O círculo perfeito entre o último e o primeiro episódio de Mad Men

Em 2017 eu assisti, sozinha, de uma só vez Mad Men. Meu marido até hoje fala como foi assustador a velocidade com a qual eu assisti todas as temporadas da série. Por conta da quarentena, eu consegui convencê-lo a assistir alguns episódios, para ver como é um ótimo show e entender um pouco os motivos que me fizeram ser grande fã. Ele amou e adotou-a como "nossa série oficial para a gente ver juntos". Neste fim de semana chegamos ao fim. Agora é só aproveitar o momento-ressaca-nostálgico-orfãos da série. Seguem alguns comentários e reflexões pessoais - nada de análise profunda ou coisas interessantes: não tenho arsenal teórico para isso e há muitas outras fontes mais interessantes na internet.

O legal de ver novamente um show tão denso é que vários detalhes da narrativa que me passaram despercebidos tornaram-se mais evidentes dessa vez - no perfeito modo irônico e simbólico de Mad Men. Em 2017, eu fiquei mais afeiçoada aos personagens e, pelo simples fato de não ter conhecimento prévio, várias referências históricas dos EUA da década de 60 me passaram batidas. Dessa vez, eu olhava com a maior atenção possível aos programas de TV e rádio que os personagens assistiam: o tour de Jackie pela Casa Branca no dia dos namorados, o assassinato de JFK, os protestos de 1968, Nixon pronunciando a retirada das tropas do Vietnã e, talvez o mais incrível e o meu favorito, a chegada do homem à lua.

Percebi (e lamentei muito) como a Betty já tinha seu destino trágico marcado desde o início. O último e o primeiro episódio fazem um arco perfeito: a criação de uma nova campanha para Lucky Strike, a ironia com que os homens em meio a fumaça debocham do risco de câncer, Don Draper completamente alheio à sua vida doméstica e, no final, isolado pela família que antes lhe era invisível, e a Betty representando o trágico ciclo do consumo capitalista vazio e autodestrutivo. Fui coletando, ao longo das temporadas,  frases e indiretas que antecipavam a doença fatal de Betty e como ela não conseguiria escapar de seu fim.

O grande tema da série é a sociedade dos Estados Unidos da década de 60. A emancipação feminina, os protestos pelo civil rights, a política, o próprio mundo da publicidade, a política, a sociedade de consumo norte-americana, o Don, a Peggy, a Betty, etc, são temas que compõem o grande assunto que é a marca temporal. O universo publicitário está lá porque é onde se exprime de maneira mais evidente a incompatibilidade da sociedade de consumo norte-americano: suas aspirações, promessas e como a vida material e perfeita - de propaganda - se dilui rapidamente, escorre pelas mãos e desaparece pelo ralo.

Por isso as primeiras temporadas tão "anos 1950": as roupas, móveis domésticos, o escritório, os temas da Guerra da Coréia, Segunda Guerra Mundial... É um ambiente mais sóbrio, analógico, excessivamente masculino e os assuntos são do "antes", de um passado recente. Aos poucos, não é apenas o "novo" que vai aparecendo, como o movimento hippie, as seitas religiosas (aquele episódio que o Paul Kinsey versão Hare Krishna aparece tentando vender o script de um episódio de Star Trek é um dos meus favoritos), o rock, os movimentos civis... Mas também outras coisas vão se tornando obsoletas. "-A Segunda Guerra Mundial foi há muito tempo, Sterling." O Japão deixa de ser inimigo e se torna um cliente. Não é só a estética que muda, as relações se transformam.

Ao longo do tempo/ temporadas, também o segredo de Don Draper vai se tornando pouco importante: se foi o pivô para a separação de Don e Betty Draper, ele é depois revelado para um affair e, como saberemos depois por uma fala mais do que breve e superficial, a Megan casou-se com Don sabendo de tudo. A troca de identidade do personagem principal, que a princípio tão bem o definia, aos poucos vai se materializando no que Cooper já havia previsto: "who cares?". Tá aí... No one cares.

Nos episódios finais, aqueles veteranos de guerra, velhos, bêbados, excitados por uma stripper vestida num maiôzinho com as cores e estrelas da bandeira norte-americana, mostra que esta cultura bélica - apesar de nunca ter cessado enquanto política de estado - tornou-se no sentimento coletivo obsoleta e decadente. Os veteranos de guerra, que lutaram contra Hitler, japoneses e coreanos, deixam de ser heróis para serem velhos gágá.

