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Estou presa na década de 60? Partindo de Mad Men, visitamos Alex Portnoy e, por último, um pulinho em Mrs Maisel

Continuando na linha de Mad Med do post anterior, eu queria registrar um pouquinho as minhas impressões de "O Complexo de Portnoy". Eu já tinha lido ano passado "A marca humana" e "Pastoral Americana", livros que eu gostei demais. Deixei Philip Roth um pouco de lado até ver Don Draper lendo "Portnoy's Complaint" durante seu próprio exílio dentro da Roger, Sterling and Associates. 

As questões de identidade, de deslocamento do protagonista frente aos grupos que ele (não)pertence, o que é esperado dele VERSUS o que ele é ou quer ser, são grandes temas já de "A marca humana", publicado em 2000. O fenótipo e o genótipo sob os choques dos costumes, da história e da cultura já haviam aparecido em 1969, data de publicação de "O Complexo de Portnoy". Uma leitura muito difícil porque, como o próprio título original sugere, trata-se de uma gigante reclamação - Portnoy's Complaint. Uma hora eu precisei dar um tempo porque, afinal, ouvir/ler tanta reclamação é um pouco complicado. 

(Aliás, genial esse jogo de palavras do título. Uma pena que se perde um pouco disso na tradução.)

Se tem uma coisa que aproxima talvez os judeus e os brasileiros é a tal autodepreciação. Eu não sabia, mas "se zoar" é um fenômeno comum entre a comunidade judaica. O desabafo de Alex está entre o desespero e a risada. Por exemplo, o pânico que ele sente de ter que contar aos seus pais que estava numa tentativa frustrada de perder a virgindade com uma menina não-judia e, sem querer, espirrou esperma no seu olho: desespero imenso de ficar cego e tornar-se uma decepção para seus pais, tudo porque quis ser chupado por uma shikse.

O sentimento de culpa que persegue Alex é o que torna as situações tragicômicas. Quem mandou ficar patinando no gelo atrás das shikses? Por isso caiu e quebrou a perna, ficará para o resto da vida deficiente e ouvirá para sempre seu pai reclamar e jogar na sua cara seu interesse pelas moças não judias. (Nós brasileiros também somos experts em rir da nossa própria desgraça, só não temos o sentimento de culpa nos intimidando. Pelo contrário, somos bons em culpar sempre os outros pelas nossas próprias mazelas.)

"Dr. Spielvogel, esta é a minha vida, minha única vida, e estou vivendo minha vida no meio de uma piada de judeu! Eu sou o filho de uma piada de judeu - só que não é piada não!" 

Apesar de Alex não conseguir controlar seus impulsos sexuais na intimidade, aos olhos de sua família e comunidade ele é o menino perfeito, o filhinho da mamãe, o melhor aluno da classe. e por isso se formou advogado e assumiu uma importantíssima posição na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York. E seu esforço em tornar-se esse "menino exemplo", tanto pelo sentimento de superioridade moral quanto pelo medo que sua família impunha a ele quando criança, deixa-o inconformado quando descobre, já adulto, que seus colegas de infância também se tornaram homens normais e bem sucedidos, apesar de seus comportamentos nada exemplar.

"Mas não pode ser! Sem sopa de tomate quente no almoço de dias frios? Com aqueles pijamas imundos? Com todos queles preservativos de borracha vermelha cheios de pontas espetadas, que segundo ele enlouqueciam o mulherio lá em Paris? Smolka, que nadava da piscina do Olympic Park, também está vivo? E é professor de Princeton ainda por cima? Em que departamento, letras clássicas ou astrofísica? Ba-ba-lu, você está falando que nem minha mãe. Você certamente quer dizer encanador, ou eletricista. Porque eu me recuso a acreditar! Quer dizer, no fundo do meu kishka, das minhas emoções mais profundas, minhas crenças mais antigas, por trás do eu que compreende perfeitamente que Smolka e Mandel continuam vivos, morando em boas casas e desfrutando das oportunidades profissionais abertas aos homens deste planela, não consigo acreditar que esses dois meninos maus sobreviveram, muito menos que se tornaram homens de classe média bem-sucedido. Ora, eles deviam estar na cadeia - ou na sarjeta. Eles nem faziam o dever de casa, porra!"

