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Goodbye, Columbus and five short stories - primeira vez lendo Philip Roth nos Estados Unidos

Venho lendo Philip Roth desde 2019, mas esta foi a primeira leitura que fiz nos Estados Unidos. Não é que tudo mudou, mas algo mudou. 

Goodbye, Columbus and five short stories foi o livro de estreia do autor em 1959. Diferentemente dos outros que eu já li, este tem um ritmo mais tranquilo. Não tem aquela velocidade verborrágica de O Complexo de Portnoy ou Pastoral Americana. Adeus, Columbus se passa durante as férias de verão e descreve o romance entre Neil Klugman e Brenda Patimkin. Os dois são de família judias, mas a de Neil é pobre. Seus pais moram em outro estado e ele vive de favor com seus tios. Neil é também o narrador da história e tem um trabalho de baixa remuneração na Biblioteca Pública de Newark. 

Ele conhece Brenda na piscina do clube que está frequentando. A família de Brenda tem uma situação financeira muito mais confortável. Ela é estudante em Radcliff College, Massachussets, e está passando as férias de verão com sua família em Newark. São pelos olhos de Neil que conhecemos Brenda, uma moça atlética, bonita, inteligente, e a sua família. Quando Neil é convidado para jantar com os Patimkin, é com Neil que entramos nos cômodos da enorme casa onde boa parte da história se passa, visualizamos o jardim, acompanhamos a rotina e  conhecemos as personalidades dos integrantes daquela família. 

A diferença entre os Klugman e Patimkin vão além do dinheiro. A mãe de Brenda se diz ortodoxa, seu marido é conservador e Brenda, segundo ela, não segue nenhuma linha. Quando Mrs. Patimkin pergunta para Neil qual corrente ele seguia e qual Sinagoga frequentava, Neil responde "- Eu sou apenas judeu". 

Eu gosto muito como Roth coloca essas questões de identidade, religião e família dentro do espaço doméstico e das relações mais cotidianas da vida, pois são nesses momentos onde as diferenças se tornam mais problemáticas. Estes elementos já eram bem sensíveis para mim nas outras leituras, mas este livro trouxe uma vivência nova para mim. Aqui nos Estados Unidos estamos entrando na primavera depois de um frio horroroso, as temperaturas estão subindo, e as aulas já acabaram para dar início às férias de verão. Aqui as estações são muito bem demarcadas e há uma vontade coletiva de aproveitar cada segundo as altas temperaturas do verão. Por isso, as férias longuíssimas que começam em maio e vão até meados de agosto. 

Brenda estuda em Massachussets, na Nova Inglaterra. Um lugar frio e desagradável (eu acho desagradável sim) para passar de 3 a 4 meses na casa dos seus pais apenas curtindo as férias e o calor, indo para a piscina, jogando tênis, saindo com os amigos. É um momento fora da realidade. Com data e hora para acabar. Já aprendemos nos filmes da Sessão da Tarde que qualquer romance que começa numa férias de verão é como um sonho e que, na chegada do outono, precisa encarar a realidade. Assim, já é esperado que Brenda vá embora de Newark no fim das férias. A dúvida que resta é como será o desfecho do romance entre o casal. 

Ler ou já conhecer o lugar sobre o qual o autor fala também nos dá uma dimensão muito palpável do que ele está descrevendo. Na passagem em que Neil e Brenda vão para New York para que ela se consulte com um médico em frente ao Central Park, eu senti que estava lendo algo muito familiar. Por mais que seja uma delícia voar para outros mundos e realidades através da leitura, a proximidade com certos elementos - como a descrição da esquina onde estava o consultório - cria uma relação diferente - diria até íntima - com o autor e sua obra. 

É uma história curta, gostosa de ler. As questões das famílias judaicas americanas ficam nas entrelinhas - salvo alguns momentos específicos como este breve diálogo entre Mrs. Patimkin e Neil. É um ótimo livro inicial para quem nunca leu Roth, pois O Complexo de Portnoy pode assustar um pouco, e Pastoral Americana e A Marca Humana é de uma leitura frenética que nos impede de suspirar. 

Junto com Goodbye, Columbus, vieram cinco contos - ou short stories. Algumas já haviam sido publicadas em revistas. Mais uma vez vemos elementos como identidade, subjetividade, as famílias judias nos Estados Unidos e seus descendentes, os dogmas e fanatismo religioso. Veja o que eu acho louvável em Roth: em seus livros - e nestes cinco contos - ele fala do deslocamento do homem judeu nascido na América, o preconceito, a sensação de estar fora do lugar, os traumas históricos, colocando um olhar crítico também dentro deste círculo. Seus ataques afiados não se limitam do fora para dentro dessa comunidade, mas também traz críticas severas que ficam dentro deste grupo. Não há vítimas nas histórias de Roth. Todo mundo é ambíguo e problemático: quase uma questão genética. 

Dentre os cinco contos, The Conversion of Jews, Defender of the Faith e Eli, the Fanatic, foram meus favoritos. Na primeira, um menino judeu curioso chamado Ozzie, pergunta ao Rabino por que Deus, que é absolutamente todo poderoso, não poderia ter engravidado Maria sem relação sexual e, portanto, ter tido um filho com ela. Por que, ele se pergunta, se Deus criou até a luz, ele nao poderia ter um filho sem penetração com uma mulher? O resultado para o pequeno Ozzie não é agradável. Ao invés de receber uma resposta satisfatória, ele apanha do Rabino e sangra. Sua mãe também reprova seus questionamentos. No dia seguinte, ele sobe no telhado e, diante de uma ameaça, faz todos reconhecerem que Jesus era sim filho de Deus. Neste conto, Roth faz uma alusão à passagem bíblica Romanos 11:25, que prevê a conversão de todos os judeus ao cristianismo como um evento do fim dos tempos. Roth é sempre muito simbólico, mas este conto consegue ser desesperadamente simbólico. 