No primeiro episódio, ninguém fala (ninguém DEVE falar) o que sente. Fala-se o que é conveniente. A paleta de cores amarronzada e bege, o terno e gravata, os vestidos de saia bufantes, penteados perfeitos, conversas protegidas pelas paredes do escritório, da sala e da cozinha domésticas, vão cedendo espaço para para cabelos despenteados, nudez, uma moda mal vestida, suja, e práticas de yoja e tai chi chuan em espaços abertos, ensolarados, de contemplação a natureza, e uma hipervalorização dos sentimentos expostos no último episódio.

É por isso que a Betty é a tragédia personificada. Ela foi criada para ser a mulher perfeita daquele início da década. Enquanto o Don-camelão vai se adaptando ao ambiente, a Betty ficou fora de contexto. Não há mais espaço para as donas de casa versão Betty Draper. Mesmo sua ex-vizinha, Francine, que assim como ela era a perfeita-esposa-e-mãe-do-subúrbio, começa a trabalhar meio período. Mas e a Betty? O tempo passou e ela se descontextualizou.

No primeiro episódio, Don Draper questiona ao garçon negro que lhe serve qual marca de cigarro fuma e o porquê. Quem é esse homem americano que consome e por que consome? Como vender a ideia, a promessa, para estes homens e mulheres dos Estados Unidos da América? Como se comportam no mercado? Compreender este universo, problemas, dúvidas e trazer as respostas através dos produtos cujas marcas de venda devem crescer, faz parte da trajetória de Don e da agência.

Mas chegamos ao fim da década de 60 e esse homem já chegou na lua junto com Neil Armstrong. O próprio Don, para escrever um discurso sobre a Sterling Cooper, passa a questionar: quais os próximos passos? Considerando nosso caminho até agora, para onde iremos? O que queremos para a próxima década? Quais são nossos sonhos? Quão alto queremos chegar? Até onde podemos ir? Os produtos anunciados, as campanhas, já estão em todos os lares americanos. Don Draper e sua equipe, de dentro do escritório, sob a espessa neblina de cigarros, álcool, sexo, preconceito, deboche, conseguiram já entrar em todo o espaço doméstico, nos hábitos mais individuais e rotineiros dos cidadãos americanos.

Agora, no entanto, a estética é hippie e colorida. A mensagem não é de guerra ou bomba atômica, é de paz, liberdade, comunidade. É a busca pela conexão com a natureza e práticas religiosas e de filosofia orientais. Se no primeiro episódio, primórdios de 1960, o interesse era no homem americano e seu cigarro, nos fins de 1969 é a coca-cola, o símbolo capitalista americano, que estará não apenas em todas as casas, cozinhas, mesas de comunhão do Burger Chef (e que será - no futuro - um dos grandes responsáveis pela epidemia de obesidade ds EUA e outros países) mas nas mãos de todas as culturas, etnias e povos do mundo inteiro.


Em contraste com a foto protagonizada pela Betty para a campanha da coca-cola da temporada 1, onde, numa cena bucólica de pique-nique, oferece duas garrafas de coca-cola para o esposo, dois filhos e um cachorro, no fim da sétima temporada a coca-cola (o American-way of life) não está só nos hábitos e costume da família americana, mas nas mãos de todo o mundo. Se chegamos à Lua, porque não nas casas de todas as famílias de todo o mundo sob a mensagem de paz, união e liberdade? O último episódio faz um círculo perfeito com a primeira temporada e é como se toda a série fosse para mostrar como o destino de Don Draper era fazer uma propaganda perfeita para a Coca-Cola.


Finalmente, um personagem que me tocou desta vez profundamente, foi a Margareth. Recentemente li "Pastoral Americana", Philip Roth, e as semelhanças entre Merry Levov e Margareth são tocantes: a filha-única-princesa-perfeita, criada com tudo a sua disposição, em casas "perfeitas", pais dedicados e amorosos (e Roth descreve maravilhosamente bem como tudo isso parece ser perfeito, mas em sua essência não é) que um dia rebela-se, larga tudo, joga na cara de seus próprios pais a miséria de suas vidas e procura na pobreza e na margem da sociedade possibilidades de autorealização.

