O embate entre os ideais e a realidade política durante as independências da América Latina

Ao longo do curso de América Independente I foi possível sentir o grande dilema pelo qual a América Hispânica passava durante os processos emancipacionistas. Com as lutas independentistas, foi-se tornando explícito uma série de divergências internas que antes eram mascaradas pelo seu estado colonial de uma única metrópole. O que fazer depois da independência se tornou a grande questão e os problemas internos tiveram uma importante significação nos processos de delimitação de fronteiros e formação de identidade nestes países recém-formados.

As ideias de equilíbrio e de unidade (ou onipotência como Maria Lígia) percorreram de maneiras diferentes todos os autores explorados durante o curso. No entanto, seus projetos políticos permaneceram no campo das ideias e foram, em geral, mal vistos e combatidos por outros grupos que também faziam parte dos processos emancipacionistas e tinham uma outra opinião do que fazer e como fazer depois da independência.

No caso de Sarmiento, esse choque entre o que se projeto e idealiza e os problemas surgidos, ou agravados, pela independência fica bastante explícito. Há uma tensão muito grande entre um projeto unitarista defendido por Sarmiento e uma realidade de forças locais que vai unificar a Argentina por meio da supremacia militar e uma sequencia de domínio de caudilhos que vai se impor com o fim da Confederação Rosista. Em seu livro Facundo, Sarmiento personaliza na figura de Rosas tudo o que a ele se opõe: desde o caudilho federalista até o selvagem.

Artigas, por outro lado, é mais radical quando defende um movimento mais voltado para o sentido de lutar por uma independência em favor de melhorias sociais. No entanto, o que aqui nos interessa é o seu projeto de formação de uma confederação numa realidade de tensão entre unitaristas e federalistas. O projeto apresentado pelos deputados da Banda Oriental na Assembleia em Buenos Aires de inspiração artiguista nos deixa claro um projeto político que defende uma confederação que mantenha a soberania e autonomia de cada província, mas cuja união garanta segurança recíproca e trate de assuntos de preocupação comum, como a questão da divisão de terras. Este projeto, porém, não vingou e o Uruguai se tornou um Estado independente, coisa que Artigas nunca defendeu, muito mais por causa da incapacidade do Brasil e da Argentina fazerem um acordo sobre a dominação do território.

Símon Bolívas nos mostra na sua Carta de Jamaica um projeto político (e não um sonho) bastante otimista de uma América unica. Ele faz uma análise, um panorama geral da situação da América Hispânica e seus processos de independência e com argumentos bastante fortes defende sua posição anti-democrática e explicita as vantagens de uma América unida como ele propõe. No entanto, a realidade política em que ele se encontra vai gradativamente tirando-o e afastando-o do poder. Por isso que, em 1830, Bolívar escreve agora uma carta amargurada e pessimista em relação ao futuro da América.

A partir destes exemplos é possível entender porque a Maria Lígia diz que "a idéia de onipotência dos líderes não se coadunava com os (...) problemas que as lutas de independência haviam colocado". Mesmo com projetos às vezes bem formulados, as tensões internas não favoreceram nenhuma das propostas de uma América unida. Alguns destes homens, como Bolívar e Artigas, serão, inclusive, usados como referências em discursos de construção de identidade destas nações, mas seus projetos políticos, ao lado dos de Sarmiento e Cecilio del Valle, perderam para as tensões internas e as forças locais que ganharam forças com os processos de independência.

Nada mais conservador do que um liberal no poder...

Essa foi a resposta da terceira questão da prova. A partir de uma afirmativa retirada de um livro de Ilmar Rohloff de Matos, a pergunta era se a autora Mirian Dolhnikoff concordava ou não com tal afirmação. Só para constar, esta foi a questão sorteada, e fiquei com 9! Minha melhor nota do semestre.

Não, Mírian Dolhnikoff não concorda com esta afirmação de Ilmar. Logo no início de seu texto, ela vai dizer que não vê esta oposição nítida entre liberais e conservadores como sendo também uma oposição entre descentralização e centralização, respectivamente. Seu texto nos mostra como que um projeto político que unisse todas as províncias sob um mesmo governo central também fazia parte dos projetos liberais e o que diferenciava, de fato, liberais e conservadores eram pontos específicos de como essa política seria implantada.

Os liberais procuravam através do fortalecimento do poder local favorecer e viabilizar a unidade do Estado Nacional. Devido as dificuldades de comunicação e a montagem de uma ‘’ampla rede de funcionários que levassem sua autoridade [do Estado Nacional] a todas as diversas e dispersas localidades’’ (pág. 85), os liberais procuraram conciliar autonomia local com uma política centralista. Esta tentativa conciliatória foi acontecer através da figura de Juiz de Paz, a brecha encontrada pelos liberais na política centralista do Primeiro Reinado. Como Mirian o chama, o juiz de paz era um ‘’homem poderoso na localidade’’, pois lhe eram atribuídas muitas funções, pois ele tinha, entre outras atribuições, a de controlar o processo eleitoral através da decisão de quem teria o direito de voto; apesar de todo este poderio local, havia a preocupaçao de mante-lo sob algum controle do governo central. Um outro exemplo das medidas centralizadoras tomadas pelos liberais foi a Guarda Nacional, que surgiu com a intenção de manter a unidade nacional diante das grandes turbulências que marcaram o período.