O segundo conto dentre meus favoritos, Defender of the Faith, conta a história de um tenente judeu americano, Marx, que lutou em batalhas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial e agora está recrutando e treinando novos soldados em Missouri. No seu campo de treinamento ele conhece três soldados judeus e um deles, Sheldon Grossbart, procura insistentemente benefícios e regalias justificando a origem judia comum entre eles. Ele se diz defensor da fé por requisitar dias de descanso, saídas para almoço em família, comida kosher e tudo o que lhe permitisse continuar com os rituais religiosos apesar do ambiente e rotina militar. 

Num determinado momento, o superior de Marx, o Captain, fala para Grossbart que Marx estava há 3 anos e dois meses no exército, sendo um ano em combate, e que o Lieutenant nunca havia pedido saídas especiais, tampouco comida diferente. Grossbart responde que isso acontece porque algumas coisas são mais importantes para alguns judeus do que para outros. E o Capitão responde:

- Look, Grossbart. Marx, here, is a good man - o goddam hero. When you were in high school, Sargeant Marx was killing Germans. Who does more for the Jews - you, by throwing up over a lousy piece of sausage, as piece of first-cut meat [porque não são kosher], or Marx, by killing those Nazi bastards? If I was a Jew, Grossbart, I'd kiss this man's feet. He's a goddam hero, and he eats what we give him. 

Olhando este diálogo, fica a questão: quem é aqui o defensor da fé? 

Enfim, quando publicado, este conto foi muito mal recebido pela comunidade judaica, que acusou Roth de ser um self-hating jew

Finalmente, Eli, the Fanatic, conta a história de Eli, um advogado judeu que mora numa comunidade com protestantes que se vêem "ameaçados" pela chegada de judeus ortodoxos. Fugindo dos combates da Segunda Guerra, estes judeus se instalam nessa pequena cidade americana com vários meninos e começam a montar uma escola Talmund Torah. A violência já começa com a tentativa de segregação no processo jurídico que a atual comunidade - de judeus e protestantes - querem abrir contra a instalação dos recém-chegados.  Mas tudo ganha uma nova dimensão quando o advogado veste as roupas negras do seu "inimigo" e ele mesmo se torna o "outro". 

Recomendadíssimo. Com certeza um dos melhores livros que lerei este ano. Vi na Amazon Brasil que tem uma edição da Companhia da Bolso e disponível também para Kindle. 

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Alguns links interessantes: 

Retrospectiva sobre a publicação de Defender of the Faith, em 1959, pela The New Yorker. Matéria publicada em 2010.

Conto Defender of the Faith. The New Yorker, 1959.

A boy and His dogma: On Philip Roth's "The Conversion of the Jews", by Michael Byers, at Fiction Writers Review. 

Opinião sobre "Casei com um Comunista": minha primeira frustração com Roth

Depois de quatro meses morando no Chile, estou de volta ao Brasil e à minha casa. Daqui do meu sofá, da minha sala, com minha televisão, mesa de jantar, cadeiras, almofadas e decoração escolhidas e montadas por mim, escrevo e publico neste blog meu primeiro texto escrito em terras tupiniquins sobre uma obra que li inteiramente no Chile.

Eu comentei em publicações anteriores a minha dificuldade em comprometer-me com leitura e escrita por causa das atribulações que estavam ocupando todo o tempo e espaço da minha vida. Por isso, escolhi um autor que eu sabia que seria muito envolvente. A primeira vez que li Philip Roth foi em 2019, "A marca humana".  O livro me sugou. Eu me senti completamente imersa. Gostei tanto, que logo depois li "Pastoral Americana", que também achei fenomenal. Consequentemente, Philip Roth está entre meus autores favoritos e faz parte daquela pequena lista de autores que eu gostaria de ler pelo menos uma vez ao ano. 

Ano passado, li "O Complexo de Portnoy" e "Homem Comum". Apesar de ter gostado muito mais do primeiro, o segundo também é muito bom! Desta vez, li o que faltava para completar a trilogia americana de Philip Roth: "Casei com um Comunista". Assim como "A marca humana" e "Pastoral Americana", é Nathan Zuckerman quem nos narra a história que, por sua vez, lhe é contada por Murray Ringold, irmão do nosso personagem principal: Ira Ringold. 


Durante a leitura, estava achando tudo excelente. Diria que até 2/3 do livro minha avaliação era 100% positiva. Eu gostei de como o autor trouxe em discussão alguns temas como o valor social da arte, o ambiente político estadunidense pós-Segunda Guerra Mundial, o sentimento de deslocamento do judeu na sociedade norte-americana e identidade. 

Estes últimos dois temas já centrais em "O complexo de Portnoy": o judeu americano raivoso, que não viveu o Holocausto, que não encontra seu lugar no seu país de nascimento e não compartilha desse "histórico" e identidade judaica é o próprio Alexander Portnoy. A diferença é que este reclama, grita, esperneia com seu psiquiatra e despeja toda a raiva e frustração num prisma sexual e freudiano. Ira, por outro lado, direciona sua insatisfação e deslocamento no mundo no aspecto ideológico e resistência política. 

A identidade e a ideologia se misturam em Ira: um personagem que não consegue ser ele mesmo porque está em função do partido/ ideologia, mas também não consegue ser o comunista ideal, pois sua personalidade o impede. Isso tudo contado, é claro, pelas memórias de seu irmão e do próprio Nathan, que o conheceu e o admirava quando entrava em sua adolêscencia. 

São várias camadas até chegar em Ira: Ira conta ao seu irmão Murray o que lhe passou, Murray conta para Nathan décadas depois e Nathan escreve para nós, juntando às memórias de Murray as suas próprias lembranças de menino. Dois idosos desiludidos, à margem, sozinhos no mundo, um com 90 anos e outro na casa dos 60 que vive recluso numa cabana, contando causos que aconteceram 40 e 50 anos antes sobre um outro homem. Muito suspeito, não?

Sob os olhos destes dois narradores, a história de Ira se funde à própria histórica política e cultural nos EUA na medida em que fala muito sobre os primórdios do rádio e da indústria de entretenimento, mencionando Broadway e o cinema mudo. A publicação de "Casei com um comunista", livro autobiográfico escrito pela personagem de Eve Frame, esposa de Ira e que intitula o livro que nós estamos lendo, é a representação do rompimento da fronteira entre público e privado e entre entretenimento e política na cultura norte-americana. É só um prenúncio de escândalos reais, como Bill Clinton e Monica Lewinsky, por exemplo. 