Achei ótima essa parte. Quantas vezes nesses últimos cinco meses de pandemia/quarentena a galera não pensou, de forma indignada, como é possível siclano e fulano não terem MORRIDO DE COVID porque não cumprem isolamento, não higienizam suas compras e não se preocupam em lavar as roupas quando chegam em casa? O medo nos prende em casa, nos faz sentir enorme culpa se furarmos a quarentena, e desejamos a morte/doença daqueles que saem - ou que não compartilham o mesmo medo e princípios morais que nós.

Porém, as críticas mais ácidas e degradantes são do Alex para ele mesmo: "Eu vivo numa piada de judeu" e, sob uma ótica freudiana e foucaultiana, seus impulsos sexuais são atos de resistência contra um mundo controlador e de culpa no qual ele não se encaixa. Na superfície, ele faz o que se espera de um menino judeu, mas sob os olhos dos outros não. O exemplo mais alegórico é a punheta que ele bate a caminho de seu bar mitzvah. 

"Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto! Chega!"

E tudo isso é condensado no último capítulo. Se o Alex não se encontra nos EUA, na sua comunidade em Nova York, se encontraria ele em Israel? O lugar onde todo mundo é judeu. O lugar onde os judeus são os WASPs. 

Absolutely not. Uma jovem israelene explica: 

"'Ah, não concordo', repliquei. 'A autodepreciação, afinal de contas, é uma forma clássica de humor judaico'.

'Humor judaico, não! Não! Humor de gueto.'

Um comentário não muito amoroso, não é? Quando o dia raiou, ela já havia me explicado que eu era o representante típico do que havia de mais vergonhoso na 'cultura da diáspora'. Aqueles séculos e mais séculos sem pátria haviam produzido homens desagradáveis como eu - assustados, defensivos, autodepreciativos, emasculados e corrompidos pela vida num mundo de gentios."  

E daí, fui pesquisar. Me intrigava como foi recebido o livro em 1969 pela comunidade judaica. Algumas aproximações com a série Mrs. Maisel eu já tinha reparado: a 'autozuação', a mãe controladora, a culpa na tradição judaica... E eis que descubro que Lenny Bruce, que pagou a fiança de Midge logo nos primeiros episódios, foi de fato um personagem real e, portanto, contemporâneo de Philip Roth. Neste turbilhão que foi os anos 60, a liberdade sexual, emancipação da mulher, civil rights, pós-guerra, os debates em torno da identidade e da linguagem tomaram espaço e o pós-estruturalismo ganha espaço. 

E diante desta nova questão da identidade, quem é esse judeu pós-segunda guerra mundial? Exilado nos EUA, exilado em Israel... Alex não encontra seu lugar, porque parecem ser incompatíveis o que ele é (ou quer ser? ou tenta ser?) com o que é esperado dele - não importa onde esteja. E por isso o sentimento de deslocamento e vazio. Irônico sua ocupação ser na Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York, profissão que decidiu seguir quando, ainda adolescente, teve uma epifania durante uma viagem de caminhão a trabalho com seu cunhado. É o conflito entre vontade de ajudar a todos com o direito de serem humanos sendo que, o próprio Alex, nunca foi visto como humano, mas como o judeu da mamãe, do rabino, o judeu exilado, o judeu narigudo, o judeu emasculado, etc. 

"Judeu judeu judeu judeu judeu judeu! Já está transbordando dos meus ouvidos, a saga dos judeus sofredores! me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu - porque por acaso eu também sou um ser humano!"

Foi uma leitura cansativa, mas instigante. Me vi várias vezes em Alex quando ele entra em pânico por fazer algo errado. No começo da pandemia, eu achava que ia morrer quando buscasse a pizza na portaria do prédio; eu ia ficar entubada se não limpasse cuidadosamente com álcool em gel o novo frasco em alcool em gel que comprei no mercado; que eu ia contaminar todos da minha família se eu abrisse o vidro do carro e depois os visitasse. E, ao mesmo tempo, vi vários Alex que não compreendem como os os fura-quarenteners não morreram de COVID, ou pelo menos não ficaram seriamente doentes. A culpa e o medo continuam presentes. Ainda que tem sido flexibilizada as atividades nessa quarentena, o medo de sair e se contaminar e a culpa e vergonha de estar saindo ainda são dominantes.

(Respondendo minha própria pergunta do título, estou tão presa na década de 60 que ontem, domingão, eu e Allan assistimos Rosemary's Baby, que também é bastante referenciado em Mad Men. Que filme, minha gente. Que filme!)

