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"Outras Mentes" foi uma leitura sobre polvos e humanos, mas também uma reflexão sobre outras leituras, esse blog e o futuro da discussão ambiental

Talvez uma das coisas mais interessantes que têm surgido com esse projeto de escrever - mesmo que de maneira leiga, pessoal e nada acadêmica - sobre minhas leituras, é poder visualizar alguns temas em comum. Como se fosse uma atividade de ligar os pontos, mas cujo desenho vai se formando meio que por acidente. 

Uma das primeiras obras que registrei aqui no blog, lá no início desta retomada em maio, foi Moby Dick (que pode ser visto aqui). Uma leitura que me levou para o alto mar, sob os olhos do século XIX: o interesse comercial no óleo de baleia para a iluminação e os meios primitivos de caça e extração. Uma ideia dos animais marinhos no meio termo entre desconhecimento-monstros-fantasia típico do imaginário medieval/renascentista e do controle absoluto e racional da natureza em função das demandas de uma organização social cada vez mais industrial. 

E depois disso, li Olga Tokarczuk (de novo ela aqui!) e Ana Paula Maia (um texto completo sobre as duas leituras encontra-se aqui). Romances contemporâneos que tentam entender a relação da sociedade com os animais, agora sob uma perspectiva do século XXI, procurando ressignificar as relações de vida e morte dos animais e seres humanos. Algo que não se encaixa no imaginário criado pelo desconhecimento, tampouco no controle absoluto e desmedido da natureza aos interesses de uma sociedade industrial e de consumo. 

Agora, saindo da ficção e por indicação de um perfil literário no Instagram, li Outras Mentes, de Peter Godfrey-Smith. Eu voltei para o mar, mas ao contrário de Moby Dick, cuja perspectiva era da superfície, em Outras Mentes nós mergulhamos para baixo da água e observamos o que se passa onde é preciso prender a respiração ou usar a tecnologia a seu favor através de tanques de oxigênio (ou seja, não é nosso ambiente). No primeiro, o ponto de vista é de cima para controlar o que está embaixo. No segundo, passamos a fazer parte do que está abaixo - uma tentativa de integração, não dominação.

Se durante a leitura de Moby Dick eu passei horas e horas lendo páginas de sites da internet e vendo vídeos no Youtube sobre cachalotes e baleias, agora o mesmo se passou com polvos. Até um documentário na Netflix eu assisti, chamado Professor Polvo e fiquei dizendo "- agora quero ver um igual com baleias". 

Em Outras Mentes, o filósofo Godfrey-Smith investiga as origens da consciência e utiliza-se largamente da Teoria da Evolução. Para quem não estuda biologia desde os tempos longínquos do colégio, a explanação didática do autor é um pouco nostálgica: "- nossa! eu lembro disso!". Ao contrário da época do colégio, no entanto, essa ciência e termos técnicos nos são apresentados sob o ponto de vista filosófico: em que medida investigar as origens da consciência em animais tão diferentes de nós e seus comportamentos, não fala sobre nós mesmos e nossa própria origem de pensamento?

Logo na introdução, ao expor a complexidade do sistema neurológico e do comportamento dos polvos, lulas e chocos (os cefalópodes) em comparação aos nossos próprios, Godfrey-Smith aponta que os polvos são o mais próximo que chegaremos de um alienígena inteligente. Isso porque, ver a experiência subjetiva em outros mamíferos a aves não é um desafio. Não parece ser ilógico. Somos animais bilaterais, com separação entre corpo e cérebro, pertencemos todos ao filo dos cordados, respondemos a estímulos externos e, ao mesmo tempo, estímulos internos nos fazem modificar o ambiente, sem contar que nosso ancestral comum é muito mais próximo se comparado àquele do qual originou a bifurcação entre nós e os cefalópodes.

"Se conseguirmos fazer contato com os cefalópodes como seres sencientes não foi porque temos uma história compartilhada ou algum parentesco. Eles são, provavelmente, o mais perto que chegaremos de um alienígena inteligente."

Por outro lado, ver senciência em animais como os polvos, que desafiam toda a lógica que conhecemos (e que parece tão natural) entre corpo e cérebro, que não apresentam coluna vertebral, vivem isolados sem interagir com outros animais, não bilateral, etc, é um desafio maior. Como ter experiência subjetiva - como ter pensamento e apresentar comportamento inteligente - sem um cérebro? Godfrey-Smith nos responde essas questões de maneira muito científica, provocadora, didática e instigante. Ás vezes, acho que se perde um pouco nos detalhes da biologia - como por exemplo quando ele nos explica como os chocos e polvos enxergam pela pele, não pelos olhos. Apesar da explicação muito detalhada, não deixa de ser interessantíssimo. 