Uma pulga atrás da orelha, no entanto, ficou me incomodando. Esse papo infinito de seis noites regado a martini entre dois homens, fofocando sobre a vida dos outros e que, no fim, se resume a um julgamento de defesa de um outro homem que, apesar de impulsivo, adúltero, violento, assassino, etc, era uma boa pessoa, tinha bons princípios, era guiado pela vontade de fazer o bem e que foi "usado" pela ideologia comunista e sua ex-esposa, Eve Frame. Uma vítima. Coitado.

Eve é narrada por estes homens como a mulher louca, histérica, infeliz e frustrada como mãe, artista fracassada em fim de carreira, interesseira, manipulável, envergonhada de sua identidade judaica, cínica e - adivinha - injusta com o próprio coitado do Ira, cuja vida teria sido destruída não pelas suas próprias atitudes irresponsáveis ao longo de toda sua vida, mas pela publicação do livro escrito por Eve, "Casei com um comunista". 

Esse desconforto ficou comigo e, quando fui procurar textos e reviews sobre esta obra pude ver melhor o contexto de publicação. "Casei com um comunista" foi escrito e publicado como uma resposta ao livro "Leaving a Doll's House", de Claire Bloom, que foi ninguém mais ninguém menos que a ex-esposa de Philip Roth e cujas semelhanças com Eve Frame são gritantes. Não acredito em separar o autor da obra, mas também não espero ler na ficção um homem sexagenário ressentido de sua ex-esposa. Confesso que fiquei um pouco decepcionada. 

De todos os livros que li de Philip Roth este foi fraco e o que menos me agradou, apesar de tocar em assuntos que tanto me interessam: judaísmo, identidade, cultura norte-americana e comunismo. Existe uma ironia neste ponto de inflexão entre a minha relação com Philip Roth e a de Nathan com Ira. Em sua adolescência, Ira vê em Nathan um pupilo e este enxerga Ira com grande admiração, seguindo-o e idealizando-o. Aos poucos, no entanto, conforme vai crescendo e seu mundo se expandindo, Nathan começa achar Ira enfadonho, repetitivo e passa a se afastar. Chega a se questionar "como Eve pode aguentar Ira e seu discurso inflamado todos os dias, todas as horas, dentro de sua própria casa?". Pois bem, fiquei assim um pouco com Roth em "Casei com um comunista" - me desiludi. 

Terminei a leitura com a impressão de que Murray era um cunhado intrometido e chato, Ira um homem violento, impulsivo, adúltero e culpado de muita coisa. Mas Ira tinha quem o defendia - seu irmão, que direcionou toda a responsabilidade das frustrações e infelicidades de seu irmão para a cunhada, esposa de Ira, Eve. Quase uma novela mexicana.

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Alguns textos interessantes:

https://www.theguardian.com/books/1998/oct/03/fiction.philiproth

https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/98/10/11/reviews/981011.11kellyt.html

https://livroecafe.com/2020/03/26/casei-com-um-comunista-de-philip-roth-fissuras-no-sonho-americano/

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs10019912.htm

https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n03/alexander-star/what-the-hell-happened

A Assombração da Casa da Colina: quando os fantasmas que nos perseguem somos nós mesmos

Parece que pipocaram clubes de leitura. Se reunir para discutir um livro me parecia tão coisa de filme americano. As senhorinhas donas de casas sentadas em poltronas numa sala confortável, conversando e trocando ideia sobre a mais recente leitura, comendo cookies e brownies... Em Lost, o episódio que apresenta com mais detalhes quem eram os outros, mostra os habitantes da ilha reunidos e discutindo o livro Carrie, de Stephen King, quando são interrompidos pela queda do avião dos nossos adoráveis protagonistas.

Ainda não me reuni presencialmente para discutir nada (só em salas de aula), mas minha bolha de perfis das redes sociais tem me apresentados clubes de leitura que propõem discussão online (o que faz muito sentido, considerando a quarentena). O fato é... O primeiro clube de leitura que entrei foi do site/revista  Valkirias, onde discutimos Sobre os Ossos dos Mortos. Agora, entrei em mais um, do site/revista Querido Clássico. Eu adorei a proposta de ler clássicos do terror no mês do Halloween e, por isso, a leitura coletiva deste mês é A Assombração da Casa da Colina, da autora norte-americana Shirley Jackson e publicado em 1959. Eu não conhecia o livro, tampouco a autora. Já tinha assistido a série da Netflix, A Maldição da Residência Hill, que eu gostei bastante, mas não sabia que tinha sido inspirada pela obra de Jackson. 

É um livro de leitura rápida, pouco mais de 200 páginas, que eu li em três dias numa viagem que fiz ao interior de São Paulo. Coincidências da vida, mas viajamos à região da Cuesta, em Botucatu, formada por grandes morros. Alugamos uma casinha pelo Airbnb e ficava bem no topo, com um mirante maravilhoso. Na primeira noite de leitura, ventava muito e, por ironia das deusas da leitura, estava eu lá lendo sobre a Casa da Colina. 

Anedotas curiosas a parte, gostei muito da leitura, mas pensava que eu não teria muito o que falar sobre este livro porque "não era uma história tão profunda" e que "ultimamente tenho lido obras tão densas, que esta é fichinha". Acabei pagando minha língua. 

O terror, na obra de Jackson, não está no campo do paranormal. Fantasmas, monstros, sustos não existem neste terror. O que existe é a tensão psicológica da protagonista, Eleanor, em saber quem é e qual o seu lugar na sociedade. Quando eu era criança, meu pai me dizia "não tenha medo de espíritos, é dos humanos que temos que ter medo". Essa é a grande lição do livro. 

As personagens aguardam ansiosamente uma atividade paranormal. Querem ser testemunhas de algum fenômeno inexplicável, mas no fundo, o que se passa na cabeça de Eleanor é o medo de como está sendo julgada pelos seus colegas, o medo de saber o que eles pensam dela. Se a casa é mal assombrada ou não, o medo da casa é contaminado pelo medo de parecer que tem medo e, por isso, a afirmação constante de "eu não senti medo". O curioso, no final, não é o medo de a casa não deixá-la ir embora. O medo é, de fato, ir embora. 