O círculo perfeito entre o último e o primeiro episódio de Mad Men

Em 2017 eu assisti, sozinha, de uma só vez Mad Men. Meu marido até hoje fala como foi assustador a velocidade com a qual eu assisti todas as temporadas da série. Por conta da quarentena, eu consegui convencê-lo a assistir alguns episódios, para ver como é um ótimo show e entender um pouco os motivos que me fizeram ser grande fã. Ele amou e adotou-a como "nossa série oficial para a gente ver juntos". Neste fim de semana chegamos ao fim. Agora é só aproveitar o momento-ressaca-nostálgico-orfãos da série. Seguem alguns comentários e reflexões pessoais - nada de análise profunda ou coisas interessantes: não tenho arsenal teórico para isso e há muitas outras fontes mais interessantes na internet.

O legal de ver novamente um show tão denso é que vários detalhes da narrativa que me passaram despercebidos tornaram-se mais evidentes dessa vez - no perfeito modo irônico e simbólico de Mad Men. Em 2017, eu fiquei mais afeiçoada aos personagens e, pelo simples fato de não ter conhecimento prévio, várias referências históricas dos EUA da década de 60 me passaram batidas. Dessa vez, eu olhava com a maior atenção possível aos programas de TV e rádio que os personagens assistiam: o tour de Jackie pela Casa Branca no dia dos namorados, o assassinato de JFK, os protestos de 1968, Nixon pronunciando a retirada das tropas do Vietnã e, talvez o mais incrível e o meu favorito, a chegada do homem à lua.

Percebi (e lamentei muito) como a Betty já tinha seu destino trágico marcado desde o início. O último e o primeiro episódio fazem um arco perfeito: a criação de uma nova campanha para Lucky Strike, a ironia com que os homens em meio a fumaça debocham do risco de câncer, Don Draper completamente alheio à sua vida doméstica e, no final, isolado pela família que antes lhe era invisível, e a Betty representando o trágico ciclo do consumo capitalista vazio e autodestrutivo. Fui coletando, ao longo das temporadas,  frases e indiretas que antecipavam a doença fatal de Betty e como ela não conseguiria escapar de seu fim.

O grande tema da série é a sociedade dos Estados Unidos da década de 60. A emancipação feminina, os protestos pelo civil rights, a política, o próprio mundo da publicidade, a política, a sociedade de consumo norte-americana, o Don, a Peggy, a Betty, etc, são temas que compõem o grande assunto que é a marca temporal. O universo publicitário está lá porque é onde se exprime de maneira mais evidente a incompatibilidade da sociedade de consumo norte-americano: suas aspirações, promessas e como a vida material e perfeita - de propaganda - se dilui rapidamente, escorre pelas mãos e desaparece pelo ralo.

Por isso as primeiras temporadas tão "anos 1950": as roupas, móveis domésticos, o escritório, os temas da Guerra da Coréia, Segunda Guerra Mundial... É um ambiente mais sóbrio, analógico, excessivamente masculino e os assuntos são do "antes", de um passado recente. Aos poucos, não é apenas o "novo" que vai aparecendo, como o movimento hippie, as seitas religiosas (aquele episódio que o Paul Kinsey versão Hare Krishna aparece tentando vender o script de um episódio de Star Trek é um dos meus favoritos), o rock, os movimentos civis... Mas também outras coisas vão se tornando obsoletas. "-A Segunda Guerra Mundial foi há muito tempo, Sterling." O Japão deixa de ser inimigo e se torna um cliente. Não é só a estética que muda, as relações se transformam.

Ao longo do tempo/ temporadas, também o segredo de Don Draper vai se tornando pouco importante: se foi o pivô para a separação de Don e Betty Draper, ele é depois revelado para um affair e, como saberemos depois por uma fala mais do que breve e superficial, a Megan casou-se com Don sabendo de tudo. A troca de identidade do personagem principal, que a princípio tão bem o definia, aos poucos vai se materializando no que Cooper já havia previsto: "who cares?". Tá aí... No one cares.

Nos episódios finais, aqueles veteranos de guerra, velhos, bêbados, excitados por uma stripper vestida num maiôzinho com as cores e estrelas da bandeira norte-americana, mostra que esta cultura bélica - apesar de nunca ter cessado enquanto política de estado - tornou-se no sentimento coletivo obsoleta e decadente. Os veteranos de guerra, que lutaram contra Hitler, japoneses e coreanos, deixam de ser heróis para serem velhos gágá.