Photo by Francis Nie on Unsplash

 

Photo by Jeahn Laffitte on Unsplash

O grande triunfo do livro, ao contrário do documentário da Netflix, é a habilidade de Godfrey-Smith nos fazer admirar os cefalópodes, e até mesmo a vida e o ecossistema marinho, nos integrando ao mesmo ambiente e história evolutiva - e não humanizando esses animais. Nós somos como eles, nós dividimos essas características, essa história. Não se trata de uma argumentação de "eles são como nós". 

É perigoso isso de "humanizar" os animais com a intenção de criar compaixão e consciência ambiental: é nesta armadilha onde caem alguns movimentos de proteção animal e veganismo. Em Professor Polvo esse processo humanizador é tão exacerbado que, além de caracterizar o animal como professor no próprio título, o narrador espelha sua vida na vida do polvo com quem convive por um ano - chamando-a de "she", não "it" - e aí, claro, temos um recurso narrativo incrível para a gente chorar litros. 

Só que aí está o problema: é um recurso narrativo. Acabou o filme, acabou o sentimento. Humanizar o que não é humano não cria empatia e compaixão, tampouco consciência ambiental. O que os autores de Professor Polvo e Outras Mentes têm em comum é justamente a preocupação com a saúde dos oceanos e a continuidade da vida marinha que, desde os tempos de Moby Dick, vêm sofrendo uma degradação em ritmo maior que o de recuperação. 

No clássico de Herman Melville, a baleia do século XIX é um monstro. Nós, como humanidade, evoluímos muito de lá para cá. Não é mais comum ao pensamento ocidental bestificar os animais, no entanto, humanizá-los não têm efeito sistêmico. Choramos pela polva do documentário, torcemos pela liberdade de Willy, mas a consciência do todo - do ecossistema e das outras vidas animais - nós esquecemos quando viramos a página, desligamos a TV. 

O mérito de obras como Outras Mentes é utilizar-se da nossa ciência - nossa própria produção de conhecimento - para mostrar como os polvos e a vida marinha é incrível por ser como ela é e - ao mesmo tempo, mesmo que tão distante de nós e tão poucas afinidades, ainda dizem muito sobre nós e podem, se continuarem a existir e serem estudados, dizer muito sobre nosso passado e origem como seres humanos. É neste quesito que se aproximam as obras de Olga Tokarczuk e Ana Paula Maia ao de Godfrey-Smith: elas nos mostram, com brilhantismo, como podemos evoluir a discussão ambiental no século XXI.

Moby Dick: três anos em alto mar em busca da baleia branca ou quanto tempo em quarentena até uma cura

Há muito tempo que eu não entrava numa máquina do tempo e lia alguma obra do século XIX. A última vez foi em dezembro de 2018, com Jane Eyre, de Charlotte Bronte. Mas, por causa da situação permanente de estar em vias de me mudar e em vias de encaixotar meus livros, lacrá-los, colocá-los em algum porão/ armário/ quarto vazio, comecei a olhar com carinho obras da minha estante que a partir de algum momento deixarão de ver a luz do sol.

Nisso, eu vi os dois volumes de Moby Dick e lembrei do meu preconceito de "como deve ser chato um livro de 800 páginas que se passa em alto mar". Só que estamos de quarentena, cujo fim não se sabe quando será. Quão diferente a monotonia do livro poderia ser da minha?

Exceto o ponto central da narrativa - a "busca monomaníaca" do captão Ahab pela Moby Dick - eu não sabia nada sobre o livro e por isso foi uma leitura cheia de surpresas. A começar pelo vocabulário do universo baleeiro do século XIX. Que universo era esse, meu deus? Apesar de já possuir anteriormente uma ideia de que existem diferentes espécies de baleias, por exemplo, sinto que sabia nada e acabei me tornando quase uma especialista em cetáceos e cachalotes. 