Quando a tensão aumenta e parece que estamos próximos do clímax, a chegada da esposa do Dr. Montague muda tudo. A dubiedade de sua crença no paranormal e, ao mesmo tempo, seu ceticismo, desestabiliza a conviccção de que a casa é realmente mal assombrada e, aí sim, percebemos que o problema está não na materialidade da residência, mas sim na cabeça de todos eles. É um livro que joga muito com a dualidade de expectativa versus realidade. O quanto daquilo que apuram os sentidos das personagens é real e o quanto é imaginação? O quanto o medo é do paranormal e o quanto é do julgamento do outro - outro de carne e osso. 

Pesquisando mais sobre a autora e a obra, vi que Shirley Jackson foi contemporânea de outros autores norte-americanos clássicos, como Philip Roth. Adeus, Columbus, inclusive, concorreu junto com A Assombração da Casa da Colina, pelo National Book Award. O primeiro livro ganhou, assim como Philip Roth é muito mais conhecido e Shirley Jackson foi ficando... Vamos dizer assim... Um pouco apagada. 

E no final, assim como os protagonistas de Roth buscam sua identidade e saber quem são no meio em que vivem, também Eleanor, de Jackson, está procurando seu lugar. Só que é uma mulher, que viveu até depois dos 30 anos cuidando de sua mãe julgadora, pouco amável e recentemente falecida, sem um lugar próprio, vivendo às custas e à sombra de sua irmã. A Casa da Colina é um lugar onde ela pode pensar em ser ela mesma, longe do julgamento da irmã e do cunhado, fazer amizades com outras pessoas... Mas a insegurança e o medo do olhar do outro são de fato o que a assombram. 

Gostaria de conhecer mais Shirley Jackson e suas protagonistas. Em um artigo publicado no The Guardian na ocasião da estréia da série da Netflix, a autora diz como Jackson sentia-se sufocada e oprimida pela sua vida familiar - mãe, marido e a faceta dona de casa. Ao fato, acrescenta-se como, ao contrário de autores como Philip Roth, Saul Bellow e John Updike cujas obras foram associadas à seriedade e profissionalismo, Jackson foi relegada ao plano da dona de casa, habilidosa com a escrita, mas cuja obra era um pouco "emocionadinha". 


Depois de ter terminado, voltei ao livro e reli a primeira página que funciona como uma introdução. O quanto a Casa e todo seu equilíbrio, assoalhos firmes, paredes em pé, portas "sensatamente" fechadas e, ao mesmo tempo, tão "desprovida de sanidade" não são as nossas próprias amarras sociais? Uma sociedade de bases institucionais sólidas, existentes há tanto tempo no passado e tão mais no futuro, também desprovida de sanidade: sufocando e oprimindo os que nela habitam (neste caso, exemplificado por Eleanor, uma mulher em seus trinta, procurando seu lugar e aprovação no mundo). Mas aí, talvez eu já esteja viajando demais!!

De qualquer maneira, é importante ler A Assombração da Casa da Colina situando-a em seu contexto temporal e social. Percebemos assim como a obra expressa magistralmente sob uma narrativa de terror e suspense problemas do feminino da época de 60 e, ainda, tão atuais - sem cair do pedantismo de um feminismo raso e escandaloso. 

(Ainda não foi o encontro de leitura, certamente haverão outros pontos interessantes!)

Os dois anos de exílio de Primo Levi: entre Auschwitz e o retorno, entre os alemães e o Exército Vermelho

Um autor que estava há um tempo na minha cabeceira era Primo Levi. Como assim leio toda essas coisas sobre Segunda Guerra Mundial, Holocausto, União Soviética, Exército Vermelho, antissemitismo, identidade, diáspora, etc, e nunca tinha lido Primo Levi? Curioso também que o primeiro livro que eu li na vida - aquele que a gente pede "Mãe, eu quero ler um livro, compra para mim?" - foi "O Diário de Anne Frank" na quarta-série, porque tinha uma chamadinha no livro didático. 

O Allan ficou repetindo - "De novo, Gi, nesse assunto? Lê algo diferente... Você está muito presa nesse século XX." Mas como não ler? Como não conhecer/ ouvir/ tentar compreender algo que para nós é tão incompreensível e tão definitivo da nossa realidade atual? Como não escutar Levi cujo maior medo é não ser ouvido? Tanto em "A trégua" quanto em "É isto um homem?", sua maior vontade é contar para o outro e, seu pesadelo é não ser ouvido. Isso é tão significativo. Parece que o mínimo, o mínimo do mínimo que eu posso fazer diante de tanta mostruosidade é apenas ouvir - ficar sabendo.

Eu comecei do fim para o começo. Primeiro li "A Trégua" pelo simples motivo besta de estar disponível em e-book no kindle e, como me sensibilizou demais, comprei depois "É isto um homem?", da Rocco. No meio termo, li Philip Roth, "O Complexo de Portnoy". Autores judeus, personagens judeus contemporâneos, mas separados por um oceano: os paralelos e as divergências são gritantes e incomodam bastante.

É isto um homem?

O cotidiano, a economia, o trabalho, a sociabilidade e o que "resta" de humanidade no campo de concentração. A des-personalização, des-caracterização do indivíduo. Tira-o de sua casa, sua geografia, lhes usurpam seus bens materiais, nome, dignidade, esperança e lhes privam de alimento e abrigo. A questão é sobreviver. 

O que mais me tocou, porém, é algo que talvez não se fala muito, ou que me passou despercebido até então: a comunicação. Tantas pessoas de origens diferentes, da Europa inteira- como se comunicar? Como se entender? Está aí a questão: a máquina nazista, do holocausto, do extermínio, é feita para a incompreensão. A comunicação é perdida.