No primeiro episódio, ninguém fala (ninguém DEVE falar) o que sente. Fala-se o que é conveniente. A paleta de cores amarronzada e bege, o terno e gravata, os vestidos de saia bufantes, penteados perfeitos, conversas protegidas pelas paredes do escritório, da sala e da cozinha domésticas, vão cedendo espaço para para cabelos despenteados, nudez, uma moda mal vestida, suja, e práticas de yoja e tai chi chuan em espaços abertos, ensolarados, de contemplação a natureza, e uma hipervalorização dos sentimentos expostos no último episódio.

É por isso que a Betty é a tragédia personificada. Ela foi criada para ser a mulher perfeita daquele início da década. Enquanto o Don-camelão vai se adaptando ao ambiente, a Betty ficou fora de contexto. Não há mais espaço para as donas de casa versão Betty Draper. Mesmo sua ex-vizinha, Francine, que assim como ela era a perfeita-esposa-e-mãe-do-subúrbio, começa a trabalhar meio período. Mas e a Betty? O tempo passou e ela se descontextualizou.

No primeiro episódio, Don Draper questiona ao garçon negro que lhe serve qual marca de cigarro fuma e o porquê. Quem é esse homem americano que consome e por que consome? Como vender a ideia, a promessa, para estes homens e mulheres dos Estados Unidos da América? Como se comportam no mercado? Compreender este universo, problemas, dúvidas e trazer as respostas através dos produtos cujas marcas de venda devem crescer, faz parte da trajetória de Don e da agência.

Mas chegamos ao fim da década de 60 e esse homem já chegou na lua junto com Neil Armstrong. O próprio Don, para escrever um discurso sobre a Sterling Cooper, passa a questionar: quais os próximos passos? Considerando nosso caminho até agora, para onde iremos? O que queremos para a próxima década? Quais são nossos sonhos? Quão alto queremos chegar? Até onde podemos ir? Os produtos anunciados, as campanhas, já estão em todos os lares americanos. Don Draper e sua equipe, de dentro do escritório, sob a espessa neblina de cigarros, álcool, sexo, preconceito, deboche, conseguiram já entrar em todo o espaço doméstico, nos hábitos mais individuais e rotineiros dos cidadãos americanos.

Agora, no entanto, a estética é hippie e colorida. A mensagem não é de guerra ou bomba atômica, é de paz, liberdade, comunidade. É a busca pela conexão com a natureza e práticas religiosas e de filosofia orientais. Se no primeiro episódio, primórdios de 1960, o interesse era no homem americano e seu cigarro, nos fins de 1969 é a coca-cola, o símbolo capitalista americano, que estará não apenas em todas as casas, cozinhas, mesas de comunhão do Burger Chef (e que será - no futuro - um dos grandes responsáveis pela epidemia de obesidade ds EUA e outros países) mas nas mãos de todas as culturas, etnias e povos do mundo inteiro.


Em contraste com a foto protagonizada pela Betty para a campanha da coca-cola da temporada 1, onde, numa cena bucólica de pique-nique, oferece duas garrafas de coca-cola para o esposo, dois filhos e um cachorro, no fim da sétima temporada a coca-cola (o American-way of life) não está só nos hábitos e costume da família americana, mas nas mãos de todo o mundo. Se chegamos à Lua, porque não nas casas de todas as famílias de todo o mundo sob a mensagem de paz, união e liberdade? O último episódio faz um círculo perfeito com a primeira temporada e é como se toda a série fosse para mostrar como o destino de Don Draper era fazer uma propaganda perfeita para a Coca-Cola.


Finalmente, um personagem que me tocou desta vez profundamente, foi a Margareth. Recentemente li "Pastoral Americana", Philip Roth, e as semelhanças entre Merry Levov e Margareth são tocantes: a filha-única-princesa-perfeita, criada com tudo a sua disposição, em casas "perfeitas", pais dedicados e amorosos (e Roth descreve maravilhosamente bem como tudo isso parece ser perfeito, mas em sua essência não é) que um dia rebela-se, larga tudo, joga na cara de seus próprios pais a miséria de suas vidas e procura na pobreza e na margem da sociedade possibilidades de autorealização.

De fato, Mad Men é minha série dramática favorita. Um dia, gostaria de revê-la pela terceira vez e, desta vez, absorver melhor as referências do cinema norte-americano da década de 60.