De fato, Mad Men é minha série dramática favorita. Um dia, gostaria de revê-la pela terceira vez e, desta vez, absorver melhor as referências do cinema norte-americano da década de 60.

Há um tempo não lia biografias, tampouco autores brasileiros: quebrei o jejum com a biografia de Jorge Amado

Pela primeira vez na vida, quero falar sobre um livro que eu não gostei. Geralmente sou a entusiasta, que lê por puro gosto e afinidade, sem críticas ou refinamento. Se eu não gosto da leitura eu simplesmente paro ou, pela própria resenha, julgo o livro pela capa e nem vou adiante. A última vez que me lembro que isso aconteceu, foi com "Por quem os Sinos Dobram". Eu tinha tanta expectativa, afinal, Hemingway é um autor tão reconhecido, importante, ativista... E essa obra tinha vários temas enriquecedores e nobres:  a Guerra Civil Espanhola, vista e vivida de perto pelo autor, que também tem toda uma áurea grandiosa. Além disso, uma pessoa que eu admirava muito tinha elogiado esse livro para mim há muito tempo e, portanto, eu achava que "se X disse isso, é porque é realmente bom". No fim, após a leitura completa, percebi que minha expectativa era muito elevada e o livro não era tudo isso. Me lembrou aquelas castanhas caramelizadas de um quiosque comum de shoppings: o cheiro é muito mais gostoso que o gosto.

A literatura (auto) biográfica e memorialista me encanta muito. Talvez pelo meu trabalho com cartas em arquivos pessoais, a narração de vida, feita tanto pelo próprio indivíduo quanto por um terceiro, é um assunto de meu grande interesse. É uma dimensão onde o concreto e o imaginário se fundem, o real e a imaginação tornam-se uma coisa só. Não é possível colocar neste espectro nenhum tipo de julgamento moral, tampouco de conceituação de verdade ou mentira. Para mim, o anedota mais didática possível é sobre os relatos dos marinheiros das Grandes Navegações que diziam ter visto sereias ou monstros marítimos em alto mar. Eles viram de fato estes seres? Sim, eu acredito que sim. Eles compreenderam o que viram de acordo com o mundo que lhes foi apresentado e isso deve bastar.

Acompanho nas redes sociais uma instituição cultural voltada para a literatura que, nestes tempos de pandemia, oferece atividades onlines. Me interessei muitíssimo, portanto, pelo curso de quatro encontros sobre biografias, que será ministrado pela autora Josélia Aguiar. Nosso currículo acadêmico tem algumas afinidades (como sua pós-graduação em História Social, na mesma instituiçao onde acabei de concluir o mestrado) e sua obra recentemente publicada, "Jorge Amado: uma biografia", ganhou o Prêmio Jabuti. De novo, grande expectativa.

O que se sucedeu, porém, foi uma constante "quem sabe o próximo capítulo melhora" e, no meio, só decidi continuar porque, "já estamos aqui, né!".

Jorge Amado é um personagem da nossa história recente já amplamente conhecido e popular que, como a própria autora diz, graças as várias adaptações em novela, miniséries e filmes, a imagem do autor baiano é associado, muitas vezes, à imagens que ele próprio não era responsável (como a Gabriela Cravo e Canela em cima do telhado pegando uma pipa). De qualquer maneira, estudamos Jorge Amado na escola, exaustivamente fala-se dele em várias lugares diferentes e, durante grande parte de sua vida, teve grande exposição midiática. Zélia Gattai, sua esposa, publicou memórias sobre a vida do casal, uma biografia na década de 60 também já havia sido publicada por Miécio Táti... Além disso, como cereja do bolo mas não menos importante, vivemos na era do Google e Wikipedia. O que tudo isso significa? Que o livro foi uma decepção porque trouxe ao longo de 500 páginas uma cronologia em forma narrativa.

Frases curtíssimas completam parágrafos apenas informativos. Informações que, em sua grande maioria, podem ser consultadas nas memórias de Zélia Gattai e textos biográficos no Google e na mídia.

De forma cronológica, a autora nos apresenta todos os tijolos, mas não a casa. Faltou o sentido, uma ideia que guiasse tudo o que foi apresentado da vida de Jorge Amado. Faltou uma defesa, ou uma acusação. Faltou o aspecto sensível que desse significado ao conjunto de informações que, ao meu ver, ficou jogado. Sem didática, a biografia nos é apresentada como nos é ensinado história pela professora que escreve na lousa as datas, nomes de pessoas e eventos históricos e faz seus alunos copiarem.