"Aqui a confusão das línguas é um elemento constante da nossa maneira de viver; a gente fica no meio de uma perpétua Babel, na qual todos berram ordens e ameaças em línguas nunca antes ouvidas, e ai de quem não entende logo o sentido. Aqui ninguém tem tempo, ninguém tem paciênca, ninguém te dá ouvidos; nós, os recém-chegados, instintivamente nos juntamos nos cantos contra as paredes, como um rebanho de ovelhas, para sentirmos as costas materialmente protegidas."

Os mecanismos de funcionamento dos campos de extermínio tem sido bastante denunciados ao longo do século XX e, por mais que talvez nunca conseguiremos compreender a totalidade do que foi a realidade para os que viveram a estas condições tão extremas e desumanas, a gente tem uma vaga ideia do terror. Há, porém, dois pontos importantíssimos que Levi traz que, até então, refleti muito pouco: o fim e o depois. 

Como se dá o fim? O fim é um processo, não é de um dia para o outro. Não se dorme prisioneiro e acorda homem livre. Não nas condições que estão Primo Levi e os outros. Existe uma super exposição, especialmente hollywoodiana, da participação dos EUA, da invasão da Normandia e até da Bomba Atômica para o fim da guerra, mas para a percepção daqueles presos sob o regime nazista, o fim veio aos poucos, sob a forma de rumores, quebra das miudezas da rotina super-sistematizada alemã... Veio com o barulho, ao fundo, do Exército Vermelho se aproximando, cujos sons da marcha eram, a cada dia um pouquinho mais, sentidos e ouvidos. 

E, mesmo assim, não foi num exato dia que se deu a chegada do soldado soviético e a dabandada dos alemães. Não. Levi faz um recorte perspicaz no capítulo "História de dez dias": como se deu essa "transição" entre o antes e o depois - entre o domínio alemão e a conquista soviética. Diante da notícia de que os russos chegariam no dia seguinte e a sensação de que os alemães estavam saindo, ficava a dúvida do que viria a seguir. Muitos, sem saber, saíram dos campos para a Marcha da Morte. Levi, como estava doente, ficou e isso o salvou. 

"Todos os sãos (a não ser os poucos que, atendendo a sábios conselhos, no último instante tiraram a roupa e sumiram em algum beliche da enfermaria) partiram na noite do dia 18 de janeiro de 1945. Eram uns 20 mil, procedentes de vários campos. Quase todos desapareceram durante a marcha de evacuação, Alberto entre eles. Talvez um dia alguém escreva a sua história."

O início da marcha significou, para aqueles que ficaram, os "10 dias fora do mundo e do tempo". De 18 a 27 de janeiro (dia da chegada enfim dos russos), Levi escreve dia a dia os limites físicos e psicológicos nos quais viveram aqueles que ficaram a própria sorte, sem alimento, aquecimento, água e doentes. Abandonados.  

A trégua

Quando chegam os russos, uma nova fase, um novo e aparentemente-sem-fim-processo até voltar para casa. Uma nova Odisséia... A do século XX. Marcada pela paisagem da destruição da guerra, da fome, dos isolamentos e do trem. Um artigo muito interessante, chamado Trajetórias e paisagens de exílio na narrativa de Primo Levi, de Anna Basevi, aponta para esta questão. O exílio que marca o povo judeu, o deserto de Moisés e as planícies da Europa Central... O exílio, aponta a autora, não é só geográfico, é também linguístico. A Babel do primeiro livro citado, continua agora nos campos de refugiados, sob os cuidados do Exército Vermelho. 

Os alemães tornam-se raros no relato e aparecem agora os russos soviéticos, de cultura e educação tão diferentes, e que muito me lembram os testemunhos coletados pela Svetlana Aleksiévitch, em "O fim do homem soviético".

"Mas os russos, diferentemente dos alemães, possuem apenas em pequena medida o talento para as distinções e as classificações. Poucos dias depois, estávamos todos de viagem para o Norte, para um destino impreciso, de todas as maneiras, para um novo exílio. Italianos-romenos e italianos-italianos, todos, nos mesmos vagões de carga, todos com o coração apertado, todos em poder da indecifrável burocracia soviética, obscura e gigantesca potência, que não era malévola contra nós, mas desconfiada, insipiante, contraditória, e cega nos efeitos tal uma força da natureza." (grifo meu)

Antes de terminar, eu queria registrar aqui um dos pequenos relatos contados por Levi que me marcou muito. Parados em uma estação em Proskurov, Ucrânia, Levi e seus companheiros ouviam duas moças de Minsk conversando em ídiche, língua que não compreendiam. Não obstante, estimulado pelo forte chá açucarado que havia tomado mais cedo, Levi ensaia uma conversa com elas. Em alemão, ele apresenta a si e seus amigos como judeus e perguntam se elas também são judias. Em seguida elas riem e dizem que se eles não falam ídiche, portanto, não são judeus. Ele tenta explicar que ele é um judeu italiano e que na Itália e em toda a Europa Ocidental os judeus não falam ídiche. 

"Mas então, se éramos judeus, todos os outros também o eram, disse-me, acenando com gesto circular para os oitocentos italianos que abarrotavam a sala. Que diferença havia entre nós e eles? A mesma língua, os mesmos rostos, as mesmas roupas. Não, expliquei-lhes: aqueles eram cristãos, vinham de Gênova, de Nápoles, da Sicília: talvez alguns daqueles tivessem sangue árabe nas veias. Sore [uma das meninas] olhava, perplexa: era uma grande confusão. Em seu país as coisas eram muito mais claras: um judeu é um judeu, e um russo um russo, não havia ambiguidades." (grifo meu)

Se as fronteiras políticas são tênues, também são as fronteiras identitárias. Levi e Sore nos jogam na cara como os critérios identitários são problemáticos, delicados, móveis... São imprecisos. Como é impreciso definir quem é quem, o que e porque é quem, com bases em critérios tão frágeis! Isso me lembra muito Alexander Portnoy, de Philip Roth, suplicando para que o vejam como humano, de forma pura e simplesmente humana - e não como judeu.