A exposição exaustiva do funcionamento de um navio baleeiro, a tripulação e suas funções, as armas, ferramentas, a operação de caça, dissecamento e retirada do óleo das baleias cachalotes - tudo em alto mar - configura um didatismo espetacular. Tudo isso numa leitura fragmentária, composta por 136 capítulos curtos mais epílogo, de onde saltam capítulos reflexivos, analíticos e até de pequenas histórias que orbitam a narrativa principal.

Tudo é curioso e diferente.... Aos meus olhos do século XXI, baleias são amigas e fofas e não monstros assassinos. Afinal, milênios separam qualquer semelhança entre a Bolha (a baleia-maternal-de-Flap-Jack) e o leviatã que engole Jonas. Apesar de serem apresentados como ameaças, os cachalotes também são descritos como seres superiores, inteligentes, fortes e incríveis. Uma manada brincando no horizonte, com as caudas contra o pôr-do-sol é uma visão dos céus, enquanto o barulho ensurdecedor dos tubarões comendo a carne da baleia morta, é descrito como o som dos infernos.

Ao mesmo tempo que o narrador e tripulante Ismael admira estes animais, ele também os caça, mata, decapita, esvazia seu interior e solta sua carcaça ao mar. Não há um problema moral nisso. Não há culpa. Não há o que questionar. É uma obra do século XIX. Há, contudo, sugestões reflexivas sobre a relação do homem e a natureza. Uma das passagens que mais me marcou, foi a do capitão Stubb que, depois de matar um cachalote, embebeda-se em comemoração e exige comer filés do animal morto e pendurado ao lado do navio. Tudo isso, iluminado pela lanterna que consumia o óleo de espermacete da baleia:

"O fato de nutrir-se um homem com um ser que lhe alimenta a lanterna e, como fez Stubb, comendo à luz projetada por esse mesmo ser é algo tão singular que reclama um pouco de história e filosofia. (...)

A evidente repugnância com que os terrícolas consideram a baleia como alimento não se funda, aliás, inteiramente na excessiva gordura da carne. Talvez provenha muito mais da observação feita acima, isto é, o homem não se resigna a comer a carne de um ser marítimo recentemente morto e a iluminar-se ao mesmo tempo com ele. (...)

Ide uma noite de sábado a um açougue e observai as multidões de bípedes vivos com os olhos cravados nas grandes filas de quadrúpedes mortos. Cada um desses canibais não sente que a água lhe vem a boca? Canibais? Qual de nós não o é? Asseguro-vos que o juízo final será mais leve para um indígena de Fidji que salga um magro missionário na sua cela, na iminência de uma fome próxima, do que para ti, civilizado e sábio gastronômo, que abates os gansos no solo e te regozijas com o seu fígado inchado, no paté de fois gras."

Ao longo de toda a leitura eu me vi no Google, Youtube e Wikipedia pesquisando sobre baleias, cachalotes, esparmecete, Nantucket, etc e, depois de já ter acabado o livro, passei por este texto de 2013, The Endless Dephts of Moby-Dick Symbolism, e uma coisa me saltou aos olhos. Os navios partem dos portos para ficar três anos em alto mar. É quase uma máquina do tempo. Esta tripulação está alheia a tudo. O mundo que deixaram não será o mesmo que encontrarão no retorno. Ao mesmo tempo, a fórmula da busca, a jornada do capitão por algo, torna Moby Dick um livro sobre tudo. Cada um terá sua leitura, a depender de onde e quando é o leitor.

"Moby-Dick is about everything, a bible written in scrimshaw, an adventure spun in allegory, a taxonomy tripping on acid. It seems to exit outside its own time, much like Don Quixote and Tristam Shandy, the poetry of Emily Dickinson. It is so broad and so deep as to accept any interpretaton while also staring back and mocking this man-made desire toward interpretation."

E é por isso que eu não consigo deixar de comparar nosso presente à uma caça a Moby Dick. "Não eram trinta homens, era apenas um". E somos uma só sociedade, com os indivíduos isolados, com medo de um vírus que surgiu na própria relação doentia entre o homem e a natureza. Alheios a tudo. O mundo que deixamos pré-pandemia não será mais o mesmo no pós-pandemia. E assistimos, como a tripulação, uma busca insana e "monomaníaca" por uma cura, uma solução, uma saída dessa situação. Ou então somos nós mesmos o capitão Ahab, um dia após o outro à procura de um hobby, uma atividade produtiva, um pensamento positivo, uma esperança, em uma realidade marcada pelo isolamento e perigos.

Considerando o fim da história, é uma pena que esta comparação só traz mais desalento.