A narrativa em torno de uma vida, seja ela uma biografia, uma autobiografia, uma memória, um depoimento, uma breve carta onde eu falo sobre quem eu sou e como foi meu dia, tem o poder de aproximar o leitor e o biografado. A força narrativa cria compaixão, amizade, carinho e às vezes repulsa: tudo depende de como é apresentada essa vida do outro para o leitor. Infelizmente, Josélia Aguiar apresenta um Jorge Amado sem sal. Percebe-se que sua vida foi atribulada e cheia de relações e ativismo, mas não cria compaixão. Não nos ajuda a compreender um pouco mais de sua personalidade e de sua obra, para além do que já é dito em meios comuns sobre sua origem baiana e afiliação comunista.

O curso começa semana que vem. Ainda estou decidindo se me inscrevo ou não.

(Finalmente, um desabafo. Como sou analfabeta nesse mundo digital! Meu deus... Investi horas de esforço nesse blog, tentando melhorar o layout. Tirei até uma foto da minha estante de livros (super falso, porque eu leio mais no kindle), mas não consigo deixar um layout bacana. Sei lá... Se eu continuar escrevendo aqui, talvez me dê de presente um blog melhor terceirizando alguém que entende mais disso.)

O fim do homem soviético, por Svetlana Aleksiévitch (e um pouquinho de Os Irmãos Karamazov)

Irônico como são os livros que nos escolhem e não o contrário. Existe uma afinidade que determina se a leitura será prazerosa, ruim ou, até mesmo, se ela irá até o fim. Acho que é por isso que eu odiava os livros paradidáticos que precisava ler para a escola. Por que 50 alunos tinham que ler, simultaneamente, Camilo Castelo Branco? Eça de Queiroz? Lembro desses nomes com o sentimento de desespero. Era completamente incompatível esses livros e autores com quem nós éramos e o que estávamos fazendo ali.

Enfim... Na tentativa de dar mais atenção aos livros da minha estante durante esta quarentena e pré-mudança aos EUA (que eu não sei quando vai acontecer), voltei meus olhos para "Os Irmãos Karamazov". Eu tenho uma relação bacana com Dostoiévksi. "Crime e Castigo" foi um livro que eu devorei (e até hoje é um dos meus favoritos) e eu peguei meio que por acidente. Não conhecia o autor na época. Depois li outras obras e, na pós-graduação, ainda fiz um curso na Letras sobre Bakhtin que carregava nas análises de obras do autor russo.

Também tinham outros fatores, como o famoso diálogo entre dois irmãos, lugar comum explorado pelos autores contemporâneos. E, finalmente, por causa da quarentena e do momento pós-defesa do mestrado, o tempo estava bem disponível. Parecia que seria uma lua de mel. Mas, infelizmente, foi mais um divórcio. Nossos santos não bateram. Foram +400 páginas, passei pelo tal diálogo, mas foi uma leitura chata, arrastada, complicada... E acabei desistindo. Mas não desisti d"'o homem russo".

Eu li no ano passado "Vozes de Tchernóbil", de Svetlana Aleksiévitch e foi uma das melhores leituras que realizei nos últimos tempos. Desta vez, parti para "O fim do homem soviético". O trabalho de testemunhos de Svetlana é triste e delicado. E também extremamente necessário: num mundo carregado de informações, números, estatísticas, Google e Wikipedia, Svetlana mostra o lado "humano" e "social" da história. Justamente aquele que não valeria a pena ser registrado, porque - em que medida - a experiência individual do fulano da padaria é histórica?

Sem repetir o que já é exaustivamente dito em livros didáticos e qualquer página do Google, tampouco tratando do momento histórico com frieza e distanciamento, os testemunhos trazem a visão do indivíduo que vive o dia a dia, acorda, lê as notícias e tem sua vida - nos mínimos detalhes e nas práticas cotidianas mais primárias - impactada.

Não se trata mais sobre Gulag, queda do muro, Perestroika. Se trata da família destruída por aquele pai que foi preso por conta da denúncia do vizinho, que voltou anos depois, completamente diferente e ainda fiel ao regime que o encarcerou e matou sua esposa em outra campo. Trata-se do sentimento mas íntimo que orienta as pessoas sob a realidade na qual elas vivem. Pessoas como eu e você, como a Maria, o João, o vizinho e primo, o colega da escola.