Os livros são a narração de seu exílio - começa quando é levado da Itália e acaba no seu retorno. Em "É isto um homem?", Levi é feito prisioneiro em dezembro de 1943 e em 1944 é deportado para Auschwitz. Em Janeiro de 1945 é libertado pelo Exército Vermelho, e aí começa "A Trégua", com toda a trajetória até outubro, quando chega, finalmente, em Turim. São livros doídos de ler. Tristes. Por tantas e tantas vezes, Levi mostra como foi agraciado com momentos de sorte, que possibilitou sua sobrevivência e retorno. 

Eu demorei muito para ler Primo Levi. Todos precisamos ouvi-lo. Todos precisamos saber, não podemos esquecer, nunca. O tempo passa, outras guerras acontecem, outros problemas surgem, mas não pode ser colocado de lado, ou no esquecimento, ou ainda na categoria já-faz-muito-tempo-não-é-mais-tão-importante o genocídio, a violência, a perseguição e esse momento da história que moldou o mundo de hoje, tanto geopoliticamente quanto nas identidades do homem contemporâneo.

Estou presa na década de 60? Partindo de Mad Men, visitamos Alex Portnoy e, por último, um pulinho em Mrs Maisel

Continuando na linha de Mad Med do post anterior, eu queria registrar um pouquinho as minhas impressões de "O Complexo de Portnoy". Eu já tinha lido ano passado "A marca humana" e "Pastoral Americana", livros que eu gostei demais. Deixei Philip Roth um pouco de lado até ver Don Draper lendo "Portnoy's Complaint" durante seu próprio exílio dentro da Roger, Sterling and Associates. 

As questões de identidade, de deslocamento do protagonista frente aos grupos que ele (não)pertence, o que é esperado dele VERSUS o que ele é ou quer ser, são grandes temas já de "A marca humana", publicado em 2000. O fenótipo e o genótipo sob os choques dos costumes, da história e da cultura já haviam aparecido em 1969, data de publicação de "O Complexo de Portnoy". Uma leitura muito difícil porque, como o próprio título original sugere, trata-se de uma gigante reclamação - Portnoy's Complaint. Uma hora eu precisei dar um tempo porque, afinal, ouvir/ler tanta reclamação é um pouco complicado. 

(Aliás, genial esse jogo de palavras do título. Uma pena que se perde um pouco disso na tradução.)

Se tem uma coisa que aproxima talvez os judeus e os brasileiros é a tal autodepreciação. Eu não sabia, mas "se zoar" é um fenômeno comum entre a comunidade judaica. O desabafo de Alex está entre o desespero e a risada. Por exemplo, o pânico que ele sente de ter que contar aos seus pais que estava numa tentativa frustrada de perder a virgindade com uma menina não-judia e, sem querer, espirrou esperma no seu olho: desespero imenso de ficar cego e tornar-se uma decepção para seus pais, tudo porque quis ser chupado por uma shikse.

O sentimento de culpa que persegue Alex é o que torna as situações tragicômicas. Quem mandou ficar patinando no gelo atrás das shikses? Por isso caiu e quebrou a perna, ficará para o resto da vida deficiente e ouvirá para sempre seu pai reclamar e jogar na sua cara seu interesse pelas moças não judias. (Nós brasileiros também somos experts em rir da nossa própria desgraça, só não temos o sentimento de culpa nos intimidando. Pelo contrário, somos bons em culpar sempre os outros pelas nossas próprias mazelas.)

"Dr. Spielvogel, esta é a minha vida, minha única vida, e estou vivendo minha vida no meio de uma piada de judeu! Eu sou o filho de uma piada de judeu - só que não é piada não!" 

Apesar de Alex não conseguir controlar seus impulsos sexuais na intimidade, aos olhos de sua família e comunidade ele é o menino perfeito, o filhinho da mamãe, o melhor aluno da classe. e por isso se formou advogado e assumiu uma importantíssima posição na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York. E seu esforço em tornar-se esse "menino exemplo", tanto pelo sentimento de superioridade moral quanto pelo medo que sua família impunha a ele quando criança, deixa-o inconformado quando descobre, já adulto, que seus colegas de infância também se tornaram homens normais e bem sucedidos, apesar de seus comportamentos nada exemplar.

"Mas não pode ser! Sem sopa de tomate quente no almoço de dias frios? Com aqueles pijamas imundos? Com todos queles preservativos de borracha vermelha cheios de pontas espetadas, que segundo ele enlouqueciam o mulherio lá em Paris? Smolka, que nadava da piscina do Olympic Park, também está vivo? E é professor de Princeton ainda por cima? Em que departamento, letras clássicas ou astrofísica? Ba-ba-lu, você está falando que nem minha mãe. Você certamente quer dizer encanador, ou eletricista. Porque eu me recuso a acreditar! Quer dizer, no fundo do meu kishka, das minhas emoções mais profundas, minhas crenças mais antigas, por trás do eu que compreende perfeitamente que Smolka e Mandel continuam vivos, morando em boas casas e desfrutando das oportunidades profissionais abertas aos homens deste planela, não consigo acreditar que esses dois meninos maus sobreviveram, muito menos que se tornaram homens de classe média bem-sucedido. Ora, eles deviam estar na cadeia - ou na sarjeta. Eles nem faziam o dever de casa, porra!"

Achei ótima essa parte. Quantas vezes nesses últimos cinco meses de pandemia/quarentena a galera não pensou, de forma indignada, como é possível siclano e fulano não terem MORRIDO DE COVID porque não cumprem isolamento, não higienizam suas compras e não se preocupam em lavar as roupas quando chegam em casa? O medo nos prende em casa, nos faz sentir enorme culpa se furarmos a quarentena, e desejamos a morte/doença daqueles que saem - ou que não compartilham o mesmo medo e princípios morais que nós.

Porém, as críticas mais ácidas e degradantes são do Alex para ele mesmo: "Eu vivo numa piada de judeu" e, sob uma ótica freudiana e foucaultiana, seus impulsos sexuais são atos de resistência contra um mundo controlador e de culpa no qual ele não se encaixa. Na superfície, ele faz o que se espera de um menino judeu, mas sob os olhos dos outros não. O exemplo mais alegórico é a punheta que ele bate a caminho de seu bar mitzvah. 

"Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto! Chega!"

