jogo de palavras entre turismo e sexo. Não é um turismo que se mostra. Os turistas que procuram sexo não tiram fotos e exibem no Instagram ou fazem álbuns de viagem. Não há propagandas e campanhas de política nacional para atrair este tipo de turista. É um turismo sim, mas do submundo. Escondido. Disfarçado. Um turismo que faz-de-conta-que-não-existe. 

A partir daqui eu queria falar um pouquinho sobre uma cena que se passa na segunda metade do livro, a partir da página 100 mais ou menos. Então, se tiver alguém lendo este texto e não quiser saber spoiler, pare por aqui. 

 

Fiquei pensando muito no quanto a cena na qual Frank hipnotiza algumas de suas vítimas, depois as ataca de modo brutal e, inclusive, queima aos poucos o rosto de uma delas, não é uma metáfora da própria Segunda Guerra. As bombas incendiárias e as bombas atômicas, matando sistematicamente civis a fim de que? Uma causa nobre entre o bem e o mal? A fim de mostrar quem é a maior potência mundial e, portanto, detentora da moral?

Nem sabemos se Frank é o nome verdadeiro deste americano assassino. Ele pode ser qualquer norte-americano estadunidense. O quanto Frank hipnotizando e sabendo como cortar uma garganta sem esguichar muito sangue não é o próprio Robert McNamara analisando friamente a eficiência dos bombardeamentos aéreos na Segunda Guerra Mundial? 

E também o espaço. A geografia onde ocorreu o massacre e quem foram as vítimas. No livro, o omiai pub é duplamente parte do submundo. Além de situar-se numa região periférica de Tokyo, era também um espaço menos procurado pelos consumidores da região. Era um estabelecimento "menor" que os demais, onde frequentavam prostitutas menos interessantes e consumidores menos exigentes. Por isso, com as portas fechadas, as vítimas demorariam a ser encontradas. Num contexto geopolítico, onde ficam o Japão e os demais países do leste asiático? Nossa cultura ocidental importa a superficialidade da cultura de entretenimento desses países, tecnologias, mas o que conhecemos e o quão relevante é o Japão para o mundo? Fico pensando na gravidade desta questão durante e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. O Japão perdeu a guerra e, pior, não situava-se na Europa. Na geopolítica eurocêntrica e ocidental, o Japão é periferia do mundo. Assim como o omiai pub palco da clímax da narrativa.

Com certeza Miso Soup foi um dos melhores livros que li este ano. Outra parte que me deixou a refletir foi a história de Frank e a lobotomia. Me lembrou vagamente "Um estranho no ninho". Ele é um sintoma da sociedade capitalista ocidental e seus problemas em lidar com a ordem. Onde chegou-se com a civilização ocidental e a ausência total de tradições? Em tirar pedaços de cérebros fora? Sobre isso, não me sinto preparada para discorrer, mas é interessante refletir um pouco. 

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