E depois o choque de gerações. Os mundos dos avós soviéticos, dos pais que lutaram pela "liberdade" e dos filhos que vivem agora no e pelo mercado. São diferentes e contraditórios, colocando em oposição estes indivíduos que dividem o mesmo espaço doméstico, a mesma família, mas que não se compreendem. Parece que se tornam incompatíveis.

Ele nunca vai me entender, nunca vai entender a minha mãe, porque ele não viveu nem um dia sequer no país dos sovietes. Eu... e o meu filho... e a minha mãe... Todos nós vivemos em países diferentes, embora todos eles sejam a Rússia. Mas existe uma ligação bizarra entre nós. Bizarra! Todos se sentem enganados...

Svetlana nos apresenta uma história "literária", em oposição a uma história "científica" e, na minha opinião, é nisto que reside toda a potencialidade de sua obra e porque ela é tão importante para a contemporaneidade. Chega de números, dados... Isso nos afasta, como humanidade, do outro e da nossa história. É o que normaliza a tragédia e a violência. É preciso ver esse "lado humano" da história que vai além das datas, nomes dos políticos e eventos históricos.

E como numa rotatória, não fugi de uma literatura que se questiona sobre "o homem russo". Por isso, Dostoievski é amplamento citado tanto pela própria autora quanto pelos depoentes do livro. Mas também tem outros caminhos que se encontram, pois qualquer olhar contemporâneo sobre nosso passado recente não consegue fugir da violência e crueldade do século XX.

Lembrei, portanto, de Olga Tokarczuk e "Sobre os ossos dos mortos" quando li o trecho abaixo. A denúncia que a autora polonesa faz sobre a violência, o sangue e os ossos daqueles que eram vivos - animais ou humanos - sob o solo onde vive-se e planta-se o próprio alimento impede que uma vida "normal" aconteça. O passado tem materialidade e não é possível fugir disso.

No ônibus, um velhinho foi sentado do meu lado e percebeu que eu não era local: ‘Quem você está procurando?’. ‘Pois então...’, eu comecei. ‘Tinha um campo aqui...’ ‘Ah, os barracões? Os últimos foram demolidos uns dois anos atrás. Com os tijolos desses barracões, as pessoas construíram galpões, saunas. Distribuíram a terra para as datchas. Com o arame farpado do campo cercaram as hortas. Meu filho tem um terreno lá... Não é muito bom, sabe?... Nas plantações de batata, no começo da primavera, as neves e as chuvas desenterram uns ossos. Ninguém se enoja, porque já se acostumaram, aqui a terra está cheia de ossos, são como pedras. Largam nas raias, pisam em cima com o pé. Pisoteiam. Já se acostumaram. É só encostar na terra... mexer um pouco...’

As decisões de canetada parecem definitivas, rápidas, mas o que significa de verdade, na dimensão real e pragmática da vida, uma mudança de regime político, econômico e ideológico? De todas as dimensões abordadas pela pluralidade de testemunhos coletados pela Svetlana, talvez o que me mais me socou no estômago, foram as dos idosos soviéticos. Num mundo pós-soviético, estes foram realmente os que viram e sentiram seu fim prolongado: tornaram-se párias. Antes heróis, tornaram-se bandidos e criminosos. Eles, de fato, viram o mundo acabar e vivem num pós-apacalipse.

Vassíli Petróvitch N., membro do Partido Comunista desde 1922, 87 anos:

(...) Com quem eu iria querer conversar? Poderia falar com o Lazar Kaganóvitch... Sobraram poucos de nós, e menos ainda são os que não estão senis. Ele é mais velho, já tem noventa. Li no jornal... (Risos.) No jornal escreveram que os velhos da vizinhança se recusam a jogar dominó com ele. Jogar cartas. Ele é enxotado:
‘Facínora!’. E ele chora por causa da ofensa. Antigamente era um comissário do povo, tinha mão de ferro. Assinava listas de fuzilamento, aniquilou dezenas de milhares de pessoas. Passou trinta anos ao lado do Stálin. Mas nos anos de velhice não tem com quem jogar um carteado... jogar um dominó... É desprezado pelos
trabalhadores simples... (Começa a falar baixo. Não consigo entender. Pesco só algumas palavras.) É terrível... viver muito é terrível.