E tudo isso é condensado no último capítulo. Se o Alex não se encontra nos EUA, na sua comunidade em Nova York, se encontraria ele em Israel? O lugar onde todo mundo é judeu. O lugar onde os judeus são os WASPs. 

Absolutely not. Uma jovem israelene explica: 

"'Ah, não concordo', repliquei. 'A autodepreciação, afinal de contas, é uma forma clássica de humor judaico'.

'Humor judaico, não! Não! Humor de gueto.'

Um comentário não muito amoroso, não é? Quando o dia raiou, ela já havia me explicado que eu era o representante típico do que havia de mais vergonhoso na 'cultura da diáspora'. Aqueles séculos e mais séculos sem pátria haviam produzido homens desagradáveis como eu - assustados, defensivos, autodepreciativos, emasculados e corrompidos pela vida num mundo de gentios."  

E daí, fui pesquisar. Me intrigava como foi recebido o livro em 1969 pela comunidade judaica. Algumas aproximações com a série Mrs. Maisel eu já tinha reparado: a 'autozuação', a mãe controladora, a culpa na tradição judaica... E eis que descubro que Lenny Bruce, que pagou a fiança de Midge logo nos primeiros episódios, foi de fato um personagem real e, portanto, contemporâneo de Philip Roth. Neste turbilhão que foi os anos 60, a liberdade sexual, emancipação da mulher, civil rights, pós-guerra, os debates em torno da identidade e da linguagem tomaram espaço e o pós-estruturalismo ganha espaço. 

E diante desta nova questão da identidade, quem é esse judeu pós-segunda guerra mundial? Exilado nos EUA, exilado em Israel... Alex não encontra seu lugar, porque parecem ser incompatíveis o que ele é (ou quer ser? ou tenta ser?) com o que é esperado dele - não importa onde esteja. E por isso o sentimento de deslocamento e vazio. Irônico sua ocupação ser na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York, profissão que decidiu seguir quando, ainda adolescente, teve uma epifania durante uma viagem de caminhão a trabalho com seu cunhado. É o conflito entre vontade de ajudar a todos com o direito de serem humanos sendo que, o próprio Alex, nunca foi visto como humano, mas como o judeu da mamãe, do rabino, o judeu exilado, o judeu narigudo, o judeu emasculado, etc. 

"Judeu judeu judeu judeu judeu judeu! Já está transbordando dos meus ouvidos, a saga dos judeus sofredores! me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu - porque por acaso eu também sou um ser humano!"

Foi uma leitura cansativa, mas instigante. Me vi várias vezes em Alex quando ele entra em pânico por fazer algo errado. No começo da pandemia, eu achava que ia morrer quando buscasse a pizza na portaria do prédio; eu ia ficar entubada se não limpasse cuidadosamente com álcool em gel o novo frasco em alcool em gel que comprei no mercado; que eu ia contaminar todos da minha família se eu abrisse o vidro do carro e depois os visitasse. E, ao mesmo tempo, vi vários Alex que não compreendem como os os fura-quarenteners não morreram de COVID, ou pelo menos não ficaram seriamente doentes. A culpa e o medo continuam presentes. Ainda que tem sido flexibilizada as atividades nessa quarentena, o medo de sair e se contaminar e a culpa e vergonha de estar saindo ainda são dominantes.

(Respondendo minha própria pergunta do título, estou tão presa na década de 60 que ontem, domingão, eu e Allan assistimos Rosemary's Baby, que também é bastante referenciado em Mad Men. Que filme, minha gente. Que filme!)

O círculo perfeito entre o último e o primeiro episódio de Mad Men

Em 2017 eu assisti, sozinha, de uma só vez Mad Men. Meu marido até hoje fala como foi assustador a velocidade com a qual eu assisti todas as temporadas da série. Por conta da quarentena, eu consegui convencê-lo a assistir alguns episódios, para ver como é um ótimo show e entender um pouco os motivos que me fizeram ser grande fã. Ele amou e adotou-a como "nossa série oficial para a gente ver juntos". Neste fim de semana chegamos ao fim. Agora é só aproveitar o momento-ressaca-nostálgico-orfãos da série. Seguem alguns comentários e reflexões pessoais - nada de análise profunda ou coisas interessantes: não tenho arsenal teórico para isso e há muitas outras fontes mais interessantes na internet.

O legal de ver novamente um show tão denso é que vários detalhes da narrativa que me passaram despercebidos tornaram-se mais evidentes dessa vez - no perfeito modo irônico e simbólico de Mad Men. Em 2017, eu fiquei mais afeiçoada aos personagens e, pelo simples fato de não ter conhecimento prévio, várias referências históricas dos EUA da década de 60 me passaram batidas. Dessa vez, eu olhava com a maior atenção possível aos programas de TV e rádio que os personagens assistiam: o tour de Jackie pela Casa Branca no dia dos namorados, o assassinato de JFK, os protestos de 1968, Nixon pronunciando a retirada das tropas do Vietnã e, talvez o mais incrível e o meu favorito, a chegada do homem à lua.

Percebi (e lamentei muito) como a Betty já tinha seu destino trágico marcado desde o início. O último e o primeiro episódio fazem um arco perfeito: a criação de uma nova campanha para Lucky Strike, a ironia com que os homens em meio a fumaça debocham do risco de câncer, Don Draper completamente alheio à sua vida doméstica e, no final, isolado pela família que antes lhe era invisível, e a Betty representando o trágico ciclo do consumo capitalista vazio e autodestrutivo. Fui coletando, ao longo das temporadas,  frases e indiretas que antecipavam a doença fatal de Betty e como ela não conseguiria escapar de seu fim.

O grande tema da série é a sociedade dos Estados Unidos da década de 60. A emancipação feminina, os protestos pelo civil rights, a política, o próprio mundo da publicidade, a política, a sociedade de consumo norte-americana, o Don, a Peggy, a Betty, etc, são temas que compõem o grande assunto que é a marca temporal. O universo publicitário está lá porque é onde se exprime de maneira mais evidente a incompatibilidade da sociedade de consumo norte-americano: suas aspirações, promessas e como a vida material e perfeita - de propaganda - se dilui rapidamente, escorre pelas mãos e desaparece pelo ralo.