A emenda institucional aprovada em 1834, também chamada de Ato Adicional, veio a ‘’tornar realidade o pacto federalista defendido pelos liberais’’. A proposta da emenda trazia mudanças profundas na organização política vigente desde o Primeiro Reinado, entre as quais: a extinção do Poder Moderador e do Conselho de Estado, o fim da vitaliciedade dos senadores e, finalmente, a criação das Assembleias Legislativas Provinciais, sendo estas ultimas as responsáveis pela eleição do Regente. A Mírian enfatiza o radicalismo deste projeto federalista que defini que a escolha do chefe do Executivo seja feita pelas províncias. Ao fim dos debates, os liberais perderam em relação aos senadores, que continuaram com o mandato vitalíceo, mas ganharam com o fim do Conselho de Estado e com a ‘’eleição do regente nas mãos dos grupos provinciais’’ (pág. 94) não através da eleição pelas Assembleias Legislativas Provinciais, mas pelos mesmos mecanismos de eleição dos deputados.

Um grande opositor das reformas implicadas pela emenda foi o visconde de Cairu, que dizia que a criação das Assembleias destruiria a soberania nacional em favor de uma soberania provincial (pág. 95). O Padre Feijó, no entanto, via na mesma crescente autonomia provincial, uma unidade nacional na medida em que um sentimento patriótico emergia daqueles que, agora, se viam no direito de participar ativamente da política do Estado (pág. 100).

Em 1840, porém, com a perda da hegemonia dos liberais que vinha ocorrendo desde a renúncia do Padre Feijó, a ala conservadora veio a aprovar a Interpretação do Ato Adicional, o que a historiografia mais tradicional, na qual se inclui Ilmar, tende a explicá-la como uma reforma conservadora opondo-a ao Ato Adicional, uma lei liberal. A Miriam vai nos mostrar, no entanto, que a Interpretação não muda radicalmente o Ato como se propõe. Na verdade, os conservadores não se mostravam contra o projeto do pacto federativo, o que eles propunham era torná-lo ‘’mais possível’’ revisando alguns artigos do Ato que não estavam claros e, portanto, não viabilizando o projeto inicial federativo. Eles estavam se referindo ao aparato judiciário que estava confuso no Ato colocando em risco a unidade nacional e, por isso, precisava de uma revisão. Tinha ficado claro para eles que o Juiz de Paz não estava funcionando como o esperado e estava trazendo problemas tanto para os governos locais quanto para o governo central. Além disso, o direito de cada província decidir sobre os seus funcionários estava confuso e, por isso, a província estava legislando sobre empregados reais, pois entendiam que a subordinação do funcionário estava ligada ao local onde estava empregado. No parágrafo 7, artigo 10 do Ato Adicional, está escrito: ‘’[...] São empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos municípios e províncias, á exceção dos que dizem respeito á administração, arrecadação e contabilidade da Fazenda Nacional; à administração da guerra e marinha, e dos correios gerais; dos cargos de Presidente de Província, Bispo, Comandante Superior, e empregados da Faculdade de Medicina, Cursos Jurídicos e Academias [...]’’. Todos os outros possíveis funcionários do Estado que não se encontram nesta lista e se encontravam na província, eram considerados funcionários provinciais.

Não é a toa que os conservadores, nesta proposta de não confrontar o Ato Adicional, apenas ajustá-lo, contaram com o apoio de políticos que, em 1832, defenderam a reforma federativa. Aqui, talvez mais do que em outros momentos, fica claro que a oposição entre conservadores e liberais não está em descentralização e centralização, pois o cerne de projeto político para ambos os grupos é o mesmo – o arranjo federativo; a Mirian propõe, então, que a disputa entre eles fica muito mais no campo dos cargos políticos do que, de fato, numa ideologia ou num projeto político.
Com a aprovação da Interpretação, a centralização do Judiciário se concretizou, mas essa centralização não tornou insignificante a autonomia provincial, ela continuou existindo apesar de uma limitação desta autonomia que era um tanto radical em seu projeto de origem. Em alguns âmbitos, como o tributário, a força policial, as obras públicas e, inclusive, o direito de legislar sobre os empregos municipais e provinciais, a autonomia continuou existindo e, diferentemente de antes, não ameaçava mais a unidade nacional, coisa que nunca deixou de ser o foco de ambas as lideranças em seus projetos de Ato Adicional e a sua respectiva Interpretação.

A Mirian vai explicar que essa oposição radical e antagônica entre os conservadores e os liberais nasceu dos debates políticos que ocorriam entre eles durante a revisão da emenda constitucional no parlamento. Os liberais acusavam os conservadores de não se importarem com os interesses provinciais e, por outro lado, os conservadores acusavam os liberais de um ‘’excessivo e até irresponsável comprometimento com o poder local, a ponto de ameaçarem sacrificar sem medo o próprio Estado Nacional’’ (pág. 142). O que acontecia, na verdade, é que os liberais sabiam que sua causa era perdida, mas tentavam adiar ao máximo a votação, insistindo que o projeto de Interpretação alteraria radicalmente o Ato. Disso surgiram os acalorados debates cuja retórica materializou uma visão que a historiografia adotou como explicativa para a oposição partidária do período.