Por isso as primeiras temporadas tão "anos 1950": as roupas, móveis domésticos, o escritório, os temas da Guerra da Coréia, Segunda Guerra Mundial... É um ambiente mais sóbrio, analógico, excessivamente masculino e os assuntos são do "antes", de um passado recente. Aos poucos, não é apenas o "novo" que vai aparecendo, como o movimento hippie, as seitas religiosas (aquele episódio que o Paul Kinsey versão Hare Krishna aparece tentando vender o script de um episódio de Star Trek é um dos meus favoritos), o rock, os movimentos civis... Mas também outras coisas vão se tornando obsoletas. "-A Segunda Guerra Mundial foi há muito tempo, Sterling." O Japão deixa de ser inimigo e se torna um cliente. Não é só a estética que muda, as relações se transformam.

Ao longo do tempo/ temporadas, também o segredo de Don Draper vai se tornando pouco importante: se foi o pivô para a separação de Don e Betty Draper, ele é depois revelado para um affair e, como saberemos depois por uma fala mais do que breve e superficial, a Megan casou-se com Don sabendo de tudo. A troca de identidade do personagem principal, que a princípio tão bem o definia, aos poucos vai se materializando no que Cooper já havia previsto: "who cares?". Tá aí... No one cares.

Nos episódios finais, aqueles veteranos de guerra, velhos, bêbados, excitados por uma stripper vestida num maiôzinho com as cores e estrelas da bandeira norte-americana, mostra que esta cultura bélica - apesar de nunca ter cessado enquanto política de estado - tornou-se no sentimento coletivo obsoleta e decadente. Os veteranos de guerra, que lutaram contra Hitler, japoneses e coreanos, deixam de ser heróis para serem velhos gágá.

No primeiro episódio, ninguém fala (ninguém DEVE falar) o que sente. Fala-se o que é conveniente. A paleta de cores amarronzada e bege, o terno e gravata, os vestidos de saia bufantes, penteados perfeitos, conversas protegidas pelas paredes do escritório, da sala e da cozinha domésticas, vão cedendo espaço para para cabelos despenteados, nudez, uma moda mal vestida, suja, e práticas de yoja e tai chi chuan em espaços abertos, ensolarados, de contemplação a natureza, e uma hipervalorização dos sentimentos expostos no último episódio.

É por isso que a Betty é a tragédia personificada. Ela foi criada para ser a mulher perfeita daquele início da década. Enquanto o Don-camelão vai se adaptando ao ambiente, a Betty ficou fora de contexto. Não há mais espaço para as donas de casa versão Betty Draper. Mesmo sua ex-vizinha, Francine, que assim como ela era a perfeita-esposa-e-mãe-do-subúrbio, começa a trabalhar meio período. Mas e a Betty? O tempo passou e ela se descontextualizou.

No primeiro episódio, Don Draper questiona ao garçon negro que lhe serve qual marca de cigarro fuma e o porquê. Quem é esse homem americano que consome e por que consome? Como vender a ideia, a promessa, para estes homens e mulheres dos Estados Unidos da América? Como se comportam no mercado? Compreender este universo, problemas, dúvidas e trazer as respostas através dos produtos cujas marcas de venda devem crescer, faz parte da trajetória de Don e da agência.

Mas chegamos ao fim da década de 60 e esse homem já chegou na lua junto com Neil Armstrong. O próprio Don, para escrever um discurso sobre a Sterling Cooper, passa a questionar: quais os próximos passos? Considerando nosso caminho até agora, para onde iremos? O que queremos para a próxima década? Quais são nossos sonhos? Quão alto queremos chegar? Até onde podemos ir? Os produtos anunciados, as campanhas, já estão em todos os lares americanos. Don Draper e sua equipe, de dentro do escritório, sob a espessa neblina de cigarros, álcool, sexo, preconceito, deboche, conseguiram já entrar em todo o espaço doméstico, nos hábitos mais individuais e rotineiros dos cidadãos americanos.

Agora, no entanto, a estética é hippie e colorida. A mensagem não é de guerra ou bomba atômica, é de paz, liberdade, comunidade. É a busca pela conexão com a natureza e práticas religiosas e de filosofia orientais. Se no primeiro episódio, primórdios de 1960, o interesse era no homem americano e seu cigarro, nos fins de 1969 é a coca-cola, o símbolo capitalista americano, que estará não apenas em todas as casas, cozinhas, mesas de comunhão do Burger Chef (e que será - no futuro - um dos grandes responsáveis pela epidemia de obesidade ds EUA e outros países) mas nas mãos de todas as culturas, etnias e povos do mundo inteiro.


Em contraste com a foto protagonizada pela Betty para a campanha da coca-cola da temporada 1, onde, numa cena bucólica de pique-nique, oferece duas garrafas de coca-cola para o esposo, dois filhos e um cachorro, no fim da sétima temporada a coca-cola (o American-way of life) não está só nos hábitos e costume da família americana, mas nas mãos de todo o mundo. Se chegamos à Lua, porque não nas casas de todas as famílias de todo o mundo sob a mensagem de paz, união e liberdade? O último episódio faz um círculo perfeito com a primeira temporada e é como se toda a série fosse para mostrar como o destino de Don Draper era fazer uma propaganda perfeita para a Coca-Cola.


Finalmente, um personagem que me tocou desta vez profundamente, foi a Margareth. Recentemente li "Pastoral Americana", Philip Roth, e as semelhanças entre Merry Levov e Margareth são tocantes: a filha-única-princesa-perfeita, criada com tudo a sua disposição, em casas "perfeitas", pais dedicados e amorosos (e Roth descreve maravilhosamente bem como tudo isso parece ser perfeito, mas em sua essência não é) que um dia rebela-se, larga tudo, joga na cara de seus próprios pais a miséria de suas vidas e procura na pobreza e na margem da sociedade possibilidades de autorealização.

De fato, Mad Men é minha série dramática favorita. Um dia, gostaria de revê-la pela terceira vez e, desta vez, absorver melhor as referências do cinema norte-americano da